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Europa à beira de um ataque de nervos: o impasse da Constituição e os desafios para a UE

No dia 29 de junho, 55% dos franceses disseram “non, merci”. Dois dias depois, os holandeses (66%) ecoaram com um “nee”. A Carta da Constituição Européia, já ratificada em nove países, entrou num impasse importante, sendo recusada por dois dos três Estados fundadores da União Européia (UE). “A Europa não faz sonhar”, declarou o luxemburguês Jean-Claude Juncker, presidente da UE na época. “A UE é ameaçada por forças centrífugas”, comentou o presidente da república italiana, Carlo Azeglio Ciampi. “As elites políticas estão em estado de choque”, escreveu, num ensaio, Niall Ferguson, professor de história internacional na Universidade de Harvard. “Os europeus não gostam da Europa”, resumiram a maioria dos comentaristas.

Apesar de o resultado ter sido previsto pelas pesquisas de opinião, o “não” à carta da Constituição pegou de surpresa os políticos do continente. Quase todos os governos, chefes de Estado e a maioria dos partidos políticos pediam por um “sim”, achando que a população, na última hora, fosse “usar o raciocínio”. Mas o “raciocínio” não veio. Vieram, ao contrário, polêmicas e terremotos políticos. Na França, o primeiro ministro, Jean-Pierre Raffarin, enviou pedido de demissão para o presidente Chirac (que, porém, manteve o ministro). Na Holanda, apesar de o referendo ter apenas valor simbólico, o governo foi forçado a ouvir a vox populi e retirou a proposta de ratificação em parlamento da Constituição. O terremoto logo se propagou para a Europa inteira. Os governos de Londres, Copenhague e Praga anunciaram o adiamento do referendo em seus países. Outros declararam que não haverá mais referendo: a Constituição será aprovada diretamente no Parlamento, sem uma consulta popular prévia, como feito em oito dos nove países que já ratificaram o documento (a Espanha foi exceção).

A onda sísmica também chegou aos países que já tinham assinado a Carta (Lituânia, Hungria, Eslovênia, Itália, Grécia, Eslováquia, Espanha, Áustria, Alemanha). Na Alemanha, por exemplo, uma pesquisa de opinião mostrou que, se um referendo fosse feito, a ratificação da Carta seria reprovada por uma maioria esmagadora da população. Na Itália, a Liga Norte (Lega Nord, um partido populista que prega uma Itália federalista e a autonomia da região norte, mais rica e industrializada), declarou o fracasso da Europa e pediu, para o desconcerto e escândalo de seus aliados no governo Berlusconi, o abandono do euro e a volta à antiga moeda, a lira, que, de acordo com o partido, deveria ser dolarizada.

“Realmente, é um resultado complicado”, confirma Sonia de Camargo, professora e pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “E inesperado para os governos europeus, que apostavam no sim, o que indica uma grande distância entre as elites de Bruxelas e as sociedades dos diferentes países”. As razões da vitória do "não" são complexas: duas frentes opostas festejaram o resultado negativo: as direitas nacionalistas e populistas; e as esquerdas radicais, ligadas aos movimentos sociais. Por um lado, os nacionalistas enxergaram na ratificação acelerada da Carta constitucional o perigo de perda de soberania dos Estados-nacionais e a chegada descontrolada de migrantes vindo de países pobres (como os do leste europeu) ou com forte presença muçulmana (como a Turquia). As esquerdas, pelo contrário, viram na Carta uma confirmação das recentes políticas neoliberais da União e o perigo de um golpe de misericórdia ao que resta do Estado-de-bem-estar-social no continente. A entrada da Turquia (país responsável por gravíssimas violações de direitos humanos) também foi vista como sintoma da atenção dada pela UE à ampliação econômica, em detrimento da valorização fundamental aos direitos humanos. “Estou imensamente orgulhoso”, comentou, por exemplo Geert Wilder, da extrema direita holandesa, “com uma Holanda que votou para conservação de sua identidade e contra o super-estado europeu”. “É uma festa da democracia”, disse, no lado oposto do arco-íris parlamentar, Jan Marijnissen, secretário do Partido Socialista (SP), que acrescentou: “que nosso voto sirva como despertador para os políticos em Bruxelas e Haia”. O italiano Fausto Bertinotti, líder do Partido da Refundação Comunista e presidente da Esquerda Européia, comentou o resultado como “uma vitória dos povos, uma condenação da Europa das elites, da Europa sem povo e da cultura neoliberalista”. E acrescentou, utilizando um slogan caro a seus militantes: “uma outra Constituição é possível”.

