Em todos os rituais festivos religiosos, como cultos, cerimônias, missas, festas de terreiro e procissões, há algum tipo de partilha – do preparo ao oferecimento do alimento. Pesquisadores apontam que reconhecer as origens afro-indígenas é fundamental para compreender a cultura alimentar brasileira — e também para questionar apagamentos históricos que ainda persistem.
Por Larah Camargo e Lívia Mendes
São múltiplas as formas de os brasileiros celebrarem seus rituais, festas, santos, colheitas e datas comemorativas – grande parte delas, fortemente influenciadas pelas tradições dos diversos povos indígenas e africanos que constituíram o país. Essa herança se manifesta na mesa das celebrações mais tradicionais. A origem histórica da culinária nacional tem raízes nas práticas alimentares dos povos que já viviam aqui e que seguem cultivadas nas técnicas e ingredientes, através de séculos de transmissão.
Como lembra a pesquisadora e fundadora do Instituto Djanira, Daniela Frozi, “essas tradições continuam existindo porque existem aprendizes. Cada um desses povos tem anciões que passam a história oral e vão dando sentido para plantar, colher, preparar, ir à mesa e à comensalidade”.
Culinária afroindígena e as celebrações populares do Brasil
Muitas práticas do manejo culinário são de origem fundamentalmente africanas ou indígenas. O pilão, por exemplo, que se consolidou no imaginário em formato de tronco, veio de técnicas indígenas de maceração de temperos. No entanto, o utensílio também estava presente na cultura africana e era feito de pedras abauladas.
A presença indígena também aparece nos nomes dos alimentos, como a canjica (do guarani: kangy = mole + kaa = planta), o curau (kure = ralado + u = comida) e a pamonha (pomonga = pegajoso). No Nordeste, a influência africana transformou o nome da canjica em munguzá, termo de língua banto.
Os preparos também têm semelhanças: o quentão lembra o cauim indígena, feito com mandioca ou milho fermentado e servido morno, como ocorre ainda hoje entre os Guarani Mbyá. Em Minas Gerais, são acrescentados alimentos como o pé de moleque e a paçoca de amendoim, alimento indígena. No Sul, é agregado o pinhão, alimento básico do povo Kaingang e de outros povos que viviam da coleta desse fruto no Sudeste, como os Guaianá e Guarulho, hoje extintos.
Se no calendário de junho o milho predomina, no Carnaval é a feijoada que ocupa o centro da mesa. Durante muito tempo, difundiu-se a ideia de que o prato nasceu nas senzalas, a partir de sobras. Pesquisadores, no entanto, lembram que os africanos já tinham a tradição de cozidos de feijão — tanto que o feijão-fradinho, presente em acarajés e abaras, veio da África. Essa lenda contribui para a construção da ideia de democracia racial, de que os negros africanos não teriam sido excluídos da cultura luso brasileira. Para Viviane Aguiar, doutora em história social e autora do livro Cozinha caipira, cozinha esquecida, ignorar essa origem é negar a presença africana na formação da cozinha brasileira.
Os povos indígenas também cultivavam variedades próprias de feijão, muitas vezes combinadas com milho e abóbora no sistema agrícola, conhecido como “três marias”. Hoje, a feijoada resiste como prato coletivo, servido em rodas de samba e desfiles de Carnaval.
No famoso almoço do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, os principais pratos são o pato no tucupi (feito do suco extraído da mandioca antes da preparação da farinha seca) e a maniçoba (cujo ingrediente principal é a maniva, a folha da mandioca brava). Os protagonistas do banquete, uma homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, também têm origem indígena e africana. O historiador amazônida Raymundo Maués, no texto Almoço do Círio, proclama que “Não há religião sem festa, nem festa sem comida de festa”. Em todos os rituais festivos religiosos, como cultos, cerimônias, missas, festas de terreiro e procissões, há algum tipo de partilha – do preparo ao oferecimento do alimento.
O caruru – prato típico da culinária afro-brasileira, feito à base de quiabo, camarão seco, leite de coco e dendê – está presente em algumas festas de santo como Cosme e Damião (Ibejis, nas culturas iorubás) e Santa Bárbara (sincretizada com Iansã). Na preparação do “caruru dos meninos”, as mulheres se reúnem em torno do fogo e das panelas e partilham e ampliam seu contato com o sagrado. Na festa de Santa Bárbara, que acontece no Largo do Pelourinho no dia 4 de dezembro, o caruru é ofertado como obrigação religiosa.
Durante as celebrações e festividades, a comida adquire características culturais diferenciadas, que são reveladas desde a preparação até o servir. Para o antropólogo da alimentação Raul Lody, “quase o mesmo que festa, caruru é um bom motivo para reunir amigos, devotos e familiares e, juntos, celebrar datas pessoais ou coletivas e partilhadas, como aquelas que evocam santos populares”.
