Editorial:

Fármacos e Medicamentos: Urgências
Carlos Vogt

Reportagens:
Genéricos são a linha de frente da política de medicamentos
Instrumentos de regulamentação dos genéricos
Descentralização na distribuição de medicamentos enfrenta falta de estrutura
Luta contra a Aids terá de buscar novas formas de financiamento
Aids nos países pobres: lições da experiência brasileira
Poder das
multinacionais inibe a indústria brasileira
Inovação e fomento à indústria estão entre os principais desafios
Fundação produz medicamentos de qualidade para a população carente
Falta de garantia faz Ministério acabar
com os similares
Investimento em pesquisa de fármacos
no Brasil ainda é pequeno
A questão das
patentes na política brasileira de fármacos
Conhecimento tradicional e direito à propriedade intelectual
Fitoterápiocos: o mito
do natural
Artigos:
Aproveitamento das inovações farmacêuticas no Brasil
Antônio Camargo

Fitoterápicos: alternativa para o Brasil
Lauro Barata

Cronofarmacologia e Melatonina - o hormônio que marca o escuro
Regina Pekelmann Markus
Farmacologia perde integração com a cultura
Ulisses Capozoli
Notícias e "notícias" na comunicação pública da saúde
Isaac Epstein
Inovação e Gestão em um Mundo Globalizado
Antônio Buainain
Sergio Paulino de Carvalho

Acesso aos antiretrovirais na América Central
Eloan Pinheiro
Fernanda Macedo
Cristina D'Almeida

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Conhecimento tradicional pode ajudar na pesquisa de fármacos

Com os novos avanços na área de biotecnologia, possuir ou ter acesso à biodiversidade tornou-se algo estratégico, alvo de constantes disputas e debates. Entretanto, a própria riqueza e variedade da biodiversidade pode significar um novo problema: como encontrar naquela grande quantidade de material genético aquele que pode gerar um produto inovador?

A utilização do conhecimento das comunidades tradicionais (povos indígenas, seringueiros, agricultores, ribeirinhos, etc) sobre recursos naturais como ponto de partida para pesquisas que podem levar ao patenteamento de produtos e processos é uma das questões que compõe o quadro das polêmicas sobre o tema. Os recursos biológicos, muitas vezes presentes em terras indígenas, são coletados por pesquisadores ou laboratórios, que passam a estudar o potencial farmacológico de determinada planta ou veneno de animal, baseando-se no uso tradicional que se faz deles. "O grande valor do conhecimento genético é justamente o conhecimento tradicional associado à ele, pois no universo de espécies como da Amazônia, por exemplo, é necessário saber o caminho das pedras para poder achar algo válido para a pesquisa", afirma Nurit Bensusan, coordenadora de Biodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA).

As comunidades tradicionais e ONGs da área, apontam para a necessidade de criação de um regime legal que reconheça o saber tradicional associado aos recursos biológicos, possibilite a repartição de possíveis benefícios advindos do seu uso comercial ou industrial e coloque como obrigatoriedade legal o consentimento prévio das comunidades para o acesso aos recursos situados em suas terras. Segundo Juliana Santilli, sócia fundadora do Instituto Socioambiental e promotora de justiça no Prodema (Segunda Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural, do Ministério Público do Distrito Federal), o conhecimento tradicional acerca das propriedades curativas de determinadas plantas foi formulado e transmitido oralmente durante gerações que descobriram, selecionaram e utilizaram os recursos. No entanto, o atual sistema patentário reconhece e protege apenas os conhecimentos produzidos individualmente, o que não corresponde ao caso das comunidades, em que o conhecimento é produzido coletivamente. Surge daí a "importância de um sistema legal sui generis de proteção dos direitos coletivos de propriedade intelectual ou direitos intelectuais coletivos", diz Santilli.

De acordo com alguns projetos de lei (veja texto) em tramitação no Congresso, a repartição de benefícios com as comunidades pode ser realizada através de remunerações monetárias, bens, serviços ou direitos de propriedade intelectual.

