Reportagens






 

O copyleft e o pensamento de Hannah Arendt

Pablo de Camargo Cerdeira

I. Introdução: a divisão entre ação, labor e trabalho no pensamento de Hannah Arendt

Este texto tem por objetivo uma reflexão acerca do conceito e da natureza jurídica de um tipo específico de programa de computador conhecido como software livre, bem como das obras livres, dos quais trataremos adiante. Entretanto, para este estudo partiremos não das semelhanças e diferenças entre os programas livres e seu antagonismo, qual seja, os programas proprietários, mas sim do pensamento de Hannah Arendt acerca do questionamento "o que estamos fazendo na Terra". Com isso visamos antes refletir sobre a forma como o homem se expressa e se relaciona com o mundo, para depois podermos elaborar as semelhanças e dessemelhanças entre os tipos de programas de computador.

Hannah Arendt propôs, em uma distinção inusitada, que os termos labor, trabalho e ação fossem entendidos como diferentes formas de atividades fundamentais do ser humano, sendo aquele vinculado às necessidades biológicas, o intermediário ao artificialismo da vida moderna e esta às relações entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria. Essa distinção feita pelo pensamento arendtiano, que trabalharemos no correr deste texto, foi bem aceita entre os juristas brasileiros, e é percebida claramente na introdução da obra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior intitulada "Introdução ao estudo do direito" e em diversos trabalhos do professor Celso Lafer.

A proposta arendtiana nos leva a reflexões sobre a instrumentalização do direito e de como o próprio homem acaba por se enquadrar em um sistema meio-fim para com seus produtos; enquadramento este que resulta em uma perda, para o homem, da noção de sua importância frente aos produtos que ele mesmo, como homo faber, produz e que passam a dividir com ele o espaço na Terra. Quando da análise da proteção de bens imateriais da propriedade intelectual - um artifício jurídico - pelo direito, seus argumentos servem muito bem, pois é claro o processo de reificação das idéias como bens comercializáveis. É sob este enfoque que analisaremos a noção de bens imateriais da propriedade intelectual, a forma como eles são regulados e como novos conceitos de liberdade que já são utilizados devem ser recebidos pelo direito.

II. O labor

Por labor Hannah Arendt entende todo tipo de atividade voltada às necessidades naturais do homem, aquelas realizadas no convívio familiar, destinadas a saciar a fome, a sede, enfim, toda a sorte exigências da condição animal do ser humano. Uma das principais características do labor é que este se produz em um ciclo ininterrupto, e na medida das suas necessidades, pois a destinação do labor encontra-se na incorporação do fruto da atividade ao próprio corpo do homem. O alimento assim produzido tem por destino o próprio produtor ou sua família, em um processo denominado oiko nomos, a administração da casa - origem do termo economia. Os ferramentais utilizados constituem-se de extensões do próprio corpo, como o arado, a enxada etc, e da mesma forma apenas circundam o valor central da relação, que é o próprio homem. É essa também a origem do termo direito privado, pois os regramentos do labor são, em sua maior parte, privativos da liberdade de agir, já que impostos por uma necessidade inerente à natureza de todos os animais. O animal, na natureza, em razão das imposições desta, não é totalmente livre, assim também não o é o animal laborans no dizer arendtiano.

III. A ação

O conceito de ação vincula-se estreitamente à polis grega, onde os homens deixavam o domínio de suas necessidades naturais e podiam agir de forma livre, no meio de pares em igual situação. Na polis não havia a hierarquia tradicional da oikia, comandada pelo pater famílias e nem as privações impostas pelas necessidades naturais características do labor. O agir, neste momento, tem uma concepção muito distinta de labor na medida em que a ação liberta, permite ao homem seu autogoverno no meio de tantos outros homens livres das necessidades imanentes dos animais. Esta é a esfera política, que objetiva ao governo comum de liberdades. Enquanto o labor se caracteriza pela sua não-interrupção e pela limitação de alcance aos anseios fisiológicos, a ação, ao contrário, é ilimitada e espontânea; mais do que isso, ela não tem destinação certa, é imprevisível, pois sua fonte política presume a participação do politikon zoon, ou seja, um animal integrado à sua sociedade e que tem a capacidade de ação e do discurso. A liberdade da ação não permite uma determinação lógica de seus rumos.

