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Entrevistas
Sidarta Ribeiro
Embora faça alguma diferença, não é exatamente o tamanho do nosso cérebro que nos deixa em vantagem sobre os outros animais, mas sim o que fazemos com ele, como utilizamos os circuitos que desenvolvemos e a capacidade de reformar esse circuito no contato com a realidade. O diretor científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal fala sobre esta e outras questões como a importância da pesquisa com primatas brasileiros, as similaridades entre humanos e primatas, e a perda de características tidas como unicamente humanas.
Por Germana Barata e Daniela Lot
10/12/2007

Jovens chimpanzés venceram adultos humanos em testes de memória com números, como mostraram os resultados de uma pesquisa desenvolvida na Universidade de Quioto, no Japão, deixando muito marmanjo de queixo caído. A singularidade e a superioridade humana está, mais uma vez, em xeque. Afinal, o que nos diferencia de nossos parentes próximos, os grandes primatas? Sidarta Ribeiro, neurocientista e diretor científico do Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN-ELS) não esconde que temos nossas diferenças, que somos a espécie que domina o Planeta e os outros animais, mas lembra que “na medida em que os animais podem mostrar que têm outras inteligências e habilidades, vemos que não existe uma inteligência, e sim várias”. A capacidade de produzir e utilizar símbolos parece também não ser exclusividade humana, de acordo com pesquisas desenvolvidas por Ribeiro e colegas. Nesta entrevista à ComCiência , ele aponta que o Brasil, embora sem tradição com pesquisas com grandes primatas, tem muito o que apostar na riqueza de nossos macacos, que representam 70% de todas as espécies conhecidas no mundo, e enfatiza que “não se pode deslocar o fato de que destruímos todo o planeta, com a necessidade de estudá-los em laboratório”. Dentre os planos futuros, ele revela que o IINN-ELS planeja a construção de um laboratório pioneiro em formato de arena que deverá monitorar a interação entre animais e registrar a atividade do cérebro no ato das ações.

ComCiência - O cérebro é tido como o órgão de maior importância para nos distinguir dos animais. Porém, como indicam as pesquisas da neurocientista carioca Suzana Herculano Houzel, não apenas o tamanho do cérebro, mas suas capacidades de previsibilidade, raciocínio e interação com outros seres parece ser o diferencial determinante para o fato de os humanos terem se disseminado pelos quatro cantos do mundo, enquanto outros animais se restringiram a determinados nichos. Qual o papel do cérebro nessa conquista do território terrestre?
Sidarta Ribeiro - O que nos permitiu fazer essa ocupação generalizada do ambiente é o produto do cérebro, que é o comportamento. Temos uma grande capacidade de transmissão cultural desse comportamento, então não temos apenas o que é inato, mas temos a capacidade de aprender muito e de ensinar para nossos filhos. Então vai-se criando uma situação cumulativa, que gera esse desenvolvimento exponencial da tecnologia, da economia. Não é o tamanho do cérebro que é essencial, mas sua organização. É como o computador: o essencial é a organização fina dos circuitos dentro dele. É claro que tamanho importa em alguma medida, mas é uma medida mais grosseira. Temos um cérebro mais ou menos do tamanho que deveria ser pela biologia geral. Agora, o que fazemos com ele, como utilizamos os circuitos que desenvolvemos e a capacidade de reformar esse circuito no contato com a realidade é uma vantagem sobre os outros animais. O cérebro do rato parece muito com o cérebro de um ser humano se você olhar com uma lente de determinado aumento, metaforicamente. O cérebro de um macaco mais ainda. Mas os tamanhos e as proporções são diferentes. O que entendemos pouco são, sobretudo, os detalhes, a coisa fina da “circuitaria” de conexões, que são plásticas.

