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Reportagem
A participação cidadã, da internet para ruas e câmaras
Por Patrícia Santos
10/04/2015

Era madrugada de 22 de abril de 2014 na capital pernambucana quando um jovem que passava pela região presenciou o começo da demolição dos galpões do cais José Estelita para incício das obras do Projeto Novo Recife. Ele iniciou um chamado pela internet e, em meia hora, havia 500 ativistas no local, como relata Luiz Carlos Pinto, integrante do Movimento #OcupeEstelita que busca melhorar o planejamento urbanístico local. “Foi incrível. Gente chegando de todos os lugares. Depois disso, passamos 60 dias lá, ocupando a região”, diz.

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Membros do movimento #OcupeEstelita durante ato em 2015. Foto: Ana Lira


Mobilizações com ajuda da internet em prol de uma causa são características marcantes das novas formas de ativismo, movimentos, grupos ou coletivos sociais. Para pesquisadores da área, as fronteiras para uma definição precisa são difíceis de demarcar, assim como suas formas de atuação, que podem ser as mais diversas. Mas o fato é que essas ações, cada vez mais, têm impacto e complementam a participação pelos meios institucionais.

Jorge Alberto Silva Machado, professor da Universidade de São Paulo, ressalta que a identidade em torno de temas de interesse comum é o elemento aglutinador desses grupos, e as redes sociais se tornaram a plataforma de mobilização para uma geração adaptada a esse tipo de comunicação rápida e bastante visual, e que não depende de pré-organização. “Eles se mobilizam para as pautas que defendem em função de fatos. Passado o momento político, aquela pauta e toda a mobilização em torno dela tende a desaparecer rapidamente, da mesma forma como surgiu. Há muita instabilidade, eu diria, porque esses movimentos na rede se mobilizam por meio de ideias, de paixões das pessoas, de interesses, e não dependem de estrutura física, de ter uma base, dinheiro. Justamente por isso ela se evapora”, comenta o professor. Também é característica desses novos coletivos a liderança descentralizada. Algumas pessoas podem estar à frente em determinados momentos, mas não é uma posição fixa. Pode haver ainda uma hierarquia, em que pessoas com mais tempo dedicado à causa, ou mais experientes, falem pelo grupo.

A volatilidade, porém, não é um determinante, como aponta Antônio Engelke Menezes Teixeira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Sob certas circunstâncias, aqueles laços, que eram superficiais, podem se converter em um engajamento mais profundo. Vimos isso nas manifestações de junho de 2013. Quando a onda refluiu e boa parte dos manifestantes continuou na rua, criaram-se laços fortes, que não existiam, entre vários grupos que não dialogavam antes”, comenta Teixeira que, como parte de sua tese de doutorado, analisou as publicações na mídia tradicional e nas redes sociais durante as manifestações de 2013.

Na pesquisa, ele observou que as manifestações foram permeadas por uma narrativa, com imagens e relatos que se somaram e se sobrepuseram, formando um modo de enxergar os acontecimentos. Para ele, essa narrativa era diferente daquela publicada na mídia tradicional e foi importante por construir a realidade das ruas durante o processo. “Ajudou a criar um sentimento de pertencimento em rede. Mais importante do que apontar eventuais erros da grande mídia, foi favorecer a criação desse sentimento de “nós”?, de um sujeito político que acontecia em ato durante as manifestações. Esse foi o grande ganho, a meu ver, de junho de 2013”, conclui.

Sobre a efetividade dessas novas formas de mobilização, os pesquisadores afirmam que não se pode exigir uma transformação imediata, ainda que sejam bem sucedidos em vários casos. No caso do movimento #OcupeEstelita, o consórcio foi impedido de iniciar o Projeto Novo Recife. “Eles iam construir sem um plano urbanístico; que agora foi feito. Ninguém sabia que construiriam sem análise de impacto ambiental, aprovação do Iphan Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Dnit Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes e do Ministério da Cultura. Hoje todos sabem que o que eles forem erguer lá é eivado de irregularidades e ilegalidades. Disseminar isso foi um ganho concreto. Tematizar essa relação obscura entre o capital imobiliário e a política representativa também é um ganho. Conseguimos colocar isso numa roda de conversa de bar. São conquistas concretas e abstratas e não concretas e materiais”, resume Pinto.

De toda forma, o papel da internet como facilitador é indiscutível. “O uso da tecnologia é um caminho sem volta e faz parte de um contexto em que as pessoas já estão acostumadas a se relacionar em rede e, portanto, é natural que pensem em se manifestar em rede”, diz Antônio Teixeira. Mas é apenas um dos caminhos possíveis, já que também há os espaços institucionalizados para participação política, do nível municipal ao federal.

