Por Náthaly Cristine Bueno Faria dos Santos
Frequentadores de festivais de música eletrônica no Brasil agora podem descobrir, com precisão e de forma anônima, quais substâncias realmente consumiram. Desde 2023, pesquisadores da Unicamp, em colaboração com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad/MJSP), realizam um projeto pioneiro de testagem de drogas em eventos. A proposta é simples, mas poderosa: por meio da análise de saliva de voluntários, identificar com rigor científico quais compostos foram ingeridos e, assim, mapear o perfil do consumo de drogas sintéticas no país.
Essa análise permite traçar um panorama de uma realidade ainda pouco conhecida: a do perfil de consumo atual de drogas recreativas no Brasil. Os primeiros resultados surpreendem: foram analisadas 1.588 amostras de saliva em 14 festivais realizados nos estados de São Paulo, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Cada amostra revelou, em média, três substâncias diferentes, o que caracteriza o chamado policonsumo — ou seja, o uso combinado de mais de uma droga. Esse uso múltiplo pode ser proposital, na tentativa de intensificar ou equilibrar os efeitos psicoativos, mas também pode ser involuntário, quando a droga está adulterada e o usuário desconhece sua real composição. Em ambos os casos, os riscos à saúde se multiplicam, pois os efeitos das substâncias podem se potencializar ou interagir de forma imprevisível no organismo.
Entre as substâncias mais frequentemente encontradas, a que lidera é o MDA (3,4-metilenodioxianfetamina). Essa droga tem efeitos semelhantes aos do MDMA — conhecido popularmente como “ecstasy” —, como euforia, aumento da empatia e percepção sensorial intensificada. No entanto, também pode causar reações adversas importantes, como aumento da temperatura corporal, confusão mental e alucinações, principalmente quando consumida em ambientes quentes e lotados, como festivais. O MDMA, por sua vez, apareceu em terceiro lugar nas análises, o que sugere que muitos usuários estão consumindo uma combinação de MDA e MDMA, algo que potencializa os efeitos – e também os riscos.
Em segundo lugar na lista de substâncias detectadas está a nicotina, presente em cigarros e vaporizadores eletrônicos. Embora não seja uma droga ilícita, sua detecção reforça o hábito de uso combinado de nicotina com outras substâncias psicoativas, comum em contextos festivos. Já a maconha, mesmo não sendo o foco principal dos eventos de música eletrônica — que geralmente concentram o uso de drogas sintéticas — apareceu com frequência. O composto Δ9-THC (delta-9-tetraidrocanabinol), responsável pelos efeitos psicoativos da maconha, foi frequentemente identificado nas amostras, mostrando que a cannabis segue relevante nesse tipo de cenário.
O aspecto mais preocupante dos resultados, no entanto, está na presença das chamadas novas substâncias psicoativas (NSP). As NSP são compostos químicos criados em laboratório para imitar os efeitos de drogas já conhecidas, como o ecstasy ou a maconha, mas com pequenas alterações em sua estrutura química. Justamente por serem “novas”, muitas não estão incluídas nas listas oficiais de substâncias proibidas e seus efeitos à saúde ainda são mal compreendidos.
Essas drogas são especialmente perigosas por vários motivos: primeiro, por não serem reconhecidas facilmente pelos consumidores; segundo, por terem potências muito superiores às das drogas “tradicionais”; e terceiro, por não haver conhecimento suficiente sobre seus efeitos a curto e longo prazo. Dentro desse grupo, destacam-se os canabinoides sintéticos, popularmente conhecidos na mídia como “drogas K”. Esses compostos imitam os efeitos da maconha, mas podem ser até cem vezes mais potentes. Por isso, elas estão frequentemente associadas a episódios de intoxicação grave, surtos psicóticos e até mortes relatadas em diversos países. O problema se agrava quando essas substâncias são misturadas a outras drogas ou comercializadas como se fossem maconha, sem o conhecimento do usuário.
No gráfico podemos ver, em destaque amarelo, as NSP encontradas nas amostras coletadas em festas e festivais nos anos de 2023 e 2024. Foram identificados derivados de cetamina (desclorocetamina, 2-fluorodesclorocetamina); catinonas sintéticas (dipentilona, pentilona); feniletilaminas (25B-NBOH, 25E-NBOH) e canabinoides sintéticos (MDMB-4en-PINACA, ADB-4en-PINACA, BZO-POXIZID).
O método utilizado para realizar esse mapeamento é rápido, indolor e totalmente anônimo. Durante os festivais, equipes treinadas abordam participantes maiores de 18 anos que relatem ter feito uso recente de substâncias psicoativas. Após uma breve explicação, o voluntário responde a um questionário com oito perguntas — todas sem identificação pessoal. Em seguida, é realizada a coleta de saliva com um pequeno pedaço de algodão colocado sob a língua por até dez minutos. Concluída essa etapa, o participante recebe um cartão com um código e senha individuais, que permitem consultar, em até 15 dias, o laudo toxicológico on-line no site toxicologia-unicamp.com.br. Assim, ele pode saber com precisão quais substâncias foram identificadas em sua amostra.
Além de empoderar o indivíduo com informações sobre o que realmente consumiu, o projeto contribui com dados valiosos para autoridades de saúde pública, pesquisadores e formuladores de políticas públicas. Ao identificar tendências no consumo de substâncias, surgimento de novas drogas e rotas de distribuição, a pesquisa permite uma resposta mais rápida e eficiente frente aos riscos emergentes. Em países como Reino Unido, Austrália e Canadá, programas semelhantes já existem e ajudam a calibrar políticas de prevenção e combate ao tráfico. No Brasil, essa é uma iniciativa pioneira e representa um passo importante na construção de um sistema nacional de vigilância toxicológica de drogas emergentes.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp (CEP, CAAE 88770318.0.0000.5404), garantindo que os direitos dos participantes sejam plenamente respeitados. O sigilo e a confidencialidade são prioridades, e o projeto não emite qualquer julgamento moral sobre o uso de drogas. Pelo contrário, busca transformar curiosidade individual em conhecimento coletivo, contribuindo para a redução de danos e a promoção de saúde. Uma simples amostra de saliva se transforma, assim, em um instrumento de cidadania, ciência e cuidado.
Náthaly Cristine Bueno Faria dos Santos é mestra em farmacologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e pesquisadora clínica no Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas (CIATox)