Entrevistas com atletas brasileiros que participaram do evento realizado na Cidade do México revelam memórias históricas
Lívia Mendes Pereira
Em 2013, o cineasta Ugo Giorgetti lançou o documentário de média-metragem México 1968 – a última Olimpíada livre. Produzido para o canal ESPN Brasil, em parceria com a produtora Canal Azul, trouxe um olhar afetivo sobre o evento, a partir de entrevistas com atletas que participaram da edição.
O cineasta trouxe luz para um acontecimento histórico e político que marcou aquela edição, o Massacre de Tlatelolco. Dez dias antes da cerimônia de abertura houve uma manifestação contrária à realização dos Jogos na Cidade do México. Naquela ocasião, as forças armadas do país abriram fogo contra civis. O massacre aconteceu na Praça das Três Culturas, na seção de Tlatelolco, e foi parte da chamada Guerra Suja Mexicana, quando o governo tentou eliminar a oposição à força.
O jogador de vôlei Mario Dunlop, comenta, na última entrevista do documentário, que algumas experiências somente o esporte consegue propiciar. “É bom voltar no tempo”, afirma. Essa fala reflete a atmosfera do documentário que, ao recuperar esse acontecimento marcante da história, resgata uma memória importante.
Dhenis Rosina, doutor em ciências pela Escola de Educação Física e Esporte da USP e integrante do Grupo de Estudos Olímpicos, destaca que o título dado por Ugo, incialmente, se refere à relação dos atletas com a vila olímpica – a edição do México foi, literalmente, a “última de livre acesso”. Após o atentado de 1972 as restrições à vila olímpica ficaram muito maiores.
“Quando vemos o relato dos atletas, há toda uma ideia de festa dos Jogos Olímpicos. A entrada e a saída facilitadas, o clima de festa que se construiu no México, todos os atletas vão relatar. Mesmo que dez dias antes tenha acontecido o massacre de Tlatelolco. Essa liberdade, na minha interpretação, ainda fica muito relacionado a essa ideia”, explica Dhenis.
A montadora do filme, Silvia Okumura Hayashi, professora do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da USP e integrante do Laica (Laboratório de Investigação e Crítica Audiovisual), confirma a informação. Segundo ela, o título dado por Ugo remete à última liberdade da vila olímpica, uma vez que na edição seguinte haveria a tragédia.
“É a última Olimpíada livre porque, em 1972, em Munique, houve o atentado contra a delegação israelense. Depois disso tudo ficou com muita segurança, muita vigilância, muito controle”, comenta Silvia.
Para a montadora, a história dessa Olimpíada livre tem dois aspectos, sendo um desse ambiente mambembe, de maior fruição, da alegria de ser convocado. Em contrapartida, junto aos depoimentos sobre a liberdade dos jogos, aparecem as declarações sobre o massacre, e a veiculação de algumas imagens de arquivo que ilustram o episódio.
Luiz Claudio Menon, ex-jogador de basquete, é o primeiro a descrever o que aconteceu: “Na Praça das Três Culturas, as forças federais metralharam uma centena de estudantes”. Antonio Euclides Teixeira, jornalista enviado ao México e um dos únicos não atletas entrevistados, ao lado do fotógrafo Antonio Vieira, revela: “No momento em que começou a manifestação, começaram os discursos, havia umas 6 mil pessoas, mais ou menos. E, de repente, helicópteros começaram a sobrevoar o local. Em um dado momento vi que de um deles saía uma chama brilhante, um desses fogos artificiais que, suponho, era o sinal para que as tropas em terra atacassem. Foi um tiroteio impressionante”.
Apesar de não seguir uma narrativa focada no Massacre de Tlatelolco, a série de entrevistas recupera muito dos acontecimentos políticos daquela edição. Como Dhenis Rosina realçou, a previsão de uma condição apolítica dos Jogos Olímpicos, defendida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) é, por si só, contraditória. Há uma relação direta entre o esporte e os estados nacionais, e as Olímpiadas de 1968 trouxeram questões latentes da década de 1960, que foram ali catalisadas, por uma mobilização política em escala global, a partir das tensões geradas pela Guerra Fria.
O Grupo de Estudos Olímpicos da USP, coordenado pela professora Katia Rubio, parte da ideia de registros de memórias individuais que despertam histórias coletivas. A pesquisa de Dhenis Rosina faz parte dos estudos das “Memórias olímpicas por atletas olímpicos brasileiros” e entende a memória pública como transposição das memórias individuais.
“Quando olhamos para a história ou para o fato histórico, parece que ele permeia toda a nossa realidade. Os atletas olímpicos nos jogos não necessariamente estão em todos os lugares, provavelmente estão na Vila Olímpica ou em uma competição. Então, pensar o cotidiano do atleta é fundamental. A construção da minha tese vai por um caminho macropolítico que espera muita coisa da pessoa que viveu o momento histórico, quase uma onipresença do ser humano e isso é impossível. Uma das primeiras defesas da tese é essa: se trabalhamos com a memória individual, que ela seja considerada em sua individualidade. Porque, senão, esperamos um relato histórico e ele não vem”, explica Dhenis.
Silvia Okumura conta que ela e Ugo foram selecionando as imagens que achavam interessantes e estruturando o filme por eixos temáticos. Buscaram imagens de arquivo para ilustrar e contextualizar os acontecimentos, como material da Cinemateca Brasileira, televisão e até as imagens que os próprios atletas gravaram. “Eles trouxeram o que tinham gravado, fotografado. Um carretel de super- 8 gravado por um jogador de polo aquático entrou no filme. Tivemos imagens da rotina na Vila Olímpica, o quarto, entrando e saindo do avião e várias imagens da abertura. Eram memórias de outros participantes que foram conjugadas na montagem e ficou super bonito”, comenta Silvia.
A memória recuperada pelo audiovisual faz repensar o passado, ressignificar e explicar o presente e projetar o futuro. O documentário de Giorgetti, além de resgatar uma liberdade festiva presente no evento esportivo, olha para a memória como uma questão de preservação. Como indica o pesquisador Dhenis Rosina “sem dúvida o documentário contribui para essa preservação, para que as imagens e arquivos sejam preservados e documentados e seja de acesso livre a todos”.
Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp