A presença de analgésicos, anti-inflamatórios, estimulantes, antimicrobianos, antibióticos e antidepressivos na água provoca infecções, doenças e resistência à medicamentos, além de alterar o equilíbrio do ecossistema aquático
Por Juliana Vicentini
Há mais de 3 mil substâncias farmacêuticas ativas em medicamentos prescritos em todo o mundo, contabiliza artigo publicado na revista European Journal of Health Sciences. Os chamados poluentes farmacêuticos ambientalmente persistentes (PFAP) estão presentes em medicamentos que resistem à degradação e contaminam o meio ambiente, representando riscos à saúde e aos ecossistemas, esclarece a ONU.
Os PFAP chegam nos corpos d´água por diversas vias, principalmente excretados pela urina ou fezes. E podem ser encontrados tanto na forma original do princípio ativo do medicamento, mas também de forma inativa, quando há a transformação química do fármaco após a metabolização pelo organismo, conforme dados da OECD. Isso faz com que os compostos fiquem sem efeitos farmacológicos – mas também pode fazer com que se transformem em compostos ativos mais potentes.
Outro percurso dos PFAP até os rios é por meio do descarte inadequado diretamente em pias, vaso sanitário ou lixo comum, ou o lançamento direto de efluentes pela indústria farmacêutica. As substâncias passam pelas estações de esgoto e de água – mas em muitos locais o tratamento é inexistente ou limitado. E mesmo estações modernas dificilmente conseguem remover por completo esses poluentes, fazendo com que permaneçam nos rios. O PFAP são micropoluentes persistentes compostos por sustâncias químicas com alta estabilidade, baixa biodegradação e grande potencial de bioacumulação. Isso dificulta a remoção pelos processos convencionais, conforme detalha o artigo publicado por pesquisadores da Universidade do Paquistão. Além disso, a variedade de medicamentos com estruturas químicas diversificadas complica o desenvolvimento de um método que seja eficaz para todas.
Panorama global
Os PFAP estão presentes nos rios de diversas partes do mundo. Alguns apresentam concentrações mais elevadas do que outros. “Isso está relacionado a uma combinação de fatores, como infraestrutura de saneamento deficiente e/ou ineficiente, alta densidade populacional, consumo intenso de antibióticos por humanos e pela pecuária, além do descarte inadequado de resíduos hospitalares e industriais”, explica Heloisa Ehalt Macedo, pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Geografia da Universidade McGill em Montreal, Canadá.
As altas concentrações de poluentes fármacos nos rios também estão relacionadas a questões socioeconômicas. John Wilkison e colaboradores publicaram um artigo no qual identificaram que países de baixa e média renda, sobretudo da África Subsaariana, sul da Ásia e América do Sul, possuem mais PFAP nos rios se comparados a regiões com melhores condições financeiras. Para os autores, isso se deve ao fato de os locais terem infraestrutura precária de tratamento de águas residuais e gestão de resíduos.
O aquecimento global afeta o regime de chuvas e esse é outro fator que contribui para intensificar o problema. No caso do Brasil, que é uma região tropical, “as chuvas ficam mais concentradas e intensas. Quando isso acontece, pode ter um carreamento maior de esgoto doméstico lançado nos rios. Em alguns locais, principalmente na região metropolitana de São Paulo, há muitos casos de ligações irregulares direto na rede pluvial. Então, quando chove mais, todo aquele esgoto chega nos rios de uma só vez. No período de seca, os poluentes ficam ainda mais concentrados”, explica Ricardo Tanioaki, professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC.
Cientistas do Global Monitoring of Pharmaceuticals pesquisaram 258 rios em 104 países. Dos 61 produtos farmacêuticos pesquisados, 53 foram identificados nos sete continentes. Os contaminantes com as maiores concentrações foram paracetamol (analgésico e anti-inflamatório), cafeína (estimulante), metformina (anti-diabético), fexofenadina (anti-alérgico), sulfametoxazol (antimicrobiano), metronidazol (antimicrobiano) e gabapentina (dor neuropática). A carbamazepina (tratamento de epilepsia) foi detectada em 62% dos locais, exceto na Antártida.
