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Editorial
A raridade de Mindlin
Por Carlos Vogt
10/04/2011

I

José Ephim Mindlin nasceu em São Paulo em 8 de setembro de 1914, tendo se formado em direito, em 1936, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi redator do O Estado de S. Paulo, de 1930 a 1934, o mais jovem a entrar na empresa, com 16 anos. Advogou de 1937 a 1950, quando foi um dos fundadores da Metal Leve S/A, envolvendo-se, a partir daí, de modo definitivo, com as questões relativas ao desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro. De interesses muito diversificados tanto no campo cultural, como da economia, da política (não partidária), da ciência e da vida empresarial, atuou em todos esses setores, com isso fazendo parte de numerosos conselhos e entidades, no Brasil e exterior. Foi, de 1975 a 76, secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia do estado de São Paulo, quando estruturou a carreira de pesquisador, unificando pela primeira e única vez essas áreas tão próximas, social e epistemologicamente, e tão distantes na vida administrativa e burocrática. Foi um dos fundadores do Uniemp, entidade destinada a promover a aproximação entre a universidade e a empresa. Fez parte do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, do CNPq e do IPT. Foi durante muitos anos vice-presidente da Fiesp, tendo sido diretor titular do Departamento de Tecnologia – Detec. Foi membro colaborador da Academia Brasileira de Ciências, do Conselho Consultivo Internacional da Fiat, na Itália, e ainda de numerosos outros conselhos, destacando-se os do atual Iphan (antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), da Sociedade de Cultura Artística de São Paulo, do qual era presidente, da Vitae – Apoio à Cultura e Programas Sociais, de vários museus brasileiros, entre os quais, o Museu de Arte Sacra de São Paulo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), e o Museu Lasar Segall, da Fundação Crespi, da Sociedade Amigos da Biblioteca Nacional, e do Museu de Arte Moderna de Nova York (de cujo conselho internacional era membro honorário). Foi membro emérito da diretoria da John Carter Brown Library, de Providence, R.I., dos Estados Unidos, uma das principais bibliotecas do mundo de livros raros sobre as Américas, e da Associação Internacional de Bibliófilos, com sede em Paris, sendo presidente do conselho da Aliança Francesa de São Paulo. Era também membro do conselho da Edusp e do conselho consultivo do Centro de História da Ciência e Tecnologia da USP. Tendo nos livros um interesse central de vida, iniciou aos 13 anos a formação de sua biblioteca, reunindo mais de 38.000 títulos – dos quais cerca de 10.000 são obras raras –, perto de 60 mil livros e documentos, abrangendo 500 anos de história. Foi também membro do conselho curador da Fundação Getúlio Vargas, e recebeu o título de professor honorário da Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Recebeu também o título de doutor honoris causa em letras, da Brown University, de Providence, R.I., nos Estados Unidos. Era membro honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Pernambuco, e da Academia de Letras da Bahia. Promoveu edições de livros e revistas, publicou numerosos artigos e fez numerosas conferências aqui e no exterior. É autor de Uma vida entre livros – reencontros com o tempo, e lançou em 1998 o cd Prazer da poesia. Recebeu o prêmio Juca Pato como intelectual do ano de 1998 e foi eleito membro da Academia Paulista de Letras, em 1999, e membro da Academia Brasileira de Letras em 2006. Recebeu numerosos e variados prêmios e condecorações, no Brasil e no exterior. Em 1998 foi instaurado pelo CNI o Prêmio CNI José Mindlin de Gestão de Design.

Em 2005, publicou, em português e em inglês, um guia magnífico de sua biblioteca intitulado Destaques da biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin apresentando, em 2 volumes, quase 1.000 peças do acervo. Trazendo uma introdução e comentários de José Mindlin, um volume – Brasiliana – trata dos livros e documentos relativos ao Brasil, e o outro – Além da Brasiliana, de obras estrangeiras, com documentos, curiosidades, ilustrações, gravuras, iluminuras, manuscritos e encadernações. A publicação recebeu o prêmio Jabuti 2006.

Além da importância da obra em si, publicada pela Edusp, pela Biblioteca Nacional e pela Fapesp, tenho por ela uma afeição especial, pois era, na ocasião, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e tive a felicidade de receber e aprovar no ato o pedido de apoio de Mindlin, que foi me ver acompanhado do Plínio Martins, diretor da Edusp, com o projeto de edição.

Em 2006, Mindlin doou todas as obras brasileiras da sua vasta coleção à Universidade de São Paulo, totalizando cerca de 17 mil títulos – algo como 40 mil volumes –, que passou a se chamar Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Dentre as raridades estão documentos do século XVI com as primeiras impressões que padres jesuítas tiveram do Brasil, jornais anteriores à Independência e manuscritos que resgatam a gênese literária de grandes obras, como Sagarana (de Guimarães Rosa) e Vidas secas (de Graciliano Ramos). A digitalização do material está sendo realizada com a inserção de pelo menos três novas obras por dia no site da Brasiliana Digital , lançada em junho do ano passado. Já são cerca de 1.100 livros digitalizados, boa parte já disponível no site, o que representa cerca de quatro mil documentos, entre livros, imagens, mapas e manuscritos.

José Mindlin morreu aos 95 anos de idade, em 28 de fevereiro de 2009, na cidade de São Paulo.

II

Se a famosa tirada de efeito, entre tantas outras, de Nelson Rodrigues – Toda unanimidade é burra – fosse ela própria unânime, então ela seria burra. Mas a verdade é que ela é inteligente, pelo simples fato de que existe ao menos uma unanimidade inteligente que muitos conhecemos, aquela que, ao longo dos anos, foi se formando em torno da personalidade e do caráter de José Mindlin.

Advogado, empresário, intelectual, bibliófilo, colecionador, artista do gosto, Mindlin sintetizou bem esse elo indispensável do circuito literário que é o leitor que todo autor e toda grande obra almejam ter para a sua fortuna social e estética.

Todos sabemos da importância de Mindlin, de sua retidão de caráter, de sua capacidade de trabalho e de decisões acertadas, de sua generosidade, de sua vasta e sólida cultura, de sua admiração pela vida e, em especial, pela construção da existência feita do sol da criatividade e da beleza. Todos admiramos Mindlin, e aí está uma unanimidade inteligente.

José Mindlin promoveu edições de cerca de 40 livros e revistas de arte e literatura, e de bibliografia brasileira. Publicou numerosos artigos e fez inúmeras conferências no Brasil e no exterior, em associações e universidades, sobre todos os assuntos de que se ocupou. Gravou, juntamente com Davi Arrigucci Junior e com o crítico e historiador da literatura Antonio Candido, um CD com trechos do Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Lançou ainda outro CD, intitulado O prazer da poesia na voz de José Mindlin, contendo 28 poemas de grandes autores brasileiros, entre eles Olavo Bilac, Cecília Meireles, Carlos Drumond de Andrade, Manoel Bandeira e Vinícius de Moraes.

A esse propósito vale registrar que Mindlin, cujo ex libris, buscado em Montaigne é Je ne fay rien sans gayeté (Não faço nada sem alegria), dá uma pista importante para que possamos, ouvindo sua voz e suas entonações, aproximarmo-nos das miríades de tonalidades guardadas no silêncio das vozes seculares colecionadas em sua biblioteca, através das motivações do colecionador.

Emily Dickinson, em uma carta datada de 1876 que dirige a Thomas Wentworth Higginton, escreve que A pena tem muitas inflexões, mas a voz, apenas uma e com isso não só faz a defesa do ato de escrever e da leitura silenciosa, mas também nos leva, seus leitores, a indagar qual, entre todas as entonações possíveis da leitura de um texto literário, é a que mais se aproxima da representação de todo o potencial de significações que a pena do autor conseguiu produzir, ao escrevê-lo.

A mesma pergunta poderia ser formulada ao colecionador e amante dos livros que ao escolhê-los, selecioná-los, organizá-los em biblioteca, abrir-lhes as páginas envelhecidas para a leitura nova, apresentá-los e disponibilizá-los para outrem, faz como que uma composição que antes lhes era estranha e, desse modo, ao lê-los os reescreve. Com que voz, com que inflexão de pena, com que acento, com que ritmo de enunciação? Certamente os CDs gravados por Mindlin-leitor nos ajudarão muito a compreender melhor o Mindlin-autor dessa obra raríssima que é a sua biblioteca. Outro guia indispensável para essa compreensão é o seu Uma vida entre livros que traz, não por acaso, o subtítulo sugestivamente proustiano Reencontros com o tempo.

Não é também por acaso que o ex libris de Mindlin tenha sido buscado em Montaigne. Borges, esse amante inveterado dos livros, leitor contumaz que boa parte de sua vida teve, devido à cegueira, de ler pela voz de outrem, professa também essa forma de alegria e de felicidade que é a leitura. Emerson, diz ele numa conferência proferida na universidade de Belgrano em 1978, coincide com Montaigne quanto ao fato de que devemos ler unicamente o que nos agrada, que um livro tem que ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Sempre reli mais do que li. Creio que reler é mais importante do que ler, embora para se reler seja necessário já se haver lido.

Mindlin, além do bibliófilo competente e do leitor feliz, à Montaigne, à Emerson, ou à Borges, todos grandes leitores, foi também um releitor fiel. Uma de suas fidelidades era a constante releitura de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, ele mesmo um leitor tão apaixonado que nos dá sempre a sensação, ao lê-lo, de que o que lemos no que escreve é o caudal de riquezas literárias de suas leituras.

III

Em 1905, Proust escreveu e publicou um prefácio para a sua tradução do livro Sésame et les lys, de John Ruskin. Intitulado Sobre a leitura, o prefácio é tão mais importante que o prefaciado que acabou sendo publicado a parte, tendo também uma edição brasileira cuja tradução tive a felicidade de fazer. É um texto magnífico, um elogio fino da leitura e um estilo que antecipa em muito o que depois conheceríamos nos volumes de Em busca do tempo perdido.

Na abertura do texto lê-se: Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido.

No final, tomando como referência as duas colunas de granito cinza e rosa, na Piazzeta, em Veneza, que trazem sobre seus capitéis gregos, uma o Leão de São Marcos e a outra São Teodoro calcando com os pés o crocodilo, o autor anota: "Em torno das colunas rosas, voltadas para os seus grandes capitéis, os dias se agitam e zumbem. Mas neles interpostas, elas os afastam, preservando de sua fina espessura o lugar inviolável do passado: - do passado surgido familiarmente no meio do presente, com esta cor um pouco irreal das coisas que uma espécie de ilusão nos faz ver a alguns passos, e que, na verdade, estão a séculos de distância; orientando-se em todo seu aspecto um pouco diretamente demais ao espírito, exaltando-o um pouco como, sem surpresa, um espectro de um tempo sepultado; no entanto, ali, no meio de nós, próximo, tangível, palpável, imóvel ao sol".

Entre essas duas colunas, toda a rica reflexão do autor sobre a importância da leitura na formação e no desenvolvimento do espírito humano.

Assim, a biblioteca de Mindlin. Assim, a sensação que se experimenta quando nela se entra e aí se sente a imensa e contagiante felicidade que irradiava de seu organizador para o gabinete mágico que resultou, ao longo dos anos, de sua dedicada e paciente organização. Como diz Borges, nesse gabinete mágico que é uma biblioteca, encontram-se, encantados, os melhores espíritos da humanidade, mas que esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir o livro; aí, eles despertam.

É isso o que fazia Mindlin, para o seu prazer de leitor e para a alegria da cultura nacional.