Uma procissão é um cortejo de corpos individuais, marchando lado a lado, corpo a corpo, criando um corpo coletivo. Corpos em desfile, constituindo um corpo processional. Um corpo constituído a partir de vários corpos, que se ligam por sentimentos e por emoções comuns. Um corpo emocional, comunidade emocional em termos weberianos, dir-se-ia. Uma corporação: corpo/coração em ação. Cor-p-ação. Corpos místicos, a serviço de um mito religioso e político, que se produzem e re-produzem coletiva e publicamente em reunião extraordinária e especialmente consagrada, em desfile público pela cidade.
Por Léa Freitas Perez
O que quero apresentar é uma proposta de uma gramatologia da festa, fruto de um ciclo de trabalho, que vem ocorrendo desde 2009, quando comecei – de modo sistemático, contínuo e articulado – a desenvolver projetos na tripla articulação entre festa, religião e cidade, tendo como foco privilegiado as procissões da Semana Santa, particularmente a procissão dos Passos, tematizando as variadas possibilidades empíricas e conceituais de suas modulações, de suas interfaces, e de suas articulações, desde uma visada de diálogo Brasil-Portugal.
Fazendo dos passos das procissões (fato histórico-etnográfico) também passos de pesquisa (reflexão epistêmico-heurística) o maior aprendizado que tive foi de que ao fim e ao cabo trata-se sempre de fazer corpo na duração do fazer corpo (ao mesmo tempo fato histórico-etnográfico e reflexão epistêmico-heurística). Tomando como ponto de partida e ancora a experiência e a expertise adquiridos, quero propor a possibilidade de uma gramatologia da festa, ancorada na perspectiva derridiana (Derrida, 1973), assentada em três planos/níveis modulados/articulados entre si: experiência da escritura na escritura da experiência, passos de pesquisa e passos de procissão e fazer corpo na duração do fazer corpo.
Primeiro – a experiência da escritura na escritura da experiência
Como diz Francis Affergan “aquele que se descobre escrevendo, que escreve descobrindo e que descobre sua própria capacidade de escrever, impotente que é de provar a veracidade do que vê, não pode senão exigir ser acreditado sob palavra” (1987, 111). Uma tal abordagem inspira-se ainda em Michel Leiris em sua ambiciosa provocação para que não temamos expor, em nossos textos, nosso “coeficiente pessoal”, pois que é ele que permite “o cálculo do erro – a melhor garantia possível de objetividade”. Ou em termos mais maussianos, mas sempre na pena de Leiris, “só o concreto é verdadeiro”, “é levando o particular ao limite que se atinge o geral, e pelo máximo de subjetividade que se toca a objetividade” (2007, 302).
A tematização da escritura da experiência na experiência da escritura, pensada em termos de uma gramatologia, possibilita a reflexão epistêmico-heurística, num duplo e complexo jogo, como atividade e como objeto de investigação da própria antropologia. A disciplina, ela mesma, passa a ser pensada como expressão exemplar dos modos pelos quais uma episteme, ao textualizar o outro (seu “fora”), enquanto “objeto”, constrói, administra e defende a sua própria economia de relações e de enraizamentos (seu “dentro”)[1].
Segundo – passos de pesquisa e passos de procissão
Ao longo dos anos, mergulhando em profundidade no multiverso festivo luso-brasileiro, pude experienciar e refletir sobre o que chamo de aproximação epistêmico-heurística entre passos de pesquisa e passos de procissão. A cada procissão, mesmo com meus pés exaustos de tantos passos dados nos passos de cada procissão, ao chegar do campo me via diante de um imenso material – fotográfico, sonoro, anotações de campo, com minhas observações e minhas rápidas impressões – que precisava registrar, como demandado pela boa prática do métier – no seminal e clássico – diário de campo, instrumento de trabalho do antropólogo, que nada mais é do que um texto, que serve para gerar outros textos. Lentamente, passo a passo, a cada procissão e a cada entrada em meu diário de campo, percebia que a pesquisa avançava, ela também, passo a passo, e que tanto a procissão quanto a pesquisa apresentavam certas similitudes, que valiam a pena serem exploradas em uma visada epistêmico-heurística.
A ideia de explorar o que viria, posteriormente, chamar de passos de pesquisa e passos de procissão veio-me, de modo mais pregnante, como não poderia ser de outro modo da leitura de textos. Padre Abel Varzim (2002), em livro primoroso e inspirador, fez uma aproximação entre os passos da procissão dos Passos e os passos das prostitutas no Bairro Alto em Lisboa.
