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Sociedade, democracia e linguagem

Carlos Vogt

Com as grandes mudanças em todas as atividades do homem que o Renascimento foi imprimindo à geografia do mundo então conhecido, desenvolveu-se, consolidando-se, o mito do bom selvagem que o Iluminismo no século XVIII, através de Jean-Jacques Rousseau, viria depois consagrar.

A idéia de que o homem nasce naturalmente bom e que é a sociedade que o corrompe permitiu a construção de todo um ideário de combate à injustiça e à desigualdade sociais que até hoje alimenta o imaginário político-ideológico do mundo ocidental.

Um bom exercício de humor filosófico seria o de inverter os sinais desse ideário romântico e dizer que o homem nasce naturalmente mau e que cabe à sociedade ou perdê-lo de uma vez, confirmando seus instintos, ou redimi-lo do mal congênito pela ação prática, organizada e sistemática do aprimoramento das instituições sobre as quais se assentam as garantias de sua liberdade e dos plenos direitos e obrigações do indivíduo em sociedade.

Já se disse que o homem tem duas características que o diferem das demais espécies animais: a linguagem e viver em sociedade.

Entretanto, postas assim, essas duas características, na verdade, ele as compartilha com outras espécies, o que faz com que seja muito mais a forma que ambas tomam no ser humano, por predicados, é claro, que lhe são próprios, do que pelo fato de possuí-las.

Macacos, papagaios, abelhas e outros seres vivos possuem linguagens mais ou menos sofisticadas e entre eles e todos, em graus também diversos, a linguagem tem uma função fundamental no que diz respeito às suas formas de vida em sociedade. São, em geral, seres sociais, cuja existência se organiza, necessariamente, em sociedade.

Isso leva a pensar que linguagem e sociedade têm uma relação muito mais que ocasional e fortuita. Ao contrário, ao que tudo indica, onde há uma, há outra, de modo que a relação entre elas é de absoluta necessidade sendo uma também condição suficiente da outra. Quer dizer, há entre elas uma dupla implicação. E é essa complicação que faz com que para muitas teorias lingüísticas seja a comunicação a principal função da linguagem.

No caso do homem, a função simbólica da linguagem chega, pelas características de sua mente, a níveis de abstração tão elevados que foi possível conhecer sistemas inteiros de representação em que a referência dos símbolos que os integram são eles próprios símbolos de outros símbolos e, assim, infinitamente, em encaixes chineses, cuja estética é garantida pela consistência lógica de sua arquitetura.

Já a própria função semântica da linguagem, isto é, sua função referencial é reveladora desse complexo mecanismo de abstração. De fato, a linguagem humana tem sua antologia, se se puder dizer assim, na negação de si própria, num belo paradoxo da afirmação de sua plenitude. O momento pleno da realização de sua função comunicativa é aquele em que ela se realiza pelo que não é, pela referência ao que não está nela, está fora dela, estranho à sua própria natureza física e, no entanto, integrando-a, sem motivação material, mas completando-a pela forma da substância que adquire o seu significado e o sentido das relações que estabelece entre os interlocutores, seus usuários.

Sendo, pois, de natureza eminentemente simbólica, o jogo de representações acionado pela atividade lingüística põe a linguagem na cena de um espetáculo maior e mais complexo: o da história, da cultura e das máscaras sociais que, embora coladas ao nosso rosto, nem sempre sabemos o que significam e nem porque as portamos.

Como escreve Octávio Paz:

“Todas as histórias de todos os povos são simbólicas; isto é: a história e seus acontecimentos e protagonistas aludem a outra história oculta, são a manifestação visível de uma realidade escondida. Por isso nos perguntamos: o que significaram realmente as cruzadas, o descobrimento da América, o saqueio de Bagdá, o Terror Jacobino, a Guerra de Secessão norte-americana? Vivemos a história como se fosse uma representação de mascarados que traçam sobre o tablado figuras enigmáticas; apesar de sabermos que nossos atos significam, dizem, não sabemos o que é que dizem e assim nos escapa o significado da peça que representamos.”

A noção de sentido de um enunciado lingüístico deve ser compreendida, de um lado, como função das combinações possíveis deste enunciado com outros enunciados da língua em que ele foi proferido. Como função do futuro discursivo que ele abre no momento mesmo em que é dito. De outro lado, o sentido de um enunciado, que é parte constitutiva e definidora de seu significado, é também função das relações que ele estabelece com outros enunciados pertencentes ao mesmo paradigma argumentativo, isto é, que apontam para a mesma direção argumentativa no discurso. Relações, portanto, que dizem respeito àquela parte da teoria lingüística conhecida sob o nome de pragmática.

Na dinâmica das relações entre a pragmática, a sintaxe e a semântica do enunciado e do discurso é que se dá o paradoxo, acima referido, que constitui o centro vazio e substantivo da gravitação da linguagem: tendo materialidade e forma próprias, ela só existe plenamente na negação de si mesma; é o que ela não é, ainda que esta negação se faça através de si mesma. É sempre o outro que constitui o horizonte da significação da linguagem humana.

Além disso, a linguagem é um instrumento. E como todo instrumento, não tem utilidade imanente. Tem utilizações históricas. Como um martelo, deixa e recebe as cicatrizes dos golpes desfechados sobre um prego; traz em seu cabo a inscrição do suor das mãos que o utilizaram; nas mãos conforma a lembrança de sua forma. Assim também a linguagem é memória de si mesma nos diferentes usos sociais que possibilita e que dela se fazem através da história.

À capacidade simbólica do ser humano junta-se a sua capacidade para viver em sociedade criando, assim, as condições para as diversas apresentações de suas representações no mundo.

Aqui também uma diferença importante é preciso anotar relativamente a outras espécies animais que vivem em sociedade.

Como está dito, essas espécies vivem em sociedade, tal como o homem, mas este, além do mais, precisa da sociedade para viver.

É esta necessidade que torna tão próximas a linguagem e as formas de organização social que o homem constrói para viver.

A democracia é também a construção de uma forma dessa necessidade. É um bem, um fim e um objetivo a ser buscado e preservado pelo aperfeiçoamento constante da capacidade simbólica de representação das instituições com que ela, cultural, política e socialmente se apresenta e nela nos apresenta ao longo da história.

A eficácia política, social e civil das democracias depende de muitos fatores e de condições históricas específicas para o seu bom desempenho. Há, contudo, um fator que funciona como uma regra constitutiva para a possibilidade de seu êxito: que os homens e as sociedades que elas organizam tenham entendimento pleno de suas formas de organização e que, desse modo, possam avaliar e contribuir criticamente, de modo sistemático, para o aprimoramento de sua capacidade de representação simbólica e de satisfação real de seus sonhos e necessidades.

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Atualizado em 10/07/2005

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