Reportagens






 

Dá para viver de software livre

Paulino Michelazzo

Nos últimos anos, a indústria de software monopolista plantou em todos os terrenos, férteis ou não, a dúvida e incerteza quanto a capacidade de subsistência pessoal e corporativa mediante o trabalho com o modelo de software livre, utilizando para isso as mais podres sementes existentes, conhecidas como FUD´s. Estas vão desde a descaracterização do modelo até a apelativa afirmação que este é ilegal, passando pelas terras barrentas do investimento maciço em estudos capciosos e pela infiltração nas raízes do mesmo. Mas, para entender como essas ações são fecundadas e levadas a cabo, é preciso antes compreender alguns fatores que, na maioria das vezes passa despercebido da maioria de nós.

A manutenção do monopólio.
Mario Puzo, em seu best-seller O Chefão, que romanceia a saga da máfia italiana nos EUA, dando voz ao seu personagem Don Vito Corleone, diz que "a concorrência livre é ruinosa, o monopólio é eficiente". Um pensamento com dois lados distintos: o primeiro, daquele que está criando o monopólio e vê a concorrência como realmente ruinosa e o segundo, aquele que acredita e trabalha para o compartilhamento da riqueza, seja esta de qualquer espécie. Trazendo esse pensamento para o escopo deste artigo, é possível compreender qual o primeiro ponto de sustentação usado na descaracterização do software livre: o monopólio.

Não é de hoje que o mundo conta com apenas um sistema operacional dominante para computadores: Windows, da companhia norte-americana Microsoft. O restante se esmaga em parcos 8% do mercado. Assim, temos um flagrante monopolista que seu proprietário certamente não deseja perder e fará, tal como a máfia siciliana, tudo para mantê-lo. No surgimento do software livre como opção consistente e palatável para qualquer empresa, de qualquer segmento e tamanho, é vislumbrada uma ameaça real a esse monopólio e que precisa ser combatida de todas as formas para não se tornar uma verdadeira tsunami que irá varrer todo aquele "árduo" trabalho desenvolvido ao longo de duas décadas com as atividades mais singulares.

Somente esse medo seria suficiente para desencadear uma quantidade infinita de ações contra aquilo que ameaça, de uma forma ou de outra, a hegemonia da força. Mas se isso não bastasse, existem outros fatores que são levados em consideração no momento de traçar quais as ações mais efetivas para neutralizar ou mesmo acabar com a ameaça.

Não criem, usem!
Somos educados desde a tenra idade para somente consumir e nunca criar. Consumimos produtos eletrônicos japoneses, carros alemães, vinhos italianos, borracha asiática, bonecas americanas e todo o tipo de produto e conceito "made world". As mães ensinam que o bom é aquilo importado e que o nacional é ruim. A sociedade ensina os clichês internacionalizados e espanta aquilo que é "brega". E a escola ensina que devemos somente ser fornecedores de mão-de-obra, nunca empreendedores. Resultado da equação: somos um campo fértil para a absorção e aquisição de tudo o que é de fora, bom e ruim.

Ao contrário de outras sociedades, principalmente as existentes no chamado primeiro mundo, nossa educação prima pela qualidade da criação de mão-de-obra eficiente, não pensadora, barata e não questionadora. Escolas e universidades de todo o país formam robôs biológicos ao invés de empreendedores e pensadores. São formados engenheiros que somente montam máquinas, matemáticos que somente fazem contas, administradores que somente geram burocracia. E, para completar esse cenário, o governo auxilia no fomento de um estado vegetativo e dissimulado para que todos "andem nos trilhos", sem muito questionar, sem muito criar.

Aproveitando-se desse cenário, o monopólio utiliza a geração de medo, incerteza e dúvida para impregnar à todos o receio de mudanças. Imputa-se à forças "ocultas" e "maliciosas", quando não "comunistas", os problemas e desventuranças que aqueles que pensam em mudar podem sofrer. Assim, desistimulou-se a criação de qualquer tipo de atividade que possa colocar em xeque o monopólio.

Os leitores podem pensar que nada disso tem a ver com as questões do software livre. Mas antes desse pensamento, deixem-me explicar onde essas questões se encaixam.

Nicholas Negroponte, um dos fundadores do MIT Media Lab, comenta que o Brasil é um país criativo e que mantém um grande amor por atividades descentralizadas, não estabelecidas, podendo fazer desse amor e dessa criatividade sua maior riqueza. O leitor atento irá perceber que a criatividade e anarquia são valores congênitos do software livre e que essa percepção, atrelada à certeza de que países como China e Alemanha possuem uma rígida disciplina, pendem a balança para nosso lado.