É da ação que surgem a ars e a téchne, ou seja, os aspectos estéticos e técnicos dos anseios do homem que vive em uma teia de ações. Também daí nascem as primeiras limitações da ação, limitações não-restritivas mas sim delimitadoras, demarcadoras de fronteiras. Aparecem as normas jurídicas, as noções de estado, dentre outras.

É importante notar que ação não se confunde com o discurso, com a cognição, com o raciocínio lógico e nem mesmo com o pensamento. Ação é mais próxima do que chamamos de atividade política pura, aquela que não objetiva ganhos para este ou aquele grupo (este comportamento é característico do trabalho político, e não da ação política, esta marcada pelo seu isolamento dos aspectos instrumentais). A nós, neste momento, cumpre apenas destacar algumas características do pensamento em contraste com a ação: aquele, em si, não chega a ser objeto de estudo de Hannah Arendt na obra que ora estudamos pois sem qualquer materialização ele é totalmente "inútil" como atividade humana na sua relação com o mundo, tal como ocorre também com o raciocínio lógico e a cognição, que se ocupa de trazer à mente humana os fatos do mundo.

IV. O trabalho

Diferentemente do labor e da ação, o trabalho humano tem por traço distintivo a relação meio-fim. Se o labor visa as necessidades fisiológicas do homem e a ação os anseios políticos, o trabalho não visa objetivamente nada no próprio ser humano, a não ser produzir um meio para se atingir outros fins, ou mesmo novos meios. O resultado do trabalho é passível de determinação objetiva: o produto ou bem de uso ou consumo. Além disso, o produtor se distingue do resultado de seu trabalho. Se na ação e no labor seus produtos se incorporam à sociedade e ao homem, respectivamente, no trabalho o produto se destaca do produtor e, como principal característica, passa a incorporar o mundo, dividindo-o com o próprio homem. O trabalho é, pois, naturalmente violento na medida em que traz ao mundo do homem algo que a ele não pertencia, deturpando e violentando também a natureza original. O labor e a ação não alteram a natureza senão na medida das necessidades fisiológicas e políticas do ser humano; o trabalho não. No dizer de Hannah Arendt, enquanto o homo laborans é amo e senhor de todas as criaturas vivas, permanece, no entanto, como escravo da natureza; já o homo faber, aquele que trabalha, é amo e senhor de toda a Terra.

V. Reflexos da distinção entre ação, labor e trabalho

A divisão entre labor, ação e trabalho não é totalmente estanque e não se apresenta de forma exclusiva nos atos da vida humana. É certo, entretanto, que tal conceito tem grande importância didática na classificação das atividades humanas na sua vita activa. É importante, por exemplo, na diferenciação entre jus e lex, ou seja, entre o direito fruto da ação e o direito fruto do trabalho, aquele expresso nos conceitos filosóficos de justiça, este nas normas trabalhadas pelos legisladores. Os bens se assentam também em semelhante distinção, sendo alguns voltados preponderantemente para o consumo próprio, alguns com destinação político-social e outros com fins de comércio.

Quando da Era Moderna e, mais recentemente, da chegada da noção capitalista de acúmulo de bens, a idéia de ação como ato de virtude deixa de ter seu sentido isolado e passa a ser cada vez mais absorvido pelo trabalho fabril e sua intenção finalista de produzir bens de consumo. Tal fato tem reflexos no direito, fazendo prevalecer as normas e as leis à noção de justiça; na produção humana, preponderando o bem com destinação final fora do homem ao bem que vise as necessidades naturais e políticas. A própria vocação do politikon zoon se vê dirigida a fins outros, como o comércio, e não mais à busca de ações virtuosas per se. O direito, neste último aspecto em particular, passa a servir de comando para defender certos fins fora dele mesmo, fora de sua idéia de justiça, e se transforma em ferramenta para o homo faber, ou o homem que trabalha por trabalhar.

Ainda segundo Arendt, na interpretação de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, o homo faber degrada o mundo porque subverte o valor das coisas em si em valor-utilidade, em uma relação meramente pragmática. As coisas deixam de ser valiosas por elas mesmas e passam a ser, paradoxalmente, valiosas apenas na medida em que servem como meio para se alcançar outras coisa, coisas estas que são também meios para se chegar a outras coisas. Os bens, no sentido mais amplo, são agora fins em si mesmos, pois não se integram novamente ao homem ou à sua sociedade; passam, sim, a dividir o mundo com o próprio homem, e com a característica de multiplicação potencial. Esse processo recebe o nome de reificação na obra de Hannah Arendt e se caracteriza pela busca de solidez nos bens produzidos, e pela sua valoração especialmente ligada ao valor de troca que possuem.