ComCiência - O que vem primeiro, o desenvolvimento do cérebro ou o desenvolvimento gerado pelo seu uso?
Ribeiro -
Essa é a pergunta do ovo e da galinha, o que veio primeiro? A evolução indica que tudo é uma cadeia, temporal. Uma coisa vem e puxa a outra, a outra vem e puxa essa. A linguagem é algo central nesse desenvolvimento. Não somos a única espécie que tem linguagem, nem somos a única que tem linguagem simbólica. Fazemos um determinado tipo de símbolo, que é um símbolo que se transforma em argumento, e que é composto por um complexo de símbolos. Isso é uma capacidade que os seres humanos têm, aparentemente, muito maior do que a imensa maioria de outros animais. Conhecemos pouco os animais, então fazer esse tipo de afirmação é um pouco perigoso. Saiu agora esse resultado dos chimpanzés no Japão (de pesquisa que acaba de ser publicada na Current Biology, em que os pesquisadores japoneses Sana Inoue e Tetsuro Matsuzawa, do Instituto de Pesquisas em Primatas, utilizaram humanos e chimpanzés em testes de memória para números, o que revelou que chimpanzés de 5 anos tiveram melhor performance que humanos adultos) que depende do que chamamos de inteligência. É evidente que dominamos o planeta e dominamos os outros animais. Nenhum animal questiona o nosso poder na Terra, mas isso não significa que somos superiores ou melhores em tudo. Somos mais inteligentes. E o que é inteligência? É tanta coisa. São todas as habilidades e as capacidades de transformá-las.

ComCiência - No artigo "Symbols are not uniquely human" (Os símbolos não são unicamente humanos) para o periódico Biosystems (vol.90, n.1) de julho deste ano, o senhor e colegas demonstraram que existem símbolos vocais em espécies não humanas, nesse caso em macacos vervet (Cercopithecus aethiops) – o que corrobora a hipótese de que existe a competência simbólica em animais. No entanto, alguns pesquisadores argumentam que a capacidade de produzir, criar e utilizar símbolos seria uma singularidade humana.
Ribeiro -
A noção de símbolo que é utilizada por nós, e por outros autores, é a noção de símbolo da semiótica, de Charles Peirce, que diz que só há três tipos de signos: os ícones, os índices e os símbolos. Pela definição lógica de símbolo, que é um signo que representa o seu objeto mesmo na ausência do objeto, podemos demonstrar que esses animais têm símbolos. Por outro lado, a neurologia mostra que quanto mais conhecemos os bichos mais vemos a complexidade da comunicação deles e dessa situação específica onde eles falam de algo que não necessariamente está lá. Então não é o caso de uma sincronia espaço-temporal, que seria o caso de um índice, nem a vocalização que eles fazem parece com a coisa, que seria o ícone; é um nome, uma convenção, uma lei, é algo combinado entre os indivíduos daquela comunidade. E nós não somos os únicos que temos isso, mas somos os únicos que temos a capacidade de concatenar símbolos de formas muito complexas. Os outros animais concatenam símbolos também, mas de forma simples, com um número pequeno de símbolos e com poucas combinações, aparentemente.

ComCiência - Voltando à pesquisa feita no Japão, temos aí mais uma vez a imagem de superioridade humana para a capacidade neurológica sendo minada. Isso mostra que a definição de inteligência está constantemente sendo modificada?
Ribeiro -
Não existe uma noção de inteligência, existem várias, tudo depende do freguês. Os nazistas tinham uma. Nós gostamos de pensar que somos muito diferentes até para poder justificar tratarmos os animais como coisa. Na medida em que os animais podem mostrar que têm outras inteligências e habilidades, vemos que não existe uma inteligência, e sim várias. A inteligência do Pelé jogando futebol é totalmente diferente da inteligência de um grande mestre de capoeira se apresentando, que é completamente diferente da inteligência de Einstein formulando suas teorias e teoremas. A inteligência de um pássaro no ar é infinita comparada com a nossa. Então inteligência é o que? É a capacidade de interagir de forma produtiva e adaptativa no meio ambiente? Se for isso, então a inteligência da bactéria pode ser tão grande quanto a nossa. Se definirmos inteligência de uma forma mais restrita, que tem a ver com cérebro, com memória, com comportamentos aprendidos, mesmo assim veremos que dentro de nossos parentes próximos, os primatas, as inteligências são muito diferentes. Esse teste com chimpanzés no Japão é muito interessante porque é uma tarefa de laboratório, não temos que resolver problemas naquele nível de poder para sobreviver; é uma tarefa de trabalho na tela do computador. Então é como se ela estivesse dizendo que os seres humanos conseguem guardar 7 ou 8 números de telefone na cabeça, enquanto o chimpanzé vai conseguir gravar 10, 12 ou 15, é semelhante a isso o resultado experimental que eles tiveram. E daí? O que se faz com essa informação? Uma coisa que você pode fazer com isso é aumentar o respeito aos chimpanzés (risos), porque afinal de contas temos um desrespeito muito grande pelos animais de forma geral e pelo planeta, poluindo tudo, estragando os ambientes, colocando espécies em extinção. Dentro da ciência, é também um golpe naqueles que ainda acreditam que há raças de humanos com capacidades superiores. Isso é um absurdo, mas tem gente que ainda defende isso. Eles utilizam testes tão “bacanas” quanto esse aí. Então a questão é colocar em xeque os testes de inteligência que são usados para fazer separações político-ideológicas entre os seres humanos, e entre os grandes símios.