E é exatamente neste ponto que uma parte se encaixa na outra. Mesmo sendo um povo criativo por natureza, temos toda uma sociedade que corrompe e molda nossa forma de ser com o intuito de manter a lei e a ordem a bom termo.

O caldeirão da subsistência
A síntese de tudo o que está escrito é a seguinte: podemos trabalhar com software livre gerando renda e pagando impostos da mesma forma que qualquer outra atividade laboral. Se este for baseado em criatividade e anarquia, temos isso de sobra. Se for baseado em mão-de-obra, também temos de sobra. Se for baseado em anarquia, nenhum povo é melhor que brasileiro para fazê-lo. E é esse caldo borbulhante que coloca em polvorosa o monopólio hoje existente e, junto com ele, a certeza que uma leve pitada do tempero brasileiro pode fazer uma diferença enorme em todo o prato.

A receita para o caldo é usarmos de nossa criatividade para abertura de novas portas e novas atividades que o software livre proporciona. A primeira tarefa é deixar de pensar no hambúrguer como único prato e acrescentar outros ingredientes antes não imaginados. Esta é a tarefa mais árdua de todas. Mudar de cardápio depois de 20 anos é algo que o estômago, em primeiro momento, irá rejeitar. Mas sem essa mudança, continuamos a ser glutões que não saboreiam aquilo que estamos comendo.

Em conjunto com a re-educação alimentar vem a experiência da criação de novos cardápios. Traduzindo: é necessário o aproveitamento de nichos específicos com uma boa dose de criatividade. Em um evento que participei no sul do país, conheci uma empresa que descobriu seu novo "cardápio". Entendendo a questão da migração de documentos de textos e planilhas para uma nova plataforma, criaram um serviço que atende qualquer pessoa ou empresa do país em suas necessidades de migração e suporte na nova tecnologia. Certamente esse prato não existia e foi criado por um verdadeiro "chef" que, sentindo o desejo de seus clientes, criou algo que atende ao paladar deles perfeitamente. Pura obra de arte culinária e tecnológica.

Quais as lições passadas por eles? A primeira é que se faz necessário a mudança alimentar, ou seja, mudar e quebrar o modelo antigo de trabalho. Segundo, existem nichos novos que estão a disposição para serem explorados por pessoas que têm criatividade e visão, tal qual um "chef" francês em sua cozinha.

Um outro exemplo é dado por estudantes desgarrados de uma faculdade do interior de São Paulo. Eles, imaginando a ampliação do uso da internet e da disponibilização de linhas em alta velocidade, criaram um produto baseado em software livre que atende pequenas e médias empresas em todas as suas necessidades computacionais. Lá está um servidor de mensagens, um servidor de intranet, ferramenta de groupware, firewall, anti-spam e tudo aquilo que hoje se faz necessário no mundo conectado. O que vendem? Os serviços de instalação, configuração, manutenção e monitoramento dos sistemas instalados. Aqui, mais uma prova da visão e criatividade do "chef" de cozinha.

Exemplos existem às dezenas. Tal como opções de pratos. Mas se você, todos os dias, almoça no mesmo restaurante e se alimenta do mesmo cardápio, como pode conhecer e saborear outros temperos que estão, muitas vezes, no restaurante ao lado?

Finalizando
Sempre existem aqueles denominados "rebeldes" em todas as sociedades. E são estes que hoje fazem com que o Brasil esteja se tornando o país do software livre. Pessoas que acreditam no empreendedorismo e que não aceitam o status-quo apresentado ao longo de décadas. Mentes que saem do lugar-comum e passam a imaginar grandiosamente as formas de mudar e adaptar o que existe para sua realidade. Essas mentes, por coincidência ou não, em sua grande maioria não saíram dos bancos de universidades e faculdades ou ainda de famílias tradicionais, as quais corrompem e aquartelam mentes e desejos mediante o passar do conhecimento robotizado que atende aos anseios monopolistas. Saíram do caldeirão borbulhante do povo que se encontra em ebulição, vislumbram uma nova refeição a cada dia, com mais qualidade, menos gordura saturada e mais nutrientes, tanto para seus corpos como para suas mentes.

Tenho que reconhecer que não é simples a mudança e que esta, na grande maioria das vezes, causa enjôos e náuseas. Mas tenham certeza que o sabor depois é muito melhor. Na receita, duas xícaras de criatividade, uma de empreendedorismo, uma de visão do mercado e uma pitada de anarquia, só para dar o gostinho brasileiro ao prato.

Paulino Michelazzo é professor da Faculdade de Informática e Administração Paulista (FIAP), secretário da ONG Quilombo Digital e diretor da revista Copyleft.


Observação

"FUD", sigla para "Fear, Uncertainty and Doubt" ou seja, medo, incerteza e dúvida. (voltar)

 
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Atualizado em 10/06/2004
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