Por Juliana Schober Gonçalves Lima e Thais Oliveira Cerqueira
Série de reportagens especiais ‘Coexistir-Manguezal’ conta com o apoio do Ateliê Dágua, Laboratório de Artes, Comunicação e Ecossistemas Aquáticos (LArtesComAqua) do Departamento de Engenharia de Pesca e Aquicultura da Universidade Federal de Sergipe e Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp (Labjor) A série de reportagens intitulada “Coexistir-Manguezal” é sobre coexistir nas regiões costeiras do menor estado do Brasil, o estado de Sergipe, marcado em suas paisagens pelo ecossistema Manguezal. Para ampliar sentidos, conexões e percepções sobre o ecossistema manguezal, as reportagens são pensadas e inspiradas a partir de obras de arte sobre o ecossistema manguezal. Além das obras de arte, fotos inéditas e conceitos relevantes também acompanham as reportagens. Um estuário é uma zona de transição entre um rio e o mar. São lugares onde as vidas funcionam de um jeito único, influenciadas pelo movimento dinâmico das marés. Não é rio e nem é mar, mas ao mesmo tempo é mar e rio. Coexistem num estuário o rio, o mar e todas as vidas que aprenderam a viver nesses territórios de transição. Os Manguezais são ecossistemas que marcam a sua presença nos territórios estuarinos sergipanos. Em Sergipe as pegadas do Antropoceno inauguram um novo Manguezal repleto de lixo multicolorido encrustado na lama e boiando nas águas, habitações construídas e habitadas por humanos e crustáceos, árvores com raízes expostas desenhando lindas rendas, folhas, sementes, embarcações. Esta série de reportagens fala sobre coexistir nos manguezais. Coexistir prédios de concreto, tocas de caranguejo, a cidade invasora do manguezal, viveiros de camarão, as pessoas que vivem do manguezal, os turistas de fora do manguezal, o alimento que o manguezal produz, a insegurança hídrica dos povoados que margeiam os manguezais, a pobreza que incide sobre as populações que dependem dos manguezais para sobreviver, as pesquisas científicas sobre o manguezal, e muito mais. O grande desafio é coexistir. Leia abaixo a primeira reportagem da série
Os conflitos que acontecem diariamente nos manguezais do estado de Sergipe não são vistos, nem sentidos, pelos turistas de passagem. Quem chega em Aracaju, a capital do estado, logo observa canais de rios cortando a cidade correndo em direção ao Atlântico. Ainda é possível observar pedaços de Manguezais espalhados pela cidade, como se fossem peças fora de lugar em um quebra cabeça urbano desordenado. Antigamente, a cidade de Aracaju era um imenso Manguezal.
Exuberante e marcante nas paisagens costeiras do estado de Sergipe, o Manguezal é um ecossistema que ocupa territórios costeiros em disputa. Os povos e comunidades tradicionais de marisqueiras e pescadores são cada vez mais excluídos de seus territórios tradicionais pela ofensiva do capital sobre seus territórios.
Nesse cenário de conflitos, as marisqueiras lutam pela garantia de seus direitos pois dependem da integridade do ecossistema manguezal para a garantia da segurança alimentar de suas famílias e a manutenção de seu modo de vida tradicional. Sururu, aratu, caranguejo, milongo, e muitos outros alimentos de origem aquática garantem a segurança alimentar das famílias de marisqueiras no estado de Sergipe. Além da segurança alimentar de suas próprias famílias, o trabalho das marisqueiras é fundamental para fornecer pescado de espécies variadas a baixo custo para os consumidores do estado de Sergipe, incluindo turistas e moradores da capital que, provavelmente, conhecem pouco ou nada sobre o trabalho diário pesado dessas mulheres nas marés e suas lutas.
No asfalto da região do centro de Aracaju, em 26 de julho de 2024, dava para escutar o canto das marisqueiras em comunhão com o Dia Mundial de Proteção aos Manguezais. Elas cantavam “Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver quem se mexe por você […] Eu quero ver o que vai acontecer, se você não se mexe, eu quero ver quem se mexe por você…” unidas em ato organizado pelo Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe. “O cheiro do mangue é o cheiro da minha pele”, diziam as marisqueiras em falas que evidenciavam a ligação profunda dessas mulheres com o Manguezal.
A marisqueira Giselma, presente no ato, falava da importância do ecossistema Manguezal para a segurança alimentar “Olha, o manguezal representa na vida do pescador e da marisqueira a vida, porque eu fui criada no mangue, eu lembro que minha mãe botava a gente no colégio e quando voltávamos tinha uma panela de peixe, outra de caranguejo, tinha milongo (…), então vai passando de geração em geração. Então para mim, e para a maioria das marisqueiras, o mangue representa a vida”
A realidade que as marisqueiras denunciavam pelo asfalto do centro de Aracaju é também evidenciada na terceira edição do Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no Brasil, publicado em 2024. O documento é uma publicação do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), que tem como principal objetivo identificar e visibilizar as comunidades tradicionais pesqueiras atingidas por violações de direitos humanos e por conflitos socioambientais. De acordo com o relatório, os povos das águas têm sido intensamente ameaçados no Brasil e mais de 32 mil famílias enfrentam situações de violações graves aos seus direitos.
O Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no Brasil mostra que as marisqueiras em Sergipe não estão sozinhas. A experiência e conhecimento delas sobre o ecossistema manguezal aponta que os impactos das atividades humanas sobre o Manguezal, como por exemplo a expansão da criação de camarões, a especulação imobiliária, e o despejo de esgoto industrial e urbano, afetam a biodiversidade nos manguezais e diminuem a ocorrência de espécies importantes para a segurança alimentar. O relatório aponta também graves crimes e violações de direitos, incluindo ameaça, intimidação e violência psicológica, e destruição de bens e patrimônios comunitários.
No campo da ciência, na dimensão ambiental, os manguezais estão em evidência devido ao reconhecimento cada vez maior da relevância desses ecossistemas para o enfrentamento da crise climática. Diferente do cientista, a percepção e o conhecimento das marisqueiras sobre o ecossistema manguezal se baseia em experiência de vida e perdas reais. Elas nos mostram que os manguezais são redes de coexistir, locais onde vivem e habitam muitas espécies.
A luta das marisqueiras mostra que coexistir nesses territórios está cada vez mais difícil e perguntas surgem quando refletimos sobre como seria um modo de fazer ciência capaz de gerar novos modos de coexistir. Como as pesquisas científicas têm apoiado as lutas das marisqueiras? Qual o papel das marisqueiras na determinação das pesquisas científicas realizadas atualmente sobre os manguezais? O que as marisqueiras compreendem e comunicam sobre as pesquisas que são realizadas sobre os manguezais? Essas perguntas são cada vez mais importantes na construção de projetos de pesquisa que buscam caminhos para a coexistência nos manguezais.
A obra que inspirou as palavras:
Se chama TEIA DÁGUA DE COEXISTIR. Ela retrata a proximidade dos animais humanos e não humanos nas margens cada vez mais tênues entre os territórios urbanos e os manguezais. Na imagem as tocas de todos os bichos coexistem em uma rede de relações tróficas que se adaptam aos processos de urbanização e serão cada vez mais afetadas pelas mudanças climáticas.
Conceitos:
Mangue e Manguezal: Para as marisqueiras e para muitas pessoas, geralmente são termos que significam a mesma coisa, o ecossistema como um todo. Para os pesquisadores, são termos que significam coisas diferentes. “O termo mangue é empregado para designar um grupo floristicamente diverso de árvores tropicais que, embora pertençam a famílias botânicas sem qualquer relação taxonômica entre si, compartilham características fisiológicas similares. As adaptações especiais de que são dotadas permitem que tais espécies cresçam em ambientes abrigados, banhados por águas salobras ou salgadas, com reduzida disponibilidade de oxigênio e substrato inconsolidado. O termo manguezal ou mangal é usado para descrever comunidades florestais ou o ecossistema manguezal, espaço onde interagem populações de plantas, de animais e de micro-organismos ocupando a área do manguezal e seu ambiente físico (abiótico).” Fonte: Atlas dos Manguezais do Brasil / Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. – Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2018.
Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe (FPCT-SE): É um movimento social que articula as comunidades tradicionais sergipanas na luta em defesa de seus territórios tradicionais de vida e trabalho e pela garantia de direitos frente ao avanço da degradação imposta pelos empreendimentos do capital.
Segurança Alimentar: É um direito humano. No Brasil, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN – Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006) define a segurança alimentar e nutricional como “…realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”.
Milongo, sururu, aratu: São animais aquáticos extraídos dos manguezais pelas marisqueiras e muito importantes para a segurança alimentar regional. Eles compõem diversos pratos da culinária do estado de Sergipe. O milongo é um pequeno peixe, também conhecido como boca de ouro pois tem uma estrutura brilhante dentro de sua boca. Sururu é um pequeno molusco, envolto por duas conchas, muito apreciado no estado de Sergipe. O aratu é um caranguejo que vive nos manguezais e amplamente consumido localmente.
Peixes popularmente conhecidos como milongo, em diferentes estágios de crescimento. O nome milongo inclui diferentes peixes do gênero Gobionellus que ocorrem nos estuários sergipanos. A espécie Gobionellus oceanicus é muito popular e apreciada para consumo. Autor: Juliana Schober Gonçalves Lima
Solo e árvores componentes do ecossistema Manguezal em Sergipe. Este solo contém grande biodiversidade, sendo a moradia de muitas espécies de animais aquáticos relevantes para a segurança alimentar das marisqueiras, que caminham diariamente por este local.
Juliana Schober Gonçalves Lima é coordenadora do Laboratório de Artes, Comunicação e Ecossistemas Aquáticos (LArtesComAqua) do Departamento de Engenharia de Pesca da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp (Labjor). julianaschober@academico.ufs.br
Thais Oliveira Cerqueira é Integrante do Laboratório de Artes, Comunicação e Ecossistemas Aquáticos (LArtesComAqua) do Departamento de Engenharia de Pesca da Universidade Federal de Sergipe. thaisoc123@gmail.com