ComCiência - Em relação à aprendizagem, alguns autores colocam que existe um limite crítico para que ocorra, por exemplo, a aprendizagem da linguagem. Existe um limite crítico para a aprendizagem da linguagem ou para outras capacidades?
Ribeiro -
Não trabalho diretamente com isso, mas posso dizer o que acho, baseado nas coisas que leio, que eu sei, assisto, converso. Existem períodos críticos para várias coisas no ser humano. Quanto mais básicas forem, em geral, mais cedo é o período crítico da aprendizagem. Como a visão, é importante ter uma boa visão no início da vida, nos primeiros meses e anos. No caso da linguagem tem alguma indicação de que existe um período crítico, porém não parece ser uma faixa estreita, mas uma faixa ampla que varia muito conforme o indivíduo. Nascemos com a capacidade inata de aprender a língua, mas não nascemos com a língua escrita na cabeça, é como um hardware capaz de aprender um software. Se você puser uma versão pobre da língua, ele vai aprender pobremente, se você puser uma interação lingüística rica, ele vai aprender rapidamente, porque ele está armado, a “circuitaria” está geneticamente e ontogeneticamente construída para receber e aprender a língua. Para uma criança aprender a língua ela precisa de muito pouca exposição à palavra.

ComCiência - Quase não há pesquisa no Brasil com grandes primatas, seja por não termos o habitat natural ou mesmo centros de pesquisa em que haja estudos em cativeiro. O Brasil é, no entanto, proprietário de 70% das espécies de primatas do mundo. Como a pesquisa com primatas e outros animais pode nos ajudar a compreender o funcionamento do cérebro humano?
Ribeiro -
Os grandes primatas são nossos parentes mais próximos e mais complexos, e, por isso, é muito importante estudar o comportamento deles e como seu cérebro produz esse comportamento. Eles são extremamente inteligentes, têm uma linguagem que mal entendemos, têm cultura. Mas os primatas do novo mundo são muito pouco conhecidos. Os mais conhecidos são o macaco rhesus, na neurofisiologia, e o chimpanzé, na parte de cognição. Estamos apostando muito no estudo de primatas que são tipicamente daqui como, por exemplo, o sagüi. Há 20, 30 anos estão sendo criados aqui no Rio Grande do Norte, na Universidade Federal, núcleos de primatologia e de fisiologia, e apostamos que esses animais são de muito interesse para estudos de linguagens e mecanismos neurais. Quanto ao estudo de animais em geral nas pesquisas, isso é uma polêmica que temos hoje no país. Os defensores dos direitos dos animais prestam um grande serviço à sociedade quando lutam para que estes animais sejam muito bem tratados, com todo o cuidado possível, com toda limpeza e higiene, com anestésicos e antibióticos apropriados para que eles possam se habituar bem ao laboratório. Por outro lado, eles prestam um grande “deserviço” quando combatem simplesmente a pesquisa, porque é uma posição ignorante da necessidade que temos de estudar esses bichos em todos os sentidos, desde a pesquisa básica de entender como funcionam seus organismos até a pesquisa aplicada para poder gerar remédios, produtos, conhecimento de toda ordem sobre as doenças, etc. Acredito que devemos discutir nesse contexto como tratamos os animais para outras funções. A ciência não come o animal como a gente come o frango, a carne e o peixe fisicamente. Come com o conhecimento, mas utiliza um número muito pequeno de animais quando comparado com o que se faz em abatedouros. Precisamos discutir seriamente o bem-estar dos animais, discutir o que fazemos com o planeta e como não deixamos espaço para eles, como e para quê utilizamos e tratamos os bichos. Querer impedir a pesquisa com animais, certamente é um obscurantismo, principalmente no Brasil, que é um país que precisa muito se desenvolver em termos de pesquisa.