“Na realidade”, comenta Sonia de Camargo, “o tratado constitucional traz pouca coisa nova. De alguma forma, é um resumo, uma forma de disciplinar os tratados anteriores da UE. A crise da social-democracia não é responsabilidade da Europa. É uma crise dos governos nacionais de esquerda no mundo inteiro: as nações já entraram há tempos numa fase mais ampla e profunda do liberalismo, e os países europeus não escaparam a isso. Muitos governos nacionais colocaram a questão européia como desculpa para suas próprias políticas nacionais. O liberalismo não foi uma inovação desse tratado que, pelo contrário, traz uma novidade positiva do ponto de vista social: incorpora dentro da Constituição a carta dos direitos civis e humanos”.

Muitos políticos enfatizaram que parte consistente da população européia não tem muita noção do que efetivamente significa esse tratado constitucional. Na Holanda e na França, o voto foi influenciado por questões internas, como o debate sobre ensino do criacionismo e do darwinismo nas escolas (na Holanda), o integralismo muçulmano e cristão, as políticas sociais e o desemprego. “Por um lado, alguns acharam que a Constituição fazia ‘demais’”, comenta Camargo, “em termos, por exemplo, de mais flexibilização, mais desempregos, mais desafios à questão social, enquanto outros lamentaram que fazia ‘de menos’, no sentido de não definir regras claras que limitassem a liberalização econômica, queriam que as questões sociais fossem mais vigiadas”.

O voto seria, então, fruto de um mal-entendido, de um escasso conhecimento do que estava em votação, como acharam muitos políticos europeus? Não somente isso. “Muitos analistas falaram de um déficit democrático”, continua Camargo. “No sentido que a Comissão Européia tem força demais, enquanto o Parlamento tem pouca força. Não há canais de comunicação através dos quais a sociedade possa se comunicar com as elites da burocracia européia”. O voto seria, então, também um sinal de forte descontentamento e, ao mesmo tempo, um pedido para participação democrática mais forte em decisões sobre o futuro comum, diz ela. “Acho que as pessoas não votaram contra a Europa. Votaram contra uma Constituição desse tipo, contra um documento específico que, aliás, não sabem direto o que significa realmente. Acho que esse episódio trouxe uma decorrência muito positiva: mostra a necessidade de aprofundar a democracia. Não penso que os nacionalismos estejam recrudescendo. Todos esses Estados já compartilham a soberania há muito tempo. Chegaram até aqui, querem a Europa. Mas querem uma Europa mais social. As populações se sentem sem possibilidade de participação. Há um fosso enorme entre as burocracias de Bruxelas, um Banco Central completamente autônomo e as pessoas. É necessário avançar na democracia”, completa.

A profundidade do descontentamento e a perda de confiança na capacidade de unificação política do continente ficou evidente entre os próprios políticos da UE, duas semanas após os referendo, quando o encontro para aprovação do Orçamento Europeu 2007-2013 naufragou numa tempestade de polêmicas cruzadas. França e Alemanha atacaram Inglaterra e Holanda, com uma dureza raramente vista em encontros diplomáticos, acusando-as de egoísmo vergonhoso. Desde 1984, o Reino Unido e a Holanda recebem alguns bilhões de euros por ano, pagos pelos outros membros da União, como “reembolso” pelos sacrifícios da unificação. Os 10 novos membros da UE, mais pobres, que pagam algumas centenas de milhões de euros por ano, pediram uma negociação, mas os ministros Blair e Balkenende declararam que não iriam descontar um centavo. No momento mais agudo da crise, os países pobres declararam que aceitavam pagar a quantia sem descontos, mas o caos já reinava. “Sinto vergonha profunda”, comentou o presidente da União, Juncker. Schoeder e Chirac concordaram, afirmando ser “comovente” o gesto dos países mais pobres, “um momento impressionante, frente ao egoísmo de alguns países ricos”.