A esfera pública deixa de ser a esfera do político, da ação e da virtude e passa a ser a esfera do comerciante, do trabalho e dos bens fabris. Outros reflexos importantíssimos se seguem: o homem, que se relaciona na já citada esfera política, passa a ser valorado não pelas ações, mas pelos bens que possui e que sustentam a sociedade moderna. Mesmo o direito passa a ser um bem em comércio, quando mercantilizado, e passa a servir a esses interesses e a ser valorado conforme sua serventia. O direito perde quase que por completo sua dogmática e se flexiona às necessidades da principal atividade política: a troca de produtos.

VI. Conseqüências da reificação

São várias as conseqüências práticas do comportamento fabril do homem moderno, sendo uma das principais aquela que utiliza o direito para a criação de bens que sustentem a esfera política tal qual esta se encontra, voltada ao mercado. É nesse contexto que surge a questão da escassez, noção econômica adotada pelo direito para a proteção dos bens frutos do trabalho, bens estes que, por não serem ilimitados, recebem um valor de troca.

A grande maioria dos bens escassos e com valor de intercâmbio passa a receber proteção do direito como "ferramenta jurídica", do direito lex, fruto de trabalho, De outro lado, o direito jus, aquele que tem fim no homem e no conceito de justiça, é praticamente abandonado. A propriedade passa a ser, então, a base do sistema jurídico moderno.

Originalmente, a adoção do conceito econômico de bens escassos do direito fabril não abrangeu tudo que a política também baseada em bens visava controlar. O direito, que deixou de ter aquele fim em si quase que completamente, serviu aos interesses econômicos trazendo, artificialmente, outros bens para a esfera do comércio.

Uma das classes de bens com essa origem são os bens imateriais da propriedade intelectual. Comparativamente aos bens tradicionais, eles guardam algumas dessemelhanças importantes:

a. os bens tradicionais são materiais, os da propriedade intelectual não o são;

b. enquanto os primeiros são escassos, (quando alienados o antigo possuidor deixa de poder tirar proveito do bem), os segundos abundam, já que uma idéia ou uma obra podem ser copiados do autor sem que este deixe de poder utilizá-la;

c. os bens tradicionais são normalmente frutos do trabalho, ou seja, são já produzidos com a finalidade de inserção no mundo do homem para serem depois trocados; os bens imateriais são frutos, muitas vezes, do raciocínio ou de iluminações espontâneas, pois as idéias são intrinsecamente livres, não-controladas e não-objetivas. Mesmo que a idéia seja voltada para a produção de bens de troca, ela, em si é distinta de seu produto e mantém as suas características muito mais próximas do labor ou mesmo da ação do que do trabalho.

Foi sobre tais conceitos que a sociedade moderna moldou seu sistema de propriedade intelectual. Mesmo o que antes se diferenciava dos bens materiais passou a ser tomado como um desses pelo direito instrumental. O processo de reificação (ou coisificação) alcançou até mesmo o que não é coisa pela sua própria natureza.

As idéias, no seu sentido mais amplo, assim como o próprio direito, foram praticamente absorvidas pela instrumentalização.

VII. Code: os programas de computador na interpretação de Lawrence Lessig

Antes de relacionarmos o pensamento arendtiano com o conceito de software livre é preciso tecer alguns comentários sobre o que é o software e sua relevância nos dias atuais. Também se faz necessário apontar o que os doutrinadores mais importantes têm indicado como sendo os aspectos jurídicos de maior relevância para o tema.

Para Lawrence Lessig, professor da Faculdade de Direito de Stanford e um dos maiores expoentes do direito da internet, uma sociedade livre se caracteriza pela existência de normas públicas, destinadas ao controle social. Ele, que originalmente era professor de direito constitucional, vê no processo normativo-jurídico transparente a base de uma sociedade livre. Um de seus exemplos cita exatamente todo o caminho necessário para a solução de um litígio: é preciso que as partes envolvidas e seus advogados conheçam as leis vigentes; que as peças apresentadas no processo sejam de conhecimento público; e que a sentença judicial siga a mesma regra. Tudo em respeito ao devido processo legal.