No dia 2 de fevereiro, Dia de Iemanjá, uma das maiores celebrações das religiões de matriz africana no Brasil, os fiéis costumam ofertar comidas ancestrais, como manjar, peixe no milho branco, munguzá, o arroz branco e a canjica.
Pesquisadores apontam que reconhecer essas origens afro-indígenas é fundamental para compreender a cultura alimentar brasileira — e também para questionar apagamentos históricos que ainda persistem. O reconhecimento dessas matrizes é essencial não só para valorizar os povos que construíram o Brasil, mas também para entender por que, ainda hoje, a mesa é espaço de disputa e identidade.
Origens alimentares dos festejos juninos
As festas juninas no Brasil têm raízes portuguesas das comemorações dos santos do mês de junho: Santo Antônio, São João e São Pedro. Na Europa, essas festas tinham ligação com a semeadura e a colheita. Já entre povos indígenas e africanos havia rituais em torno da agricultura, como indicou o historiador e antropólogo Benedito Prezia, em As raízes indígenas das festas juninas.
“Falamos muito de sincretismo no Brasil, dessa confluência de culturas, mas acabamos deixando de lado que existiram participações e atuações muito importantes de cada uma dessas culturas. Esse discurso serve para homogeneizar a cultura e tratar como se fosse um sincretismo harmonioso, tendo a festa como uma representação dessa harmonia das culturas. Mas sabemos que não teve nada de harmônico nessas apropriações e no seu estabelecimento. Na verdade, elas são um emaranhado de origens”, explica Viviane.
O milho, central na dieta de diversos povos indígenas, tornou-se símbolo das comemorações. Entre os tupis, representava o início de um novo tempo. Desses encontros culturais nasceram quitutes como pamonha, curau, buré e paçoca, alimentos que já circulavam nas aldeias guarani antes de ganharem o açúcar europeu e, mais tarde, a industrialização.
Viviane Aguiar enfatiza que desde meados de 1600, há relatos de diversos termos indígenas nas culinárias típicas das festas juninas. No vocabulário do jesuíta peruano Antônio Ruiz de Montoya, que se dedicou às missões entre as populações Guaranis, aparecem diversos termos da língua Guarani.
“A paçoca já está lá como uma técnica de misturar a farinha de milho, que era a farinha tradicional dessa população, com carne. Então, a primeira paçoca era a de carne. O amendoim, que também é nativo, era usado e criava um sabor entre o adocicado e o salgado”, completa Viviane.
Esses sabores não faziam parte do paladar europeu, que adicionaram açúcar às receitas. Com o tempo, esses alimentos foram se industrializando e perdendo as técnicas de preparo de origem.
Comer: Patrimônio histórico imaterial
São considerados bens patrimoniais imateriais pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) manifestações culturais como rituais, técnicas produtivas, cantos, contos, hábitos, costumes e crenças, festas populares e alimentos. Os atos cotidianos, os pequenos momentos de celebração e lazer e o que se apresenta à mesa não são meros detalhes da vida social — eles revelam as memórias de uma comunidade. Nessas celebrações, o modo de pensar, agir e sentir de um povo se manifesta, enquanto as pessoas reforçam vínculos, compartilham experiências e constroem coletivamente sua identidade. Esses fragmentos da história mantêm o passado vivo no presente e projetam caminhos para o futuro, ao serem revividos em monumentos, festas e outras manifestações culturais.
“Como política pública e como sociedade civil, a gente precisa proteger e preservar essas culturas. Colocar o acarajé como patrimônio, por exemplo, é uma forma de proteger a vida humana: das mulheres que produzem este alimento. Tornar patrimônio é também uma forma de o Estado proteger e reconhecer essas mulheres, que sofriam de racismo religioso. Deveríamos incluir outras comidas e cultivos – como é o caso dos apanhadores da semente do açaí na Amazônia e das quebradeiras de coco babaçu no Maranhão. Precisamos ampliar a proteção do Estado em relação a essas pessoas e em relação àquilo que elas produzem para se manterem vivas – como identidade e como memória das suas próprias existências”, pontua a professora Daniela Frozi.
Sob esse olhar, é indispensável reconhecer a importância da transmissão dos saberes culinários ancestrais para as crianças, como é feito pelo Instituto Comida e Cultura, principalmente em escolas públicas. “Resgatamos essas receitas, saberes e sabores. Nossa formação “Cozinhas e Infâncias” fala sobre a alimentação desde os povos originários, passando pela invasão dos portugueses, e depois, a chegada dos povos da África. Não deixando de falar de todas as questões ligadas aos sistemas alimentares”, explica Ariela Doctors, coordenadora geral do instituto.
Larah Camargo é graduada em midialogia e especialista em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp