Manufatura aditiva: primeiras impressões 3D e o futuro da produção camada por camada

Por Eduardo Cruz Moraes e Maria Letícia Bonatelli

Seja na área médica ou na aeronáutica, a manufatura aditiva – mais conhecida como impressão 3D – já possibilitou grandes avanços, desde a prototipagem até a fabricação de tecidos orgânicos, e ainda encontra muito espaço para crescer. O domínio dessa tecnologia é de importância estratégica para os países que esperam se inserir na indústria 4.0

Imagine que um eletrodoméstico de sua casa (digamos, sua geladeira) tenha quebrado e você necessite de uma peça de reposição. Você entra em contato com o fabricante para obtê-la, mas é informado de que eles não possuem, pois o modelo não é mais fabricado. Fora a opção de tentar reparar a peça ou comprar um aparelho novo, você pode encontrar algum serviço que fabrique uma peça nova sob medida. No entanto, esse é um processo caro, pois exige a fabricação de um molde para a produção de uma única peça, além de conhecimento técnico e aparelhos específicos. Agora, imagine um cenário onde você possa obter um arquivo de computador contendo um modelo virtual da peça que precisa, envia este arquivo para uma máquina que irá fabricar a peça em questão de poucas horas, ou mesmo minutos, na sua própria casa. Pode parecer um pouco futurista, mas esse cenário já é realidade. Trata-se do mercado de impressão 3D ou, no termo técnico, manufatura aditiva.

Manufatura aditiva é um processo no qual um objeto é construído com um material específico (resina plástica, metal) através da deposição desse material, camada por camada, como uma impressora que imprime uma imagem em papel, linha por linha, para a obtenção de um objeto tridimensional. O que essencialmente difere esse processo dos convencionais de manufatura é não haver a necessidade da construção de um molde (onde é depositada a matéria-prima do produto) ou da moldagem de uma peça bruta através de processos de usinagem (como pela remoção de material com um torno mecânico). Com isso, é possível produzir peças de maneira muito mais precisa e rápida.

O termo “impressão 3D” ganhou notoriedade em 2009, com a queda da patente do processo de modelagem por fusão e deposição (da sigla em inglês FDM), permitindo uma redução significativa nos custos da tecnologia. Porém, os primeiros processos de manufatura aditiva surgiram e foram patenteadas nos anos 1980. Segundo Eduardo Zancul, professor e pesquisador da Escola Politécnica da USP, o propósito inicial foi a criação de peças de geometria complexa para prototipagem rápida. “A prototipagem rápida visa agilizar o processo de pesquisa e desenvolvimento, possibilitando o teste de peças e produtos antes da produção em larga escala”.

Hoje, a aplicação deste método de produção já é bem mais extensa. A tecnologia de manufatura aditiva ganhou grande importância na área médica, como, por exemplo, com a impressão de próteses sob medida para a reconstrução de ossos da face e do crânio. Também possui aplicação na construção de modelos 3D de corpos humanos para estudo de anatomia, mais fiéis às aparências de um corpo real vivo do que são os cadáveres usados. E o mais impressionante: tecidos e protótipos de órgãos já são impressos utilizando células vivas cultivadas de doadores. Embora ainda estejam em fase inicial de estudos, futuramente essas estruturas poderão ser transplantadas e substituir a necessidade de órgãos de doadores.

Na área industrial, um exemplo é o processo de fabricação de moldes para injeção plástica. “Para tornar a produção ágil, as peças moldadas devem ser resfriadas através de canais construídos dentro do molde. A construção destes canais é facilitada pelo processo de impressão 3D”, explica Eduardo Zancul. Segundo ele, aos poucos a manufatura aditiva passa a ser utilizada também na obtenção do produto final, mesmo em setores que exigem alta resistência, como o aeronáutico. “A GE produz injetores de combustíveis para seus motores a jato através de impressão 3D. É um caso em que a manufatura aditiva é muito útil, pois se trata de uma peça complexa, e é possível reduzir consideravelmente seu peso com esse tipo de produção, o que aumenta a eficiência do motor”.

Em setembro de 2014, a empresa americana Local Motors surpreendeu o mercado automobilístico ao imprimir o primeiro carro totalmente funcional, o Strati, durante uma feira de tecnologia em Chicago. Foi possível reduzir os cerca de 25 mil componentes utilizados para montar o chassi e carroceria para menos de 50. Ainda que o carro não tenha sido inteiramente impresso em 3D (outros 48 componentes foram adicionados manualmente, entre um motor elétrico, rodas e sistema de transmissão), foi uma demonstração do potencial da tecnologia no setor.

Com a queda de patentes e modelos de inovação do tipo open source (código aberto), as impressoras 3D domésticas também deverão se popularizar cada vez mais. Para Felipe Peixoto, sócio fundador da empresa brasileira Boa Impressão, o cenário no qual as impressoras 3D domésticas serão tão populares quanto as impressoras de jato de tinta está bem próximo. “Como o nosso objetivo é popularizar a cultura de impressão 3D no Brasil, projetamos impressoras com baixo-custo e chegamos a um valor bem acessível para todos”. Hoje, impressoras 3D domésticas custam em torno de 2 mil reais. Para Peixoto, o principal desafio no mercado brasileiro está em estruturar a produção à demanda e legislação brasileiras, mas afirma: “a perspectiva é de alto crescimento e de cada vez mais mercados aderirem à impressão 3D”.

O fim da manufatura convencional?        