O patenteamento e a legislação na área de biotecnologia são pontos bastante polêmicos que envolvem, além das referidas comunidades, interesses nacionais e internacionais de Estado, empresas, laboratórios, cientistas, intelectuais e políticos. As práticas recorrentes de apropriação indevida de recursos naturais ou genéticos demonstram que as soluções apontadas para estas questões desde a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), assinada durante a ECO-92, não foram realmente incorporadas na forma de mecanismos legais eficazes. (leia reportagem da Com Ciência sobre o assunto)

Na CDB vários dos pontos atualmente em discussão foram acordados, rompeu-se com a idéia dos recursos naturais como patrimônio da humanidade e firmou-se a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização de recursos genéticos.

Durante a Rodada Uruguai em 1994, no entanto, quando o regime internacional de patentes tornou-se mais evidente e delimitado através do Acordo Trips (Tratado sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), os dispositivos da CDB não foram contemplados ou incorporados ao Trips, que é o acordo internacional mais recente e importante na área de propriedade intelectual.

No Brasil, a biodiversidade e as questões relativas ao acesso aos recursos naturais ou genéticos têm sido reguladas por Medidas Provisárias (MPs). A Medida Provisória original foi editada em junho de 2000 e causou muita polêmica, sendo até mesmo acusada de "legispirataria" pela senadora Marina Silva (PT-AC).

Segundo a promotora Jualiana Santilli, a primeira edição da medida provisória foi feita às pressas para legitimar o acordo firmado entre a organização social Bioamazônia e a multinacional Novartis Pharma e atropelou o processo legislativo, no qual diversos setores do governo e da sociedade civil discutiam a formulação de propostas que visavam a implementação da CDB. "A Medida Provisória contém uma série de inconstitucionalidades, violando direitos assegurados às comunidades indígenas e tradicionais em vários dispositivos", afirma a promotora.

A reedição mais recente desta medida foi publicada em agosto de 2001 e segundo a atual coordenadora de Biodiversidade do Instituto Socioambiental, Nurit Bensusan, incorpora vários itens dos três projetos de lei que tramitam no Congresso, apesar de ainda conter pontos conflitantes que necessitam ser revistos.

As discussões sobre patentes e biodiversidade

Promovido pelo Inpi e pela Comissão Européia, o Seminário Internacional sobre o Papel da Proteção da Propriedade Intelectual no Campo da Biodiversidade e dos Conhecimentos Tradicionais, realizado em Manaus no início de setembro, trouxe à tona as questões acerca da legislação e do patenteamento na área de biotecnologia, e o debate sobre a possível incorporação dos dispositivos da CDB ao Acordo Trips. No evento, representantes de 30 países, além de 22 palestrantes estrangeiros, debateram o tema tendo em vista uma melhor elaboração do assunto para as reuniões da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Doha, no Catar e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi), a ser realizada em de Genebra no mês de dezembro.

Maria Beatriz Amorim, coordenadora de cooperação técnica do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), surpreendeu-se com o evento. "A idéia inicial era fazer algo educativo, com discussões mais gerais e, surpreendentemente, vimos um encontro que teve um impacto muito maior do que esperávamos", afirma a diretora. Ainda segundo Amorim, uma das principais contribuições do Seminário foi trazer à tona novos componentes para as discussões na área de biodiversidade e patentes, desde soluções até a delimitação de problemas. "Foi possível mostrar que a questão não é mais apenas a biopirataria, a questão agora vai adiante, porque muitas plantas já foram levadas e já viraram produto. A questão agora é como será possível retroagir este processo revertendo benefícios para o Brasil e para suas comunidades locais", diz Amorim.

Uma das questões que polarizou os debates do seminário foi a revisão do artigo 27 (3) b do Acordo Trips, que trata do patenteamento dos seres vivos. Durante o evento ocorreu uma prévia da revisão do Trips, que será realizada na próxima reunião da OMC, e já estava prevista desde que o Acordo foi firmado durante a Rodada Uruguai.

Segundo Nurit Bensusan, que esteve presente no Seminário, o Brasil apresentou uma posição bastante interessante e avançada com relação a revisão do artigo 273B do Trips, buscando incorporar os dispositivos da CDB, para garantir a criação de um arcabouço jurídico internacional que permita a valorização do conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o consentimento prévio das comunidades. "Acompanho esta discussão há bastante tempo e me surpreendi positivamente com a posição brasileira, apresentada pelo senhor Francisco Cannabrava (secretário do Ministério de Relações Exteriores junto à Missão Permanente do Brasil em Genebra), pois as proposições avançaram bastante com relação a outros fóruns.", diz Nurit.