Assim, articulando/modulando experiência de campo e reflexão analítica comecei a esboçar as similitudes epistêmico-heurísticas entre pesquisa e procissão. Ambas as atividades – ainda que se situando em planos de referência e de experiência distintos, uma no da ciência a outra na do transcendente, ou seja, uma na do profano real e a outra na do sagrado mistério – baseiam-se em sequências ordenadas e sistemáticas de deslocamento, com necessário investimento corporal, implicando sempre um percorrer caminhos, ou seja, percursos, avançando em busca de algo e acreditando em algo, na procura de um encontro. Fé na procissão, conhecimento na pesquisa, em ambas o gesto fundamental é o da relação, daquilo que liga, a fé em uma, o conhecimento em outra. Outra similitude é a imperiosa participação, afetiva numa, de conhecimento noutra. Participação que, em ambas as atividades, para além das sequências delimitadas que configuram sua estrutura formal, e que se epifanizam seja no desenvolvimento da pesquisa e no seu produto final – o texto, (qualquer que seja seu suporte) – seja no ritual, intervém o elemento da surpresa, do acaso, do inesperado, que reenvia, por sua vez, à imaginação criadora, à fantasia, eventualmente, à invenção. Como bem diz o mestre Otávio Velho, falando do trabalho de campo, trata-se da “descoberta daquilo que não se está procurando”, apontando para a irrupção no trabalho do antropólogo [ou de qualquer outro pesquisador adiciono] da imprevisibilidade, “acentuando a centralidade dos indícios sensoriais e das conexões estabelecidas entre elementos aparentemente díspares e distantes entre si”, e,“tudo isso demandando paciência, sensibilidade e tempo”; “tempo, até, de desaprender teorias e pensamentos automatizados, inclusive os que veem revestidos de autoridade” (Velho, 2006,11).
A primeira celebração que assisti em Lisboa foi uma procissão dos Passos da Irmandade do Senhor dos Passos de Santos-o-Novo realizada no recolhimento de Santos-o-Novo, que pertence às Comendadeiras de Santos, da ordem de Santigo da Espada. É neste Mosteiro (de Santos-o-Novo) que se localiza a residência do Instituto Universitário de Lisboa (Iscte), onde morei durante meu estágio sênior de pesquisa, logo não escolhi esta procissão, ela se colocou no meu caminho, tal alpondras e serendipitys[2]. Vale dizer que no meio de meu caminho, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, não havia uma pedra, mas uma procissão. Antropologia at home, sonho oculto de todo antropólogo.
Terceiro – Fazer corpo na duração do fazer corpo
Tomo as relações entre corpo e duração, isto é, em fazer corpo na duração do fazer corpo como uma espécie de fórmula de apreensão das procissões, no geral, e em Portugal no particular. Duração porque remetem a uma hi[e]stória de longa de séculos e de séculos[3]. Fazer corpo também porque operar ligações é seu intento e seu feito fundamental. Ora, como sabemos, sociedade, no plano institucional e normativo, é corpo constituído por regras e por práticas, que só fazem senso e nexo se demandarem e gerarem emoções e sentimentos epifanizados nos corpos de seus membros.
Falo em fazer corpo também porque uma procissão é um cortejo de corpos individuais, marchando lado a lado, corpo a corpo, criando um corpo coletivo. Corpos em desfile, constituindo um corpo processional. Um corpo constituído a partir de vários corpos, que se ligam por sentimentos e por emoções comuns. Um corpo emocional, comunidade emocional em termos weberianos, dir-se-ia. Uma corporação: corpo/coração em ação. Cor-p-ação. Em suma, estamos a lidar com corpos que se fazem e refazem, a cada procissão, a cada ano e na duração. Corpos místicos (logo sagrados), a serviço de um mito religioso (a igreja) e político (a cidade, a nação), que se produzem e re-produzem coletiva e publicamente (logo sociais) em reunião extraordinária e especialmente consagrada (logo em festa), em desfile público pela cidade, no coração da cidade.
Fazer corpo na duração do fazer corpo, igualmente, já que em se tratando de procissões do catolicismo, não se pode desconsiderar alguns elementos fundamentais: 1) esta religião, desde seu começo, “se ligou à corporização (incarnação) da Palavra divina (Verbo, Logos) e ao sinal deste mesmo corpo oferecido por todos como alimento perpétuo que assimila a si os que o recebem, fazendo de todos eles um só corpo também” (Clemente, 2006, 8); 2) o próprio ano litúrgico do catolicismo romano toma como unidade a duração da vida de Cristo, tendo como índices/marcadores fatos e episódios a ela ligados, constituindo um calendário, dividido em tempos/ciclos, para cada um tendo uma comemoração, ou seja, uma festa, o todo compondo um corpus ao mesmo tempo religioso, litúrgico e festivo, que dura pela sua repetição anual ao longo do tempo; 3) as dramatizações rituais que fazem os corpus de memória desse corpus religioso são a procissão dos Passos e a procissão do Corpo de Deus/Corpus Christi, eventos de hi[e]stória longa, remontando a tempos medievais; 4) procissões operam uma inequívoca associação com a cidade, com seu corpo urbano, logo encenando, sincronicamente e no eixo da longa duração, as relações e coimplicações entre festa, religião e cidade. Apenas para efeitos de registro, das procissões dos Passos, a que marcou época em Lisboa foi a do Senhor Jesus dos Passos da Graça, que data de 1587 e vem sendo realizada desde então sem interrupções e sem significativas mudanças rituais e formais.
Para Jaques Derrida, a quem sigo aqui, a gramatologia e a reflexão que ela aciona e solicita remetem às condições de possibilidade “da constituição de uma ciência ou de uma filosofia da escritura”, “tarefa necessária e difícil”, mas vital se quisermos (e tenho a ambição de querer) perscrutar o querer-dizer (vouloir-dire) – nos meus próprios termos, o que estamos dizendo quando estamos dizendo o que estamos dizendo – em nossa atividade de pesquisa (Derrida, 1973, 118). A perspectiva gramatológica abre todo um campo de possibilidades – empíricos (quando devidamente aplicado ao trabalho de campo) e epistêmico-heurístico (quando apropriadamente seguido em nossas práticas textuais) – para uma reflexão acurada e refinada do conhecimento que produzimos e, assim, “escrever o discurso do seu método” e “descrever os limites do seu campo” (Derrida, 1973, 5).
Léa Freitas Perez é professora titular aposentada da Ufmg, membro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário Os Ciriacos
NOTAS
[1] A este respeito ver: Perez, 2016.
[2] Alpondras: usualmente pedras enfileiradas de um curso d’água por cima das quais se passa de uma margem para outra; passadeiras. Serendipity: “trata-se (ninguém é obrigado a saber) de palavra cunhada por Horace Walpole (1717-1797) a partir de um conto de fadas persa (os três príncipes de Serendip) para se referir à importância do acaso, da surpresa e da descoberta daquilo que não se está procurando” (Velho, 2006, 11). António Firmino da Costa também faz uso da noção de serendipity, recuperando-a de Robert Merton (1985), o célebre metodólogo da sociologia, que falava em “padrão de serendipidade”, propondo, substitui-lo, “pelo por nós muito mais imediatamente referenciável ‘padrão de Pedro Álvares Cabral’” (Costa 1985, 735).
[3] Grafo história propositadamente hi[e]stória para ressaltar o double bind que o tropo comporta e solicita como fato e artefato, evento e acontecimento, real factual e reconstrução imaginária e discursiva, para enfatizar igualmente que hi[s]stórias puxam h[is]tórias numa rede sem fim de remissões e de disseminações. Double bind [duplo vínculo], como já disse em outro lugar (Perez 2011) é um tropo proposto por Gregroy Betenson (1956), que se refere à existência de injunções paradoxais [aporéticas], dupla postulação. Uso-o em sua acepção derridiana, que remete ao senso mesmo da diferença e da indeterminação no que tange à solução e ao fechamento de uma questão de pensamento, em uma só palavra: indecidibilidade.
Referências
Affergan, F. 1987. Exotisme et altérité: essai sur les fondements d’une critique de l’anthropologie. Paris: Puf.
Clemente, M. A festa do “Corpo de Deus” no passado nacional e torriense. Silva, Carlos Guardado (coord.). História das festas. Lisboa: Edições Colibri/Câmara Municipal de Torres Vedras/Universidade de Lisboa, 2006.
Costa, A. F. da. 1985. “Espaços urbanos e espaços rurais: um xadrez em dois tabuleiros”. Análise Social, vol. XXI.
Derrida, J. 1973. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva.
Leiris, M. 2007. A África fantasma. São Paulo: Cosac Naify.
Perez, L. F. 2011. Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil. Porto Alegre: Medianiz.
Varzim, A. 2002. Procissão dos Passos: uma vivência no Bairro Alto. Póvoa de Varzim, Câmara Municipal: Multinova.
Velho, O. 2006. Trabalhos de campo, antinomias e estradas de ferro. Aula inaugural proferida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.