Quem participa pelas vias institucionais


A Constituição de 1988 abriu caminho para o surgimento de instâncias de interface entre Estado e sociedade, como ouvidorias, reuniões com grupos de interesse, audiências públicas, discussões com conselhos setoriais, consultas públicas, conferências, comissões e conselhos. A abrangência dessas instâncias varia entre municípios e estados, mas em nível federal cerca de 90% dos programas contam com esses espaços, segundo relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com dados de 2010.

O potencial desses espaços é articular, de maneira sistematizada, a capacidade de o poder público agir de acordo com as demandas da sociedade, e eles têm tido um papel efetivo, como explica Alexander Cambraia N. Vaz, pesquisador do Ipea. “Se considerarmos que o objetivo último de uma instituição participativa se circunde somente ao aumento da participação (a participação pela participação), notamos que elas cumprem efetivamente seu papel, como diversos estudos nos mostraram nas últimas duas décadas. E se considerarmos também como objetivo dessas instituições a produção de impactos nas políticas públicas, as evidências mais recentes também nos apontam que elas vêm cumprindo efetivamente seu papel”, afirma.

Os conselhos gestores, por exemplo, são órgãos vinculados ao poder executivo com a participação da sociedade para definir prioridades para a agenda política, formular, acompanhar e controlar as políticas públicas. A capilaridade desse tipo de instituição é outro ponto que se destaca nas pesquisas, segundo Carla Almeida, professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM) já que quase todos os municípios brasileiros contam com essas instâncias para as áreas de saúde, assistência social e direitos da criança e adolescente. Para outras áreas como direitos das mulheres e política urbana, esses espaços também vêm sendo estabelecidos, conforme são criadas novas secretarias.

Outras pesquisas, segundo Almeida, apontam que os conselhos gestores e as conferências públicas têm conseguido tornar os processos decisórios mais plurais, mais inclusivos. Um exemplo é a maior presença feminina nos conselhos gestores do que nos espaços legislativos e executivos, mostrando, portanto, uma porta de entrada importante para as mulheres na esfera política.

Porém, o potencial democrático dessas instituições apresenta vieses, como discute Alexander Vaz em artigo recente. O aumento da escolaridade e da renda impacta positivamente nas chances de um indivíduo participar – considerando conselhos gestores, conferências temáticas e orçamento participativo. O fato de já estar envolvido em associações ou práticas políticas também propicia maior engajamento.

As conclusões se baseiam em pesquisa com 2200 participantes, de todas as regiões do país. O estudo indica a probabilidade média de que 9% da população esteja inserida em instâncias participativas, o que corresponderia a 17 milhões de brasileiros. Na amostra, a participação é maior no Nordeste, com 50% do total. A pesquisa aponta também um ligeiro equilíbrio entre a participação de homens e mulheres, sendo a presença feminina (55%) um pouco maior nas conferências. A amostra é de caráter independente, já que corresponde a menos de 5% da população brasileira.

Interessado em outra instância de participação, as audiências públicas, o professor José Armando Ponte Dias Junior, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UFRN), considera que também são espaços importantes, mas falta legislação específica para que se fortaleça o seu papel. Hoje, as regras para essas sessões em estados e municípios se inspiram, em grande parte, no modelo federal, sendo que a constituição atribui às comissões do Congresso e do Senado a competência para realizar as sessões, mas não há obrigatoriedade.

Assim, analisando o caso de audiências públicas realizadas em Natal, em 2014, Dias Júnior observa que, embora elas aconteçam com frequência, com o público ocupando boa parte dos cerca de 100 lugares na câmara, os parlamentares não aparecem, exceto o propositor. Além de obrigar a participação deles, a lei também poderia garantir que a própria população convocasse essas audiências. “Hoje não é a sociedade que diz quando quer ser ouvida, é o parlamentar que diz quando quer ouvir a sociedade. Talvez isso seja uma deturpação”, diz.

A participação pública poderia ser mais presente. “A democracia participativa se resume hoje a referendos, plebiscitos, que praticamente não vemos. Estamos muito a reboque da democracia representativa que é criticada por todos os lados. Não é abolir a representação, mas dar mais ênfase à participação dando importância igual à da representação”, diz.

A reforma política se projeta como o caminho mais importante para que a democracia representativa e participativa atenda os cidadãos. O debate, porém, não pode se dar apenas entre políticos. “O grande desafio é fazer o debate circular pela sociedade. Até porque, se ficar muito circunscrito ao Congresso Nacional, pode ser que essa reforma não tenha o alcance necessário. Além da atuação por meio dos movimentos sociais, das ONGs e outras organizações, os cidadãos que, neste momento, não estão organizados, têm que procurar se envolver com o assunto, procurar discutir de forma cotidiana no seu bairro, na sua escola, no seu trabalho, criar momentos para fazer esse debate, para que ele flua e as demandas da sociedade acabem repercutindo de forma mais ampla”, completa Carla Almeida.