Pesquisas investigam a evolução das quadrilhas de São João

Por Liniane Haag Brum 

Moradora do bairro Uruguai, na Península de Itapagipe, região periférica de Salvador, Spesia Peixoto guarda na memória os tempos de ouro da Arraial Campestre, quadrilha que fundou e que foi uma das primeiras a introduzir, na capital baiana, o estilo “elite ou luxo”. Em uma época em que a chamada estilização das quadrilhas estava em processo de consolidação, Peixoto venceu um dos concursos anuais, em 1987, com o tema luxo/lixo: “Que trabalho, viu? Essa roupa aqui (mostrando croqui e fotos) era toda de pedaços de panos, consegui retalhos nas fábricas, a gente fez essa roupa toda de velcro. Aí começava a dançar, quando tirava (os retalhos) aparecia o luxo embaixo. Aí pronto! Foi campeã de novo!”.

Spesia Peixoto é uma das pessoas ouvidas pela artista da dança, pesquisadora e professora Soiane Gomes Paula, durante sua pesquisa de mestrado, realizada no Programa de Pós-graduação em Dança, na Universidade Federal da Bahia. O estudo de Paula se propôs a compreender as transformações pelas quais passaram as quadrilhas juninas da região metropolitana de Salvador, a partir da década de 1970, que eram inicialmente voltadas para as comunidades urbanas, e não orientadas para concursos e espetáculos. A pesquisa, pioneira por empreender um mapeamento das quadrilhas soteropolitanas, encontrou barreiras: “Minha pesquisa foi a primeira sobre a quadrilha junina de Salvador, eu não tinha bases”.

Instigada por um dos seus professores, Paula retomou suas recordações acerca de seu próprio percurso como quadrilheira, iniciado em 1994. “Debruçando sobre minha memória, fui me interessando em saber a memória de outras pessoas. Comecei a pesquisar quadrilheiros mais antigos, que atuavam desde a década de 1960. Então a pergunta de pesquisa se tornou: o que podem revelar as narrativas das memórias?” conta a pesquisadora baiana.

Paulo Ornellas, membro da quadrilha Forró do ABC, a mais antiga em atividade em Salvador, relatou: “as quadrilhas dançavam muito (quantitativamente) porque tinham esse compromisso com as comunidades, então se você, por exemplo, fizesse uma festa lá na Boca do Rio e convidasse a quadrilha, não existia o estrelismo de hoje, não existia essa coisa: ‘eu sou o artista, a estrela, não vou!”.

A escuta de 14 quadrilheiros, o material documental levantado junto a acervos, arquivos e programas midiáticos e a vivência da pesquisadora como dançarina, levaram a constatação de que os grupos soteropolitanos de quadrilha junina tiveram redução de cerca de 90%, entre 1989 e 2019, e reconduziram o rumo do trabalho: “aonde foram parar essas quadrilhas? E por que elas acabaram? O que aconteceu?” A necessidade de ampliar a coleta de depoimentos e de circunscrever esse fenômeno levou-a a conjugar a metodologia da pesquisa-ação, ao método qualitativo. A realização do 1º Fórum de Quadrilhas de Salvador durante o mestrado auxiliou na tarefa de mapear grupos de diversas gerações que testemunharam as mudanças pelas quais passaram as apresentações, bem como propiciou a coleta de dados sobre o perfil social quadrilheiros.

Soiane Gomes Paula anota que os resultados da pesquisa apontaram um modo soteropolitano de se fazer quadrilha junina e possibilitaram “compreender em que lugar da sociedade se encontram os participantes de quadrilhas juninas e quem são os sujeitos que movimentam esta expressão cultural em Salvador”.

Na pesquisa de doutorado atualmente em curso no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, a professora retoma a experiência de articulação política do Fórum Permanente de Quadrilhas Juninas, com o objetivo de gerar indicadores capazes de embasar a criação de políticas efetivas de fomento às quadrilhas juninas.

Como a pesquisadora baiana, o despertar intelectual do antropólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco Hugo Menezes Neto para o tema aconteceu porque ele mesmo atuou como quadrilheiro. Neto integrou a quadrilha junina Brigões do Suape por 12 anos, em que também exerceu função de liderança. Essa posição foi importante para o desenvolvimento de sua pesquisa de mestrado. No entanto, apesar do acesso privilegiado e da experiência empírica, ele optou por se afastar da dança para conduzir o estudo. A decisão, fruto de uma reflexão consciente explicitada em seu trabalho final e usada para compor a metodologia, teve como objetivo adotar distância para observar o fenômeno com rigor científico.

A dissertação de mestrado do professor pernambucano foi publicada no livro O balancê no arraial da capital – quadrilha e tradição no São João. No trabalho, ele investigou como o conceito de tradição é usado e disputado entre as quadrilhas juninas do Recife. A pesquisa usou as ferramentas da antropologia: observação participante, entrevistas e análise de documentos.

Longe de opor tradição e espetacularização, Menezes entende que “a tradição não é aquilo que nós, intelectuais, professores, escritores, achamos que é. Como se fosse algo engessado, imutado. A tradição é um conjunto de conteúdos simbólicos que estão à disposição dos quadrilheiros. Muita coisa mudou, mas muitas coisas permanecem. O casamento continua sendo o ato principal”.

