Ciência computacional de materiais e química aplicada no desenvolvimento de materiais para novas energias

Por Abner M. Sampaio, Mateus Bazan Peters Querne, Mailde S. Ozório, Matheus Paes Lima, Leonardo J. A. Siqueira e Juarez L. F. Da Silva

Introdução

O acelerado desenvolvimento tecnológico em diversas áreas, que vão desde a indústria automotiva e de aviação, passando pelas indústrias químicas e biomédicas, trouxeram uma alta demanda para o desenvolvimento de novos materiais que possam atender a necessidades específicas. É consenso atual que o desenvolvimento de novos materiais pode ser acelerado a partir do conhecimento da interrelação entre as propriedades atômicas, moleculares e mesoscópicas e a estrutura atômica dos materiais, o que requer uma descrição atomística dos componentes fundamentais da estrutura dos materiais (elétrons e núcleos). O comportamento do movimento dos elétrons e núcleos na estrutura da matéria requer uma descrição utilizando as teorias de Química/Física Quântica, e portanto, necessita da solução da equação de Schrödinger, a qual possui solução analítica somente para o átomo de hidrogênio além de modelos simplificados.

Portanto, ao longo das últimas décadas, várias alternativas teóricas foram desenvolvidas, por exemplo, teoria do funcional da densidade (conhecida pela sigla em inglês DFT), métodos semiempíricos, modelos simplificados com base em campos de força (parametrizados através de dados obtidos via mecânica quântica ou resultados experimentais) utilizando funções analíticas da mecânica clássica. Todas as metodologias mencionadas requerem o uso constante de recursos computacionais de alto desempenho para a solução numérica das equações que descrevem o comportamento de elétrons, núcleos, átomos e moléculas. Portanto, a área de Ciência Computacional de Materiais e Química é um campo interdisciplinar de pesquisa que utiliza a teoria quântica e suas simplificações com a combinação de recursos computacionais de alto desempenho (supercomputadores) e avançados algoritmos para o estudo da interrelação entre estrutura molecular e propriedades físico-químicas de diferentes materiais.

Nas últimas décadas, a Ciência Computacional de Materiais e Química tem sido utilizada com sucesso para o estudo e predição de propriedades de materiais inorgânicos, como metais, semicondutores e isolantes; orgânicos, como polímeros e surfactantes; líquidos; materiais que combinem ambas naturezas, inorgânica e orgânica; interfaces etc. Logo, os métodos atomísticos têm sido aplicados como ferramentas importantes para o desenvolvimento de novos materiais em conjunto com as inúmeras técnicas experimentais.

Ilustração esquemática dos principais projetos em desenvolvimento no programa de Ciência Computacional de Materiais e Química, Centro de Inovação em Novas Energias.

Existe uma demanda crescente pela redução do uso dos combustíveis fósseis devida, principalmente, às alterações climáticas atribuídas à queima de petróleo e emissão de CO2 na atmosfera. A transição energética para um modelo autossustentável requer o desenvolvimento de novas tecnologias de geração e armazenamento de energia, as quais estão baseadas única e exclusivamente no desenvolvimento de novos materiais e de estratégias para o uso dos mesmos. Neste processo, a colaboração entre estudos experimentais e a ciência computacional aliada à Química e Física teóricas tem revolucionado a investigação, descoberta e síntese de novos materiais. A título de exemplo, conforme ilustra a figura acima, vamos mencionar três linhas de pesquisa existentes no programa de Ciência Computacional de Materiais e Química do Centro de Inovação em Novas Energias (CINE): células solares de baixo custo baseadas em perovskitas e calcogenetos, aplicações em armazenamento de energia, e técnicas de conversão de CO2 e CH4 para produtos de maior valor agregado.

Novos materiais para conversão de energia

Com o intuito de melhorar a eficiência da produção de energia elétrica através de placas fotovoltaicas, é possível citar três diferentes frentes de pesquisas. A primeira considera células de perovskitas que possuem fórmula química ABX3, em que A e B são cátions e X é um ânion, sendo geralmente um íon haleto. O chumbo é um elemento tóxico que está presente na estrutura das perovskitas mais promissoras para energia fotovoltaica, e um dos grandes desafios é encontrar um substituto não tóxico para o chumbo que apresente propriedades eletrônicas iguais ou superiores.

Através de simulações computacionais utilizando a DFT, é possível analisar diferentes combinações de novos materiais para serem utilizados nas células de perovskitas, sem a necessidade de montagem de um aparato experimental. Desta forma, é possível obter um grande número de resultados e propriedades em uma menor quantidade de tempo, possibilitando a seleção dos materiais mais promissores para futuros experimentos. Em estudo computacional recente realizado no grupo do professor Juarez L. F. Da Silva, perovskitas contendo átomos de bismuto no lugar do chumbo foram investigadas e apresentaram propriedades semelhantes ou melhores com relação ao material contendo chumbo, o que representa um avanço do desenvolvimento de novos materiais não tóxicos e eficientes [1].