Os seres humanos consomem 32 mil toneladas/ano de antibióticos, sendo que os 40 mais utilizados correspondem a 29 mil toneladas desse total, revela a publicação de Heloisa Ehalt Macedo e seus colegas da Universidade McGill. Eles explicam que, desse montante, 29% são liberados nos rios de várias partes do mundo, com destaque para amoxicilina, sulfametoxazol, ciprofloxacimo, cefalexina e ampicilina. Os cientistas ainda completam que, considerando apenas as fontes domésticas, mais de seis milhões de quilômetros de rios concentram uma quantidade de antibióticos que excedem os limites toleráveis pelo ecossistema aquático.
Pesquisadores detectaram a presença de antidepressivos em alguns rios brasileiros. Luis Schiesari e colaboradores publicaram um artigo no periódico Environmental Pollution, no qual 53 riachos de terceira ordem da Bacia do Rio Tietê foram objeto de estudos. Eles encontraram antidepressivos em 39 dos 42 riachos – as exceções foram os corpos d´água inteiramente florestados. Os ingredientes ativos e metabólitos analisados foram inibidores seletivos da recaptação de serotonina, inibidores da recaptação de serotonina e norepinefrina, aminocetonas, tricíclicos e tetracíclicos.
Impactos à saúde humana e ao meio ambiente
A presença de PFAP nos rios traz impactos importantes. No que diz respeito aos resíduos de antibióticos, “estudos já indicam que, mesmo em baixas concentrações, essas substâncias favorecem o surgimento de bactérias resistentes. Isso representa uma ameaça à saúde pública, pois pode tornar os antibióticos menos eficazes no tratamento de infecções”, esclarece Macedo, da Universidade McGill.
Os poluentes de antidepressivos nos rios deixam rastros que comprometem a saúde humana. “No Brasil, o famoso campinho de várzea em que as crianças brincam são poluídos com essas substâncias. Cai a bola na água, a pessoa pega, coloca a mão na boca, nos olhos, ou até ingere sem querer e acaba pegando infecção intestinal e hepatite. É comum”, pontua Ricardo Tanioki.
A presença dessas substâncias nos rios contribui intensamente com a degradação ambiental. “Os antibióticos podem alterar a composição e a diversidade da microbiota aquática, afetando tanto bactérias benéficas quanto patogênicas. Além disso, podem ser tóxicos para organismos como peixes, algas e invertebrados, interferindo em processos como a reprodução e a sobrevivência, o que compromete o equilíbrio ecológico dos ambientes aquáticos”, explica a pesquisadora Heloísa Macedo. Em termos de comparação, “o tamanho dos peixes e anfíbios é muito menor do que o tamanho do ser humano, então o contato deles com diferentes antidepressivos na água pode causar muitos problemas, incluindo, comportamentais e reprodutivos”, completa Tanioaki.
Diminuir ou eliminar a presença dos poluentes farmacêuticos na água não é uma tarefa simples e envolve a mobilização de diversos setores. “É fundamental investir na criação de sistemas de monitoramento ambiental para detectar a presença de antibióticos nos rios, permitindo que os recursos sejam aplicados em locais realmente necessários e que leis e regulamentos sejam colocados em prática. Também é preciso aprimorar e implantar novas tecnologias de tratamento de esgoto, com métodos capazes de remover ou degradar essas substâncias. Por fim, é crucial apoiar pesquisas que aprofundem o entendimento sobre o comportamento e impactos de substâncias específicas no ambiente e que desenvolvam soluções pontuais e eficazes para reduzir sua presença nos recursos hídricos, garantindo a proteção do ecossistema e da saúde pública”, enfatiza a pesquisadora Macedo.
Juliana Vicentini é doutora em ciências (ecologia aplicada) pela USP e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.