Menezes, que se tornou um estudioso da quadrilha junina e hoje se dedica a pesquisas nas áreas do patrimônio imaterial, museus e festas públicas, adverte, no entanto, para o fato de que a dança, tradicionalmente, encena um casamento forçado. O pai da noiva, um coronel, se junta ao padre e ao delegado para obrigá-la a casar com um homem que ela não quer: “Uma estrutura radical de uma sociedade que já não existe mais. Uma mulher obrigada a casar com alguém porque foi desvirginada. Essa é a premissa da brincadeira tradicional”.

Ele entende que essa quadrilha – que começou a mudar na década de 1980 – deixou de espelhar a realidade social. Daí a necessidade de os membros ajustarem essa expressão. Com isso, a manifestação foi passando por transformações que se revelam sobretudo na sua estética. As fantasias tornam-se reluzentes, vistosas e luxuosas. O repertório musical também se ampliou: “E isso transforma o espetáculo em algo muito mais cênico do que era antes. Muito mais cênico, no sentido da dramaturgia, da dramaticidade, da estrutura performática, e tem sido cada vez mais elaborado”. Ele também ressalta a relação de troca entre os grupos quadrilheiros: “com os circuitos nacionais, entre concursos regionais e nacionais, e com a internet. Elas se encontram, se veem e se copiam, e vão ficando quase que todas nesse mesmo formato, inclusive para caber nos concursos”, explica.

A conclusão de sua pesquisa mostrou que a tradição não é fixa, mas sim uma ferramenta de disputa por legitimidade, na qual grupos adotam posições flexíveis, ora conservadoras, ora inovadoras, conforme seus interesses. “Eu costumo dizer que as mudanças serviram, inclusive, para a manutenção de alguns elementos importantíssimos para a experiência tradicional. Mudou para permanecer. Foi o que aprendi com eles (os quadrilheiros) no meu processo de mestrado. Eles sempre usaram a tradição a seu favor para transformação”.

O envolvimento da professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba Luciana Chianca com o tema das manifestações culturais populares, em particular sua investigação sobre festas juninas urbanas brasileiras, remonta a 1987. Foi ainda durante a graduação, realizada em Campina Grande, a celebrada capital (não oficial) das festas juninas, que ela iniciou as pesquisas que hoje servem de referência para estudos sobre o tema. Desde então, a doutora em antropologia pela Universidade de Bordeaux e consultora expert da Unesco sobre patrimônios imateriais e cidades, informa sobre quadrilhas juninas.

Chianca relembra que as festas juninas são celebrações dedicadas aos santos padroeiros do ciclo junino: Santo Antônio, São João e São Pedro, festejados, respectivamente, nos dias 13, 24 e 29 de junho. É nesse contexto que se dá a estreia da quadrilha: “ela é exclusiva do São João. Depois os grupos a levam para os concursos locais, regionais e nacionais”, revela a professora. A ênfase na quadrilha não se deve ao acaso, pois ela é expressão que teve mais renovação e que tem mais penetração no Brasil, em quase todos os estados. Ao passo que a fogueira é fixa e acesa somente na noite de São João, a quadrilha é dinâmica e perdura a celebração.

Segundo a professora, a quadrilha sempre esteve ligada à exibição. Mesmo em sua origem, ou seja, a chegada no Brasil como contradança trazida pela corte imperial portuguesa dos palácios europeus, ela já possuía caráter de espetáculo: “por mais que seja espetáculo, ela é também diversão. Quadrilhas não são desfiles, elas mexem e atuam dentro de um espaço circunscrito para isso: um quintal, uma rua, uma quadra. O que está acontecendo com relação à espetacularização é que as quadrilhas também se transformaram em um evento midiático”, afirma a estudiosa. Ela ressalta que a dança não corre o risco de assemelhar-se ao carnaval, como às vezes o senso comum pode pensar. A quadrilha tem seus motivos próprios, como por exemplo o casamento e a dança em pares: “no carnaval todo mundo dança separado, na festa junina se dança junto. A quadrilha é para casais, dançada por casais, a beata, por exemplo, é arrumada para dançar com o padre”, conta Chianca.

Há também as quadrilhas espontâneas, que ocorrem de maneira improvisada, sem organização prévia ou necessidade de público, e são bastante comuns. “Outras são ensaiadas diversas vezes e apresentadas em um momento e local previamente acertado, comportando   espectadores:  são as quadrilhas de espetáculo privativo, que ocorrem em escolas, locais de trabalho ou associações”.

Quadrilhas de paródia, quadrilhas caricatas, quadrilhas matutas, quadrilhas LGBTQIAPN+, espontâneas, espetaculares: quadrilhas contemporâneas. “Interessante na quadrilha é a capacidade que ela tem de se reinventar”, assevera a professora Luciana Chianca.

Liniane Haag Brum é doutora em teoria e crítica literária (Unicamp). Bolsista Mídia Ciência (Fapesp) pelo qual desenvolve o projeto de divulgação “Tempo e documento: Ugo Giorgetti em quatro médias-metragens”.