Outras frentes que também são beneficiadas pelo uso de simulações computacionais são os estudos com dicalcogenetos de metais de transição (DMTs) e os monocalcogenetos para aplicações fotovoltaicas desenvolvidos nos grupos dos professores Matheus P. Lima (UFSCar) e Juarez L. F. Da Silva (IQSC/USP). Os DMTs, formados por um metal de transição (M) e dois calcogenetos (Q) como MoS2 e WS2, aumentam a eficiência da conversão de eletricidade em células solares segundo estudos computacionais, o que representa um avanço nesta área de pesquisa [2]. Além da química computacional ser utilizada para encontrar a melhor combinação de elementos, também é possível fazer análise de propriedades para situações em que são acrescidos defeitos nos materiais, situações difíceis de serem exploradas experimentalmente, ou até mesmo a formação de heteroestruturas para verificar se o seu uso representa ganho de eficiência de produção elétrica.

Os monocalcogenetos, representados pela fórmula MQ, apresentam apenas um calcogeneto. Dados preliminares de um estudo em andamento no CINE mostram que estruturas MQ do tipo fosforeno de GeSe, que têm sido amplamente debatidas na comunidade científica, não são as opções mais estáveis. De acordo com os dados obtidos com o uso da DFT, descobriu-se a existência de estruturas com maior potencial de utilização em células fotovoltaicas, o que pode gerar uma maior eficiência de conversão de energia.

Materiais para armazenamento de energia

Dispositivos de armazenamento de energia, como baterias e supercapacitores, apresentam muitas variáveis envolvidas em seu funcionamento. Nas baterias de sódio, uma das candidatas a substituir as baterias de lítio, a simples substituição do lítio pelo íon sódio não é garantia de sucesso, visto que a Química e a Eletroquímica do eletrólito e do eletrodo contendo sódio diferem significativamente do que é observado com relação ao lítio. Já nos supercapacitores, os eletrólitos podem ser aquosos, orgânicos, ou um líquido iônico, em que o sal se encontra em estado líquido. Cada um destes eletrólitos apresenta características distintas relacionadas a propriedades como viscosidade, condutividade, estabilidade térmica e estabilidade eletroquímica, que alteram completamente o funcionamento dos supercapacitores. É dentro deste contexto que a ciência computacional de materiais tem um papel relevante no desenvolvimento de novas baterias e supercapacitores, pois permite a investigação individual em nível microscópico de cada elemento que compõe estes dispositivos.

Em estudo recente publicado pelo grupo do professor Leonardo J. A. de Siqueira, professor da Unifesp e membro do CINE, demonstra-se através de dinâmica molecular que líquidos iônicos com propriedades físico-químicas similares apresentam performances significativamente diferentes em função do tamanho dos íons que compõem o eletrólito. Além disso, os supercapacitores simulados apresentam excelentes performances em termos de capacidade de armazenamento de energia. No estudo, utiliza-se um modelo para representar de forma realística como o eletrólito induz carga no eletrodo a partir da manutenção de uma diferença de potencial durante uma simulação de dinâmica molecular, algo que até poucos anos atrás não era possível [3].

O papel da ciência computacional de materiais não se restringe ao desenvolvimento de novas baterias e supercapacitores. Muitos esforços têm sido realizados a fim de melhorar o desempenho de dispositivos já existentes, como as baterias de lítio-metal. Pesquisadores do grupo de Teoria Quântica de Nanomateriais liderado pelo professor Juarez L. F. Da Silva no Instituto de Química de São Carlos recentemente trouxeram luz sobre a interação entre eletrólitos formados por lítio, óxido de polietileno e diferentes líquidos iônicos com a superfície de eletrodos de lítio. A pesquisa demonstra, por meio de simulações de dinâmica molecular, que a escolha de líquidos iônicos específicos para formação do eletrólito tem capacidade de melhorar a performance destas baterias a partir da inibição da formação de agregados metálicos na superfície do eletrodo [4].

Conversão de CO2 em novos produtos

Existe um interesse crescente em encontrar soluções economicamente viáveis para reduzir a concentração de CO2 na atmosfera e encontrar alternativas ao uso de metano, CH4, o qual é o principal componente do gás natural. Os desafios são enormes devido à alta estabilidade destas moléculas, mesmo em altas temperaturas. O grupo de Teoria Quântica de Nanomateriais tem realizado vários estudos utilizando a teoria do funcional da densidade para entender o processo de adsorção e ativação do CO2 e CH4 em nanomateriais.

Simulações quânticas demonstraram que a molécula CO2 se liga via adsorção física (baixa energia de ligação) ou química (forte energia de ligação) sobre partículas de metais de transição, e o mesmo comportamento é também observado sobre superfícies [5,6]. A estrutura linear do CO2 é mantida na adsorção física, entretanto, altera-se para a forma angular no processo de adsorção química devido a transferência de uma fração de elétrons das partículas metálicas para o CO2. Através de análises dos dados obtidos, o grupo observou que a magnitude da transferência de carga determina o ângulo e a energia de ligação do CO2 ao substrato, e, portanto, é um dos importantes descritores no processo de ativação do CO2. Utilizando nanopartículas com diferentes tamanhos, o grupo liderado pelo professor Juarez também demonstrou que existe uma forte dependência da magnitude da energia de interação entre CO2-substrato, o que afeta o processo de ativação em função do tamanho das nanopartículas. Resultados como este, combinados com medidas experimentais, podem contribuir para o desenvolvimento de nanomateriais para a produção de novos produtos a partir de CO2.

Conclusão

No caminho percorrido na direção de um mundo mais sustentável, a Ciência dos Materiais e a Química têm se mostrado fundamentais, permitindo a investigação de novos materiais que sejam mais eficientes e menos agressivos ao meio ambiente do que os empregados na indústria atualmente. A percepção da importância desta ciência tem levado a investimentos cada vez maiores na área, e deve contribuir para o crescimento exponencial de investigações de novos materiais a nível atômico. As linhas de pesquisa apresentadas aqui, além de outras não mencionadas, têm produzido resultados animadores no que diz respeito à transição da matriz energética atual, dependente dos combustíveis fósseis, para uma matriz energética autossustentável, capaz de suprir a capacidade energética mundial a partir de fontes renováveis.

Abner M. Sampaio é doutorando do programa de pós-graduação em Química, Ciência e Tecnologia da Sustentabilidade no Laboratório de Materiais Híbridos da Unifesp – campus diadema. Químico Industrial e Mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). 

Mateus Bazan Peters Querne é formado em licenciatura em Física pela UDESC, onde foi bolsista de IC e também bolsista de extensão da coordenação estadual da Olimpíada Brasileira de Física, com um período sanduíche na UniSA na Austrália, mestre em Física também pela UDESC e atualmente é doutorando em Física pela UFSCar.

Mailde S. Ozório se formou como melhor aluna do curso de Química da FCT-UNESP (2016). Foi bolsista Fapesp de iniciação científica no estudo de equações diferenciais na Química. Está fazendo o doutorado no IQSC-USP. Desde 2016 atua na área de ciência computacional de materiais no estudo de óxidos de cério e perovskitas.

Matheus Paes Lima é físico e atua no grupo de estruturas semicondutoras do Departamento de Física da UFSCar. Ele obteve seu doutorado pela USP. 

Leonardo J. A. Siqueira é professor do Departamento de Química da Unifesp-Campus Diadema, Laboratório de Materiais Híbridos. Doutor em Ciências (Química) pela USP com pós-doutorado na School of Chemistry da University of Edinburgh (Escócia). Atua como pesquisador no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE).

Juarez L. F. Da Silva é professor no Instituto de Química de São Carlos, Universidade de São Paulo. Tem doutorado pela Universidade Técnica de Berlim e Instituto Fritz-Haber da sociedade Max-Planck. No Centro de Inovação em Novas Energias, ele atua como pesquisador, coordenador de Educação e Disseminação do Conhecimento e coordenador de programa.

Agradecimento
Os autores agradecem o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo número 2017/11631-2), a Shell e a importância estratégica do apoio da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), por meio do regulamento da Taxa de P&D.

(1) Ozório, M. S.; Oliveira, W. X. C.; Silveira, J. F. R. V.; Nogueira, A. F.; Da Silva, J. L. F. Novel Zero-dimensional Lead-free Bismuth Based Perovskites: From Synthesis to Structural and Optoelectronic Characterization. Materials Advances 2020, DOI: 10.1039/d0ma00791a.

(2) Besse, R.; Lima, M. P.; Da Silva, J. L. F. First-Principles Exploration of Two-Dimensional Transition Metal Dichalcogenides Based on Fe, Co, Ni, and Cu Groups and Their van der Waals Heterostructures. ACS Applied Energy Materials 2019, 2, 8491–8501, DOI: 10.1021/acsaem.9b01433.

(3) Sampaio, A. M.; Pereira, G. F. L.; Salanne, M.; Siqueira, L. J. A. Comparing the Performance of Sulfonium and Phosphonium Ionic Liquids as Electrolytes for Supercapacitors by Molecular Dynamics Simulations. Electrochimica Acta 2020, 364, 137181, DOI: 10.1016/j.electacta.2020.137181.

(4) Lourenço, T. C.; Ebadi, M.; Brandell, D.; Da Silva, J. L. F.; Costa, L. T. Interfacial Structures in Ionic Liquid-Based Ternary Electrolytes for Lithium-Metal Batteries: A Molecular Dynamics Study. The Journal of Physical Chemistry B 2020, 124, 9648–9657, DOI: 10.1021/acs.jpcb.0c06500.

(5) Ocampo-Restrepo, V. K.; Zibordi-Besse, L.; Da Silva, J. L. F. Ab initio Investigation of the Atomistic Descriptors in the Activation of Small Molecules on 3D Transition-Metal 13-Atom Clusters: The Example of H2 , CO, H2 O, and CO2 . The Journal of Chemical Physics 2019, 151, 214301, DOI: 10.1063/1.5125769.

(6) Mendes, P. C. D.; Ocampo-Restrepo, V. K.; Da Silva, J. L. F. Ab initio investigation of quantum size effects on the adsorption of CO2, CO, H2O, and H2 on transition-metal particles. Physical Chemistry Chemical Physics 2020, 22, 8998–9008, DOI: 10.1039/d0cp00880j.