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Artigo
Memórias Reveladas e os arquivos do período da ditadura militar
Por Inez Stampa
10/04/2011

O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas surgiu a partir da compreensão de que a memória é um bem público que se encontra na base do processo de construção da identidade social, política e cultural de um país. O Memórias Reveladas foi criado pela Casa Civil da Presidência da República, em 13 de maio de 2009, com o objetivo de garantir a preservação e promover a difusão de informações contidas em acervos referentes às lutas políticas travadas no país durante o período do regime militar.

Administrado pelo Arquivo Nacional, órgão central do Sistema de Gestão de Documentos de Arquivos (Siga) e integrante da estrutura do Ministério da Justiça, o Memórias Reveladas vem possibilitando, de forma pioneira na área arquivística brasileira, que sejam estabelecidas parcerias entre pessoas físicas, instituições e entidades públicas e privadas, integradas por intermédio de uma rede de intercâmbio de dados e informações de interesse para o estudo do período da ditadura militar. Essa rede, denominada “ Rede Nacional de Cooperação e Informações Arquivísticas – Memórias Reveladas”, conta, em 2011, com 55 entidades e instituições parceiras em todo o Brasil e, até mesmo, no exterior.

Atualmente, o acervo do período da ditadura militar sob a guarda do Arquivo Nacional, tanto na sede da instituição no Rio de Janeiro como em sua Coordenação Regional no Distrito Federal, é constituído por cerca de 17 milhões e 400 mil páginas (aproximadamente 8 milhões e 900 mil folhas) de documentos textuais, além de 1.363 mil metros lineares de outros tipos documentais (como, por exemplo, fotografias e mapas), 220 mil microfichas e 110 rolos de microfilmes.

Esse gigantesco volume documental inclui os documentos públicos produzidos e acumulados por vários órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Informações e Contrainformação (Sisni), como são exemplos os acervos do Serviço Nacional de Informações (SNI), do Conselho de Segurança Nacional (CSN), da Comissão Geral de Investigações (CGI), do Centro de Informações do Exterior (Ciex/Ministério das Relações Exteriores), do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) e da Divisão de Inteligência do Departamento de Polícia Federal (Distrito Federal, Minas Gerais e Paraná).

Esses arquivos estão disponibilizados para consulta, de acordo com os parâmetros estabelecidos pela legislação que trata da matéria. Contudo, uma iniciativa como o Memórias Reveladas não poderia vir desassociada de uma revisão crítica da legislação nacional no tocante ao acesso à informação. Não basta garantir a guarda adequada do acervo, é preciso também promover a difusão dessas informações. Nesse sentido, cabe destacar o Projeto de Lei nº 5228/2009 (atualmente, PLC 41/2010) que tem por objetivo regular o acesso a informações previsto na Constituição Federal de 1988, bem como o anúncio público de que o Ministério da Justiça está trabalhando em uma proposta de decreto específico para o caso dos acervos do regime militar.

No final do ano passado, por proposta do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), órgão ligado ao Arquivo Nacional, os governos dos estados de Alagoas e da Paraíba aprovaram decretos para a abertura dos arquivos do regime militar, mediante cadastramento do usuário e assinatura de termo de responsabilidade pelo uso e divulgação de informações sobre terceiros. Atualmente, outros governos estaduais estudam a adoção de procedimentos semelhantes, que foram adotados pioneiramente pelos estados de São Paulo e Paraná.

Uma das principais ferramentas de integração da Rede Nacional de Cooperação e Informações Arquivísticas é o banco de dados Memórias Reveladas, disponível no portal do Centro de Referência, que oferece informações sobre acervos públicos e privados referentes ao regime militar e, em muitos casos, a cópia digital dos documentos que circulavam entre os órgãos de informação e contrainformação da ditadura militar. O acesso ao banco de dados não exige qualquer programa especial, apenas que o pesquisador tenha a sua disposição um computador conectado à internet. No portal também é possível acessar e baixar conteúdo gratuito sobre o período da ditadura militar, como livros, vídeos e multimídias.

Até março de 2011, já foram inseridos mais de 400.000 registros no banco de dados Memórias Reveladas. Nesse sentido, é importante esclarecer que um único registro pode conduzir o pesquisador a um fundo documental composto por centenas ou, até mesmo milhares, de documentos. A alimentação do banco de dados é progressiva e o Memórias Reveladas está presente em todas as regiões do Brasil. São centenas de pessoas que estão trabalhando em atividades de higienização, organização, descrição, digitalização e difusão desses acervos.

Por outro lado, prossegue, no Brasil, a busca por documentos do período do regime militar. Basta lembrar que, em 2010, o Arquivo Nacional recebeu cerca de 50.000 páginas de documentos do extinto Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). Essa documentação tinha sido dada como destruída, a exemplo de outros acervos ainda hoje desaparecidos.

Reconhecendo também a grande importância da documentação que não está sob guarda do Arquivo Nacional, foram firmados acordos entre a União e os governos estaduais detentores de acervos do período do regime militar, buscando integrar esses documentos ao banco de dados Memórias Reveladas. Para apoiar essas atividades, foi aprovado, no âmbito da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) do Ministério da Cultura, o “ Pronac Memórias Reveladas”, projeto incentivado pela Lei Rouanet na modalidade mecenato. O projeto conta com a gestão técnica do Arquivo Nacional e permitiu a captação de recursos para apoiar atividades de preservação, organização e difusão de acervos das Delegacias de Ordem Política e Social (Dops) nos estados de Alagoas, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Essas ações foram realizados com recursos captados junto a Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Eletrobras e ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Por outro lado, com o objetivo de dar conhecimento à sociedade das ações do Centro de Referência, bem como de buscar informações e acervos sobre desaparecidos políticos, foi divulgada, em setembro de 2009, a campanha de rádio, televisão e mídia impressa do Memórias Reveladas. Produzida pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom-PR), a campanha foi baseada em três curtas metragens com depoimentos de familiares de desaparecidos políticos, dirigidos pelos cineastas Cao Hamburger, Helvécio Ratton e João Batista Andrade. Na oportunidade, foi divulgado também o número 0800 701 2441 para atendimento gratuito ao cidadão. Como resultado dessa campanha e do Edital de Chamamento Público de Acervos, também lançado em 2009, foram doadas ao Arquivo Nacional mais de 200.000 páginas de documentos, além de dezenas de livros e documentos sonoros em suportes variados.

O Memórias Reveladas vem atuando, também, na promoção e no apoio a eventos que envolvem debates e reflexões sobre os direitos humanos e o acesso à informação pública no Brasil, como são exemplos o Seminário Nacional Arquivos da Ditadura e Democracia e o Seminário Internacional sobre Acesso à Informação, ambos realizados em 2010. O propósito desses eventos foi o de discutir como ampliar o acesso a documentos do regime militar sob a guarda de instituições públicas e privadas.

O Centro de Referência foi convidado, em novembro de 2009, pelo Instituto de Apoio aos Povos do Araguaia (Iapa) a participar do III Seminário Latino-Americano de Anistia e Direitos Humanos - Manoel da Conceição, realizado em Brasília-DF. Na oportunidade, foi realizada parceria entre o Arquivo Nacional e o Iapa para que fossem gravados depoimentos de camponeses que moram na região da Guerrilha do Araguaia. Ao todo, foram gravadas pelo Arquivo Nacional 16 entrevistas, totalizando mais de 20 horas de depoimentos. O material resultante é um impressionante e comovente registro sobre a Guerrilha do Araguaia e a repressão política no Brasil.

Outro objetivo do Memórias Reveladas é o de valorizar a produção de estudos, pesquisas e reflexões sobre os temas de interesse do Centro de Referência. Para tanto, foi criado o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, um concurso bienal de monografias que utilizem fontes documentais referentes ao período do regime militar no Brasil. Os vencedores terão as suas obras publicadas pelo Arquivo Nacional. A edição 2010 do Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas foi um sucesso, tanto pela qualidade dos trabalhos premiados como, também, pelo grande número de monografias apresentadas no concurso, uma sinalização do interesse de pesquisadores, especialistas e estudantes em buscar informações sobre o período da ditadura militar.

Da mesma forma, de abril a agosto de 2011 está sendo realizada, na sede do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, a exposição “Registros de uma Guerra Surda”, que tem por objetivo trazer luz para um período conturbado de nossa história recente. Ao mesmo tempo, a exposição sugere e estimula o uso diversificado de fontes para reconstituição de fatos, localização de informações, análise de contextos e de processos políticos e sociais.

Todas essas iniciativas e ações contribuíram para consolidar a posição do Memórias Reveladas como um marco no processo de valorização e democratização do patrimônio documental público no Brasil. O Centro de Referência promove o fortalecimento de instituições arquivísticas públicas e privadas, transformando-as em espaços de cidadania, aptas a receberem e difundirem os documentos públicos e privados de interesse público sobre a ação repressora do Estado brasileiro nas décadas de 1960 a 1980. Nesse sentido, cabe lembrar que o direito de acesso às informações públicas, como regra geral, é um dos grandes mecanismos de consolidação dos regimes democráticos e de prevenção à recorrência de violações maciças aos direitos humanos, em consonância com o lema do Memórias Reveladas – “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.

Inez Stampa é coordenadora do Centro de Referência Memórias Reveladas e professora da PUC-Rio.