Entretanto, vale frisar que a manufatura aditiva não deve substituir completamente os métodos de manufatura industrial convencionais. “A ideia é que o processo passe a integrar etapas da cadeia de produção em que o emprego desse método seja mais vantajoso”, afirma Zancul. Ele cita como exemplo máquinas como da empresa ROMI, que combinam operações de usinagem e manufatura aditiva (impressão 3D metálica), permitindo a adição de diversos materiais em perfis complexos. Ligas metálicas nobres podem ser adicionadas na quantidade exata e depois usinadas na própria máquina, o que proporciona grande economia no uso de materiais de custo elevado.

Para Érica Massini, gerente de marketing da Stratasys, empresa mundial de impressão 3D, a principal limitação da tecnologia hoje está relacionada ao volume de produção.  “Devido ao custo, a impressão 3D não é uma opção vantajosa quando houver necessidade da produção de volumes muito grandes”. Mas a gerente aponta que a principal vantagem da manufatura aditiva é justamente a construção de objetos com geometrias complexas, “aqueles que não podem ser fabricadas de outras formas, devido à limitação dos demais processos, incapazes de obter certos tipos de cavidades, ângulos fechados, engrenagens, partes móveis e formas orgânicas”. Ela afirma que, nesses casos e no caso de baixo volume de produção ou produtos personalizados, os métodos de manufatura aditiva são vantajosos. “Já alguns métodos não poderão ser totalmente substituídos e, neste caso, a impressão 3D será uma tecnologia complementar”.

Ensino e pesquisa são essenciais para se antecipar às mudanças

Nas últimas décadas, a produção industrial migrou dos EUA e Europa para países da América Latina e leste asiático (em especial a China) em busca de mão de obra mais barata. O movimento, agora, seria inverso: a produção fabril retornaria para os países desenvolvidos, na forma de uma indústria automatizada. Segundo Martin Ford, autor do livro Rise of the robots (Ascensão dos robôs, em tradução direta), a migração das indústrias multinacionais de volta para seus países de origem pode ameaçar alguns postos de trabalho nos países sub-desenvolvidos e em desenvolvimento, onde a industrialização ainda é vista como sinônimo de crescimento econômico e social. Fica claro, portanto, a importância para esses países – nos quais se inclui o Brasil – em acompanhar o processo de modernização da indústria.

Para Jorge Vicente Lopes da Silva, pesquisador do CTI Renato Archer, em Campinas, no que tange definir uma estratégia explícita para a manufatura aditiva, o país “ainda derrapa”. “Há uma demanda urgente de ações coordenadas nas esferas federal e estaduais para que esforços pontuais possam ser catalisados em benefício da indústria no país”, diz Silva. E alerta: “Verdadeiramente, não há um tempo muito grande para preparações. Se queremos ainda fazer parte desse movimento mundial, ações imediatas devem ser iniciadas com investimentos, fomento à indústria e formação de massa crítica por meio da educação continuada em todos os níveis”.

Neste contexto se insere a importância do ensino e da pesquisa nas universidades e centros técnicos, para a formação de profissionais especializados e desenvolvimento de novas tecnologias que venham resolver as atuais limitações tecnológicas da manufatura aditiva. “Os maiores desafios deverão estar relacionados com a criação de novas tecnologias ou aprimoramento das atuais, tornando-as mais rápidas, repetíveis e confiáveis” afirma Silva, que ainda pontua onde poderão haver inovações na área, na produção de novos materiais – nanomateriais, multimateriais, biomateriais, novas ligas metálicas, na manufatura aditiva de órgãos e tecidos, impressão 4D (materiais que mudam de forma de acordo com estímulos do meio), entre outros.

Pela complexidade envolvida nos processos envolvidos na impressão 3D, as pesquisas nesta área devem envolver grupos multidisciplinares, com a finalidade de desenvolver novos processos, materiais e aplicações. “Novos algoritmos para a modelagem 3D orgânica voltada à manufatura aditiva, novas interfaces homem computador, a simulação computacional, o tratamento de dados bem como a gestão de processos e integração deverão demandar novas pesquisas na área de tecnologia da informação. Materiais e processos vão exigir novos conhecimentos de cientistas de materiais, físicos, químicos e engenheiros”, afirma Silva.

Atualmente, a manufatura aditiva corresponde a 0,05% do total da manufatura global, segundo dados levantados pelo Banco Mundial. A participação dessa pequena fatia do mercado mostra o potencial de crescimento e os desafios da aplicação dessa nova tecnologia. Jorge da Silva ainda salienta que, “uma participação, possível, de apenas 5% dessa tecnologia na manufatura global demandará enormes esforços em pesquisas, desenvolvimentos e inovações, tipicamente associados aos ambientes acadêmicos, incubadoras, startups e pequenas empresas”.

É preciso mudar de conduta e investir em pesquisa e desenvolvimento, assim como incentivar pequenas e grandes empresas a fazerem uso dessa nova tecnologia que promete – e já está – revolucionando o processo de manufatura. Silva ainda conclui: “não seria um exagero afirmar que hoje estamos vendo a ‘ponta do iceberg’ no que tange aos processos e aplicações da manufatura aditiva”.

Eduardo Cruz Moraes é formado em ciências biológicas (Unicamp), com mestrado e doutorado em biologia funcional e molecular (Unicamp). É aluno do curso de jornalismo científico do Labjor e bolsista Mídia Ciência.

Maria Letícia Bonatelli é formada em ciências biológicas (Unicamp), com mestrado e doutorado em ciências (USP). É aluna do curso de jornalismo científico do Labjor e bolsista Mídia Ciência.