A questão que está por trás desta tentativa é a discussão entre vários países sobre a compatibilidade entre o Acordo Trips e a Convenção de Biodiversidade. Os EUA, que assinou, mas não ratificou a Convenção de Biodiversidade, acha que Trips e CDB não são compatíveis pois tratam de assuntos diferentes. Já o Brasil e a União Européia afirmam que é possível harmonizar estes dois fóruns de discussão, mas defendem duas maneiras diferentes para que isso seja feito. Enquanto para a União Européia a revisão do Acordo deve ser apenas uma adequação de linguagem, para o Brasil o artigo 273B deve ser reescrito incorporando os dispositivos da CDB.

Além dos debates, o Seminário também apresentou propostas para o reconhecimento dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos naturais, entre elas a de formular um banco de dados brasileiro contendo os conhecimentos dos índios do Brasil. A idéia foi apresentada pelo presidente do Inpi, José Graça Aranha, e foi inspirada na experiência da Venezuela, que possui um banco de dados no qual já existem aproximadamente 9 mil registros de conhecimentos tradicionais de comunidades locais deste país. A idéia é que este banco de dados possa registrar e proteger o conhecimento tradicional servindo como prova caso suas informações sejam usadas.

Apesar da presença de representantes dos interesses indígenas, como um assessor da senadora Marina Silva (PT-AC), nenhum líder indígena foi convidado para o debate. Marcos Terena, líder indígena do Pantanal (MS), articulador do grupo de trabalho dos povos indígenas na ONU e coordenador geral dos direitos indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), esteve presente no Seminário e solicitou um espaço para expor suas posições.

Questionada sobre esta ausência, a diretora de patentes do Inpi afirmou que o tema dos conhecimentos tradicionais e patenteamento oferece muitos desafios ao Inpi e ao atual sistema de patentes, que é direcionado para empresas, universidades e inventores isolados. "O Inpi não tem por tradição um contato próximo da sociedade civil principalmente de comunidades locais, porque apenas agora propriedade intelectual está sendo vinculada às questões das comunidades locais. Procuramos chamar o maior número possível de representantes da sociedade civil, mas eu confesso que este foi um primeiro passo do Inpi em direção a este usuário".

Marcos Terena, em sua exposição propôs um encontro com 20 pajés brasileiros com objetivo de garantir a participação efetiva da comunidade indígena na discussão. A reunião que ficou marcada para dezembro, resultará numa Carta elaborada pela comunidade indígena, Inpi e Ministério da Justiça, a ser encaminhada para a próxima reunião da Ompi em Genebra. Além disso, deverá discutir a proposta do banco de dados e a participação da comunidade indígena.

Segundo o líder indígena apenas o banco de dados não é suficiente, pois é necessário garantir a participação indígena em todo este processo e elaborar um sistema de proteção aos conhecimentos tradicionais. "Apenas a partir de uma proteção legal e do reconhecimento de que esta sabedoria indígena é uma ciência é que poderemos estabelecer uma relação mais permanente, mais constante, entre a ciência do homem branco e dos povos indígenas. Afinal, outras pessoas podem fazer um banco de dados livremente, com base nos conhecimentos indígenas, sem que haja reconhecimento do nosso saber ali embutido. Buscamos um entendimento com os pesquisadores visando a participação também nos retornos dos investimentos científicos e econômicos.", afirma Terena.

A coordenadora de Biodiversidade do ISA, Nurit Bensusan também acha a idéia do banco de dados um tanto temerosa. "Acho que a proposta da Venezuela é muito arriscada, pois não prevê uma proteção do banco de dados que garanta que o conhecimento tradicional não seja apropriado por outras pessoas. Com um acesso aberto, a repartição dos benefícios vai se tornar muito mais difícil, além de não prever o consentimento prévio das comunidades, que é fundamental".

(MK)

 

Atualizado em 10/10/2001

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