Na continuação de seu raciocínio, Lessig propõe, hipoteticamente, um sistema normativo-jurídico secreto, kafkaniano, em oposição ao sistema aberto de normas. Tal situação poderia até mesmo produzir os mesmos efeitos que o sistema aberto, mas o faria às custas de um processo artificial e violento.

No entender de Lessig, a ocorrência de uma situação como a descrita na obra de Kafka não se encontra longe de ocorrer, de modo silencioso, a partir da dependência que os homens adquiriram das máquinas. Praticamente todos os atos humanos realizados em sociedade nos tempos atuais - e conseqüentemente quase todos os atos jurídicos também - acabam por, em algum momento, passar por um sistema computacional. Como exemplo podemos citar a ocorrência de votos em urnas eletrônicas - i.e. tanto em âmbito interno do legislativo como em âmbito externo, no sufrágio aberto para presidente -, o controle fiscal do Estado sendo realizado por meios eletrônicos, pregões públicos na Internet, compras e vendas realizadas por cidadãos em sítios de leilões ou mesmo de lojas eletrônicas e até mesmo o controle das contas - públicas e privadas - é realizado com a utilização de programas de computador. Assim , podemos facilmente enxergar que existe, no mundo contemporâneo, uma extrema dependência dos computadores como instrumentos que, se não regem a vida humana, ao menos controlam muitas de suas atividades e informações.

Detalhando um pouco mais o pensamento de Lessig chegamos ao conceito que ele chama de "Code". Para entendermos o que é o Code é preciso ter claro que a referida dependência humana dos computadores não se vincula diretamente às máquinas enquanto objetos físicos, mas sim aos programas, ou softwares, que elas executam e que são elaborados a partir de um código, conhecido nos meios técnicos como código-fonte, que é o próprio software em uma linguagem próxima à utilizada pelo homem (linguagem natural). O código-fonte é, na maioria das vezes, um texto cognoscível ao homem mas não às máquinas, e que guarda todas as instruções e toda a lógica do software. Esse código, após um tratamento automatizado chamado de compilação, é convertido em instruções na linguagem de máquina, passando a ser conhecido como código-binário, deixando de ser passível de entendimento pelo ser humano.

Para ilustrar, podemos colocar o seguinte código-fonte escrito em C (uma das diversas linguagens de programação) que imprime na tela do usuário o texto "Olá Mundo", normalmente o primeiro programa escrito por um programador:

int main() {
printf(''Olá Mundo'');
return 0;
}


Uma vez compilado, o mesmo programa, em sua forma código-binário, passaria a ser algo similar a:

110011110111010100101001001001010101110
0110101010011000011110010110101011111110
(...)

Os dois códigos acima (o segundo foi abreviado) representam o mesmo programa de computador. O primeiro, entretanto, em sua forma código-fonte, pode ser entendido e alterado pelo homem. O segundo pode ser entendido pelas máquinas, mas é completamente obscuro para o ser humano.

O Code é, portanto, um complexo de códigos-fonte e códigos-objeto dos programas que ajudam a reger a sociedade contemporânea, mas que com estes, isoladamente, não se confunde. Por Code podemos entender um sistema de normas tal qual o sistema jurídico, mas paralelo a este e que tem sua força vinculante atrelada principalmente à dependência que o homem desenvolveu para com os softwares.

Seu raciocínio nos leva ao estabelecimento de uma relação muito próxima entre os atos da vida social e os programas de computador; os atos humanos são balizados, portanto, tanto por uma relação homem-software como por uma relação homem-norma jurídica. É tão comum se ter um ato limitado pelos conceitos técnicos estabelecidos pelo Code como pelas próprias normas jurídicas.

Por essa razão Lessig entende a importância do Code dos programas de computador não apenas como aparato técnico necessário ao desenvolvimento de softwares, mas também como efetivo instrumento de regulação da atividade humana e, portanto, pertencente à esfera do interesse público. O controle do Code é, assim, de enorme importância para a gestão social exercida pelo Estado.

(continua)


Observações

A condição humana, Rio de Janeiro, 10ª ed., Forense Universitária, 2003, pág. 13. (voltar)

No original "labor, work and action". Idem, p.13. (voltar)

Ferraz Júnior, Tércio Sampaio, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, São Paulo, 2ª ed., Atlas, 1994, pp. 21-29. (voltar)

Lessig, Lawrence, Introduction, in Stallman, Richard, Free software free society, Boston, 1ª ed., GNU, 2002, pp. 9-11. (voltar)

 
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Atualizado em 10/06/2004
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