Assim, as razões para o “não” são de natureza complexa. Mais complexas e profundas parecem ser as razões para o mal estar generalizado da opinião pública em relação à UE e seus governos. Tony Blair, que é o novo presidente da União (os presidentes ocupam o cargo rotativamente), admitiu que o “não” à carta constitucional foi o instrumento dos povos para mostrar o descontentamento sobre a situação atual da Europa em geral e sua liderança que, de acordo com ele “é vista como parte do problema e não como parte da solução”. A receita para saída do impasse? Simples, para o britânico: mais mercado e mais liberalização, pois seria “contraditório ser a favor de liberalizar a participação na UE, mas contrário à modernização da economia”.

Mas Niall Ferguson, historiador da Universidade de Oxford, tem uma visão um pouco diferente. Para ele, o que aconteceu não foi somente um voto de protesto. “A Europa”, afirma, “não está pronta para uma Constituição verdadeiramente federal, não está pronta para se tornar os Estados Unidos da Europa”. Atualmente, os países europeus têm estruturas políticas e estratégias econômicas extremamente diferentes. Assim como na época precedente à formação dos EUA, alguns estados americanos exploravam a escravidão e outros não, hoje na Europa, diz o historiador, alguns países “seguem modelos socialistas”, enquanto outros não. Alguns (como Irlanda e outros novos membros) escolhem uma estratégia de desenvolvimento baseada em baixos impostos e alto crescimento, o que causa a preocupação dos que têm uma economia mais estagnada. Alguns são grandes, outros minúsculos. Além disso, diz Ferguson, França e Holanda têm medo do poder da Alemanha. Com a nova Constituição, a Alemanha, que até agora teve muito poucos votos e peso em comparação com sua população e PIB, passaria a ter um poder bem maior. O que, segundo ele, causa temor em holandeses e franceses: “os franceses podem até detestar o liberalismo exagerado dos anglo-saxões, os holandeses podem até ter medo dos muçulmanos não liberais. Mas, com certeza, ambos os países conservam memórias recentes da vida numa Europa dominada pelos alemães”.

Sonia de Camargo também vê complexidade no momento de crise. “A UE é menos que um Estado federal”, explica, “mas, ao mesmo tempo, é mais do que uma confederação de Estados. É um momento de grande dificuldade. Entrarão, na União, 100 milhões de novos habitantes, com hábitos e histórias de governo diferentes. Porém, se a unificação for de verdade, a Europa pode se tornar um ator político fundamental. Já agora, em conjunto, é a maior potência comercial. Se ela se unificasse sob determinados valores, se buscasse construir uma identidade coletiva recuperando valores europeus como a proteção social, uma certa atenção política em relação ao terceiro mundo, poderia se contrapor ao unipolarismo dos EUA, se tornar um ator fundamental no cenário mundial”.

De acordo com o filósofo esloveno Slavoj Zizek (num ensaio recentemente publicado pela Folha de S. Paulo), a população na França e na Holanda “foi chamada a ratificar o inevitável, o resultado da perícia esclarecida”, a mídia e a elite política apresentando a opção “como sendo entre conhecimento e ignorância, entre perícia e ideologia”. Os políticos “trataram a população como alunos atrasados que não entenderam a lição dos especialistas”. Por isso, diz Zizek, esquerda e direita “rejeitaram a chantagem”, compartilhando “apenas uma coisa: a consciência de que a política propriamente dita continua viva”. Se ele estiver certo, talvez o problema não seja os europeus não gostarem da Europa. A Europa é que, nessa fase, não dá atenção suficiente aos europeus.

(YC)

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Atualizado em 10/07/2005

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