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Distúrbios mentais inspiram cinema
Por Carolina Ramos
10/03/2011

Uma lista infindável de produções nas áreas de literatura, cinema e teatro manifesta o interesse de seus autores pelo conhecimento científico. Isso acontece principalmente entre os cineastas, especialmente em uma área de estudo que desperta a curiosidade por tentar desvendar e compreender melhor a natureza humana: os transtornos mentais analisados pela psicanálise e psiquiatria.

Rico em obras inspiradas nos mais diversos campos da ciência, o cinema se destaca por apresentar em algumas produções uma forte crítica à psiquiatria, mais especificamente no que diz respeito ao tratamento dos distúrbios mentais que, em determinada época, podiam ser interpretados como brutais. “Temos um longo período de crítica contra a psiquiatria nos anos 70 do século passado, ilustrado especialmente pelo filme Um estranho no ninho”, comenta o médico José Paulo Fiks, doutor em comunicação social e autor de quatro livros relacionando psiquiatria e cultura.

O filme mencionado por Fiks – cujo título original é One flew over the cuckoo’s nest, de 1975, de grande sucesso e ganhador de muitos prêmios, entre eles cinco Oscars – é estrelado pelo ator Jack Nicholson, interpretando um detento rebelde chamado Randall McMurphy que finge ser louco para ser transferido para um asilo onde, ele imaginou, seria mais fácil viver. Lá, é submetido à lobotomia, técnica que consiste na retirada de uma parte do cérebro de pacientes com certos tipos de doenças mentais como forma de acalmá-los. Para casos assim, a lobotomia não é mais praticada, dando lugar aos medicamentos ou psicoterapia.

Para Fiks, as pazes da psiquiatria com as artes começaram a ser feitas pela literatura. “Vários autores, como William Syron em A escolha de Sofia, e outros, abriram suas depressões via literatura. Hoje, vemos entre os livros mais vendidos vários títulos que tratam de desordens mentais, a exemplo de depressão, transtorno bipolar, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtornos de personalidade”.

Já no cinema, é a partir dos anos 90 que tem início a produção de alguns filmes que tentam retratar o transtorno mental de forma mais próxima à clínica, muito provavelmente acompanhando a evolução dos tratamentos psiquiátricos, que passaram de técnicas de tratamento como a lobotomia para a medicação e a psicoterapia. Exemplos não faltam. Destacando-se apenas alguns, tem-se o retrato do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) em Melhor é impossível (As good as it gets, 1997), protagonizado pelo ator Jack Nicholson que, novamente, encarna um personagem fora dos padrões de comportamento estabelecidos; o transtorno bipolar como foco em Mr. Jones (Mr. Jones, 1993), drama estreado pelo ator Richard Gere, e Garota interrompida (Girl, interruped, 1999) que trata de depressão e de transtornos de conduta alimentar e que rendeu um Globo de Ouro e o Oscar de melhor atriz coadjuvante à atriz Angelina Jolie.

Essa ampla galeria de personagens portadores de transtornos mentais nem sempre é ficcional, mas também artistas e personalidades, vítimas desses distúrbios têm sido retratados no cinema. São pessoas que fizeram história em vários campos artísticos e na ciência. Dois deles são retratados nos filmes As horas (The hours, 2002) abordando vários quadros depressivos e de ansiedade que atormentavam a escritora Virginia Woolf, e Uma mente brilhante (A beatiful mind, 2001) contando a história do matemático John Nash, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1994, portador de esquizofrenia.

Os filmes, peças e livros que abordam essa questão, acabam provocando uma “divulgação” das doenças mentais, o que tem como consequência o aumento da procura pelos consultórios médicos. “Os pacientes chegam em busca de esclarecimento. Mas outro aspecto importante é a diminuição de preconceitos. Quando determinado assunto polêmico, como o transtorno mental, a psiquiatria, a psicoterapia e, especialmente, o uso de psicotrópicos é trazido à tona, o debate tem sido imediato. Isso ajuda a difundir as questões levantadas pelos diagnósticos e pelos tratamentos, o que é extremamente positivo para todos”, avalia Fiks.

Essa divulgação não se restringe ao campo psiquiátrico e colabora com a ampliação do conhecimento na área das doenças neurológicas, a exemplo do autismo no caso do filme Rain man (Rain man, 1988) – que deu o Oscar de melhor ator a Dustin Hoffman em 1989. O filme contribuiu para a divulgação do autismo mais do que todos os artigos científicos já escritos sobre o assunto, na avaliação do médico neurologista Edson José Amâncio. Já o filme argentino O filho da noiva (El hijo de la novia, 2001), elogiado pelos críticos e ganhador de muitos prêmios, retrata de maneira emocionante o caso da personagem Norma, uma vítima de Alzheimer.

Além disso, o impacto das produções cinematográficas pode, por outro lado, influenciar os caminhos da própria ciência. Um exemplo é, mais uma vez, o filme Um estranho no ninho. “Essa produção ajudou a soterrar a lobotomia, usada até pouco tempo”, comenta o neurologista Amâncio. A técnica foi desenvolvida pelo neurologista português António Egas Moniz (Egas), e garantiu a ele o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949. Nos Estados Unidos, onde a lobotomia foi aprimorada, mais de 30 mil cirurgias foram realizadas. “ Era uma técnica consagrada no tratamento de esquizofrenia, entre outros transtornos. Afinal, ainda não havia remédio para esses casos”, diz Amâncio.

Arte inspira ciência

Se, por um lado, é possível concluir que a ciência inspira a arte, seria possível então admitir que a relação é recíproca? A resposta positiva em relação à psicanálise, que encontra material fértil nos artistas e em suas produções para a construção de suas teorias situadas no campo dos distúrbios mentais. O médico psiquiatra Cláudio Rossi, em seu artigo Arte e psicanálise na construção do humano, coloca: “como se sabe, boa parte das teorias psicanalíticas, posta em termos científicos, baseou-se em obras de arte. Freud não escondia sua admiração por Shakespeare e por Goethe. Seu estudo sobre a obra e a vida de Leonardo da Vinci foi fundamental para expor suas teorias sobre a sexualidade e em Wilhelm Jensen encontrou um bom apoio para sua teoria sobre a psicose. Isso para não dizer que a pedra angular de sua construção encontrou no Édipo rei, de Sófocles, sua possibilidade de vir à luz”.

Não é só na psicanálise que é possível encontrar relações entre as produções artísticas e a ciência. A neurologia também encontra na arte explicações que contribuem para o avanço do conhecimento da área. Por exemplo, a primeira descrição da epilepsia do lobo temporal foi feita por um escritor – Fiódor Dostoiévski – e não por um médico. “A neurologia rende tributo a Dostoiévski. Ele – que sofria de epilepsia do lobo temporal – foi o autor da primeira descrição, no romance O idiota, da aura (estágio que antecede a crise epilética) com alegria e êxtase”, comenta Amâncio, um profundo conhecedor da obra do escritor russo e autor de vários artigos, ensaios e de um romance, ainda não publicado, sobre ele.

O livro Proust foi um neurocientista – como a arte antecipa a ciência aborda justamente o fato de artistas tomarem a dianteira em alguns casos. Em seu artigo Madeleine, sinapses e neurônios, publicado na edição de 26 de fevereiro deste ano do jornal O Estado de S. Paulo, o autor Sérgio Augusto comenta o lançamento dessa obra: “Na capa poderia estar o pintor Paul Cézanne ou o compositor Igor Stravinsky ou o poeta Walt Whitman ou as escritoras Virginia Woolf, Gertrude Stein e George Eliot, pois todos estes (...) anteciparam descobertas da neurociência e sacaram verdades (reais e tangíveis) sobre a mente humana que só agora a ciência está ‘ redescobrindo’, segundo o autor do livro, Jonah Lehrer”.