ComCiência – Ainda há muito o que entender sobre os primatas, no entanto, as espécies, sobretudo os grandes primatas, estão cada vez mais ameaçadas de extinção, com seus habitat encolhendo a cada ano. Num futuro próximo, em que os animais ficarão cada vez mais confinados em cativeiro, qual é a perspectiva para a pesquisa de neurociência e de comportamento com esses animais?
Ribeiro -
Não podemos trabalhar com nenhuma espécie ameaçada de extinção, como com os chimpanzés, que estão em perigo iminente de extinção. Os grandes símios são animais que têm que ser tratados com o máximo de respeito e o estudo deles, na minha opinião, deve ser estritamente comportamental, e deve-se fazer de tudo para entendê-los melhor, respeitá-los mais, para que possam se reproduzir e se disseminar pelo planeta. No caso dos macacos do novo mundo, nem os Cebus sp (macaco-prego) nem os sagüis estão em risco de extinção. Mesmo assim, é preciso ter muito cuidado e atenção em relação à saúde e bem-estar dos animais. O que não se pode fazer é deslocar o fato de que destruímos todo o planeta, não deixando nichos para os animais ocuparem, com a necessidade de estudá-los em laboratório. Uma coisa é colocarmos eletrodos na cabeça de um rato ou de um sagüi, outra coisa, bem diferente, é fazermos isso com um chimpanzé. O chimpanzé é quase um ser humano, e não vamos fazer isso com nós mesmos, não devemos.

ComCiência – O senhor disse que quanto mais temos a oportunidade de estudar o comportamento dos animais, mais percebemos que é muito mais complexo do que inicialmente imaginávamos. Antes se dizia que o que era singular no ser humano era a linguagem, e então se descobriu que não era a linguagem, e sim os símbolos. Agora não são mais os símbolos que mostram a singularidade dos humanos. Seria a consciência e a percepção da identidade, de si próprio e do outro, indícios de singularidade humana?
Ribeiro -
Tudo indica que temos capacidades únicas. Por outro lado, os grandes símios parecem ter uma grande capacidade de auto-consciência também que, embora distinta da nossa, existe. Assim como os golfinhos. É tão difícil pensarmos nisso porque estamos sempre pensando a partir do nosso próprio ponto de vista, então é muito difícil reconhecer a consciência do diferente. É possível, por exemplo, que os golfinhos sejam mais complexos do que imaginamos, e já sabemos que eles são muito complexos. Eles vivem num habitat completamente diferente e são bichos muito diferentes. Um exemplo diferente é o cachorro, um animal que se desenvolveu em contato com o ser humano e com a cultura humana, e ele foi selecionado para fazer uma série de comportamentos que só existem por causa do contato com o ser humano. Têm alguns estudos que mostram que determinados símbolos humanos são melhor compreendidos por cachorros (risos) do que por lobos e por chimpanzés. Isso porque nós fizemos eles assim, nós selecionamos os animais que entendiam isso.

ComCiência – O senhor acha que isso muda nossa relação com os animais?
Ribeiro -
Acho que isso muda o tempo todo. Estamos nos dando conta de que sim, somos especiais, mas a razão da nossa especialidade é sutil, ainda não a entendemos muito bem. Por outro lado, temos muita responsabilidade justamente por sermos especiais. Responsabilidade conosco, porque estamos destruindo o planeta, e com o planeta inteiro. Somos tão inteligentes, mas não conseguimos nos organizar nem para acabar com a fome.

ComCiência – Quais as perspectivas de pesquisas com primatas no Instituto Internacional de Neurociências de Natal?
Ribeiro -
Estamos fazendo um estudo que ainda não tinha sido feito, que é um estudo de expressão de proteínas, estudos comportamentais olhando-se a expressão gênica no cérebro de sagüis, preparando para inaugurar um laboratório para fazer estudos neurofisiológicos. Já fizemos alguns estudos comportamentais em cativeiro e também no campo, mas agora teremos uma arena circular, onde os animais (sagüis) serão colocados e, com isso, poderemos registrar tudo o que ele fala e ouve em tempo integral, e num momento subseqüente poderemos registrar o que está acontecendo no cérebro dele por rádio-freqüência, estudar a conversa deles e o que acontece no cérebro quando estão conversando. Na hora em que estiver pronto, será a única arena desse tipo no mundo.