Uma universidade para os pobres?

Por Carlos Vogt

Em abril de 1991, no segundo ano de meu mandato como reitor da Unicamp, publiquei em jornal, depois em livro, em 1993, o artigo, que agora republico aqui na ComCiência, sobre a universidade pública e as investidas erráticas dos governos contra a sua autonomia e a indispensável liberdade de atuação dentro de seu objetivo maior que é a produção, a difusão e a divulgação do conhecimento.

Hoje, o cenário político mudou, os atores são outros, mas os papéis se repetem nessa pantomina de ataques equivocados a uma instituição fundamental para o desenvolvimento do país e para a consolidação da vida democrática na sociedade.

As universidades públicas voltam ao centro do debate e, desta vez, ao que parece, no papel de vilão de uma história protagonizada, em primeiro plano, pela crise econômica nacional. São numerosos os indícios de que, na esteira do chamado Projeto de Reconstrução Nacional e das emendas constitucionais nele embutidas, se planeja desmontar o cenário do ensino superior gratuito e, a partir daí, reverter a política de financiamento das universidades públicas.

Documento recente preparado pelo Ministério da Educação, sob o título de “Proposta de uma nova política para o ensino superior”, planta, algo axiomaticamente, a ideia de que a universidade pública serve basicamente aos ricos e que, portanto, ela deveria ser paga ou o governo – seu financiador – ressarcido.

O “Projetão” dá a entender que esse ressarcimento se destinaria a financiar os níveis básico e secundário do ensino, que, como se sabe, andam em petição de miséria. Essa filosofia compensatória foi há pouco “recomendada” pelo Banco Mundial e, imediatamente, parte da imprensa lançou-se a fazer radiografias do sistema universitário brasileiro.

Há no documento do ministério verdades que, em nome do realismo crítico, é preciso admitir de pronto. Duas delas sobressaem. Primeira: o ensino superior é de fato dispendioso, especialmente naquelas universidades que mantêm uma alta proporção de alunos de pós-graduação. Segunda: ao lado de algumas ilhas de qualidade, o sistema universitário apresenta grandes bolsões de ineficiência.

Contudo, é preciso também reconhecer que o ensino superior é caro em qualquer parte do mundo e que os investimentos em pós-graduação no Brasil – sem o qual não se forma massa crítica suficiente para continuar alimentando a pesquisa científica e tecnológica – são inferiores aos de numerosos países de Terceiro Mundo. E, quanto aos padrões de eficácia, não se compreende que, no contexto da reforma administrativa da máquina estatal, as universidades não possam antes passar por um programa de enxugamento de seus custos e de aprimoramento de seus mecanismos operacionais. Abandoná-las ao auto custeio equivalerá, no seu atual estágio de desagregação, a liquidá-las.

Mas a falácia do tour de force contra o ensino superior gratuito reside sobretudo no argumento de que as universidades servem aos ricos e discriminam pobres. É verdade que os muito pobres entram em proporções mínimas nas melhores universidades, mas é infundado que a maioria de seus alunos seja composta de ricos. Tomemos como paradigma a Universidade de Campinas (Unicamp), dado o seu prestígio como instituição de ponta e a peculiaridade de captar seus alunos em todos os quadrantes do país. Acresce o fato de que a Unicamp possui talvez o vestibular mais seletivo entre todas. Ainda assim, observa-se que 35,2% de seus candidatos oriundos de escola pública lograram ser aprovados.

Os números segundo a estratificação social e econômica de seus alunos trazem algumas revelações surpreendentes. A Unicamp fez um estudo nesse sentido tomando como base a “escala de hierarquia de prestígio por profissões” de Bertran Hutchinson. Os resultados são dignos de uma análise desapaixonada. Por exemplo, os alunos oriundos de pais inequivocamente ricos (proprietários de grandes empresas, titulares de altos cargos administrativos ou políticos) não passam de 18,7%; na escala imediatamente abaixo, que inclui proprietários de empresas médias e funções gerenciais ou de direção, concentram-se 13,7% dos alunos; em seguida vêm os filhos de proprietários de pequenas e microempresas, assim como a camada de profissionais liberais com poder de ganho entre 20 e 30 salários mínimos: 17,15%; os profissionais com ocupações não-manuais de rotina (bancários, corretores, despachantes, músicos) que percebem entre 15 e 20 salários representam 14,97%; os supervisores de trabalho manual (agricultores, artífices, empreiteiros, mestre-de-obras) com rendimento entre 10 e 15 salários são 15,5%; e, finalmente, vêm os filhos de lavradores, carregadores, motoristas, pedreiros etc, que perfazem a camada dos profissionais manuais não especializados ou semiespecializados e cuja renda não ultrapassa 10 salários mínimos. Estes representam 21,6% dos alunos da Unicamp.

Observa-se, portanto, um forte predomínio da classe média – exatamente a que nos últimos tempos teve seu padrão de vida trazido a níveis muito inferiores, por exemplo, aos dos anos 70. Pode-se argumentar que, apesar disso, os muito pobres continuam a não ter acesso ao ensino superior ou só o têm em proporções mínimas, já que a maioria deles sequer chega às portas dos vestibulares e, quando chega, raramente consegue ultrapassá-las. Essa constatação, que é verdadeira, tem municiado à larga aqueles que defendem o ensino pago e, assumindo uma postura ideológica, acusam a universidade de elitista. O ensino pago torna-se, assim, contraditoriamente, bandeira contra o “elitismo” e a favor do ingresso dos pobres nos bancos acadêmicos!

Escapa aos defensores dessa tese a verdadeira razão por que os pobres não chegam à universidade. E escapa-lhes também o verdadeiro sentido de elitismo. Uma universidade pública que selecionasse seus alunos por sua melhor posição social ou econômica, esta assim, seria elitista. Mas não é de forma alguma elitista a universidade que os seleciona em função de sua aptidão intelectual, sejam eles ricos, pobres ou remediados. Se assim não fosse, há de se convir que todas as boas universidades do mundo seriam elitistas.

O documento ministerial é bastante explícito quanto aos fins da reforma pretendida: através de mecanismos inibidores como o “serviço civil gratuito”, tornar a universidade pública pouco atraente aos “abastados”, abrindo assim o caminho às camadas mais pobres. O conteúdo da reforma é portanto ideológico, isto é, não-estrutural. Atira sobre as universidades a culpa pela exclusão dos menos aptos (que, coincidentemente, no mais das vezes, são os pobres) e subverte o significado da falência do ensino público de 1º e 2º graus, que deveria justamente qualificá-los para a universidade. Pretende-se assim uma reforma ao contrário, escamoteando o verdadeiro problema e acenando, ideologicamente, com a perspectiva de uma universidade para os pobres. Contraditoriamente, não gratuita.

12 de abril de 1991

*In Vogt,C.(1993): A solidez do sonho. Ed. da Unicamp & Papirus, Campinas, p.131-133