A popularização dos hormônios: verdades científicas ou metáforas para falar de gênero?

Por Fabíola Rohden

“São os hormônios!” “A culpa é dos hormônios!” “Os hormônios comandam tudo!”

Certamente, estamos muito acostumados/as a ler, a ouvir e mesmo a pronunciar frases como essas. E quando o fazemos, muito dificilmente está em cena um profundo conhecimento de endocrinologia ou mesmo de biologia em geral. Não são explicações pormenorizadas, específicas, precisas que vêm à tona na maioria das vezes nas quais essas afirmações categóricas são acionadas. Mas se não se trata disso, então, o que está por trás desse tipo de enunciado? Que mecanismo é esse que nos faz lançar mão de explicações que não necessariamente dominamos para dar conta de fenômenos tão variados? A ideia geral de que os hormônios explicariam quase qualquer coisa não se aplica apenas ao funcionamento do corpo humano, mas, sobretudo, tem sido associada de forma recorrente a comportamentos, preferências, emoções etc. E tem se tornado quase onipresente nas apreciações relativas a supostas diferenças existentes entre os gêneros (Rohden e Alzuguir, 2016).

Muitas vezes esse tipo de discurso taxativo ou explicações rápidas que tendem a encerrar os debates, como se nada mais houvesse a discutir, têm origem em certo tipo de popularização da ciência. Contudo, mais do que torná-la popular, o que acontece são muitas retraduções afinadas com determinadas normas e valores sociais em voga. Nessa linha, podemos identificar muitos trabalhos que, inclusive, tentam se legitimar pela referência à ciência e que, por exemplo, exacerbam o papel dos hormônios, como no livro bastante conhecido Como as mulheres pensam:

“Os hormônios podem determinar o que o cérebro se interessa em fazer. Eles ajudam a orientar os comportamentos agressivos, sociais, sexuais e de cuidado com o outro. Eles podem afetar nossa disposição para conversar, flertar, promover ou ir a festas, escrever bilhetes de agradecimento, planejar diversões para as crianças, dar carinho, ter preocupações com a beleza, perceber se estamos magoando os outros ou se estamos sendo competitivos e tomar a iniciativa para o sexo”. (Brizendine, 2006:XVII).

Não é difícil identificar, nesse trecho ilustrativo, que se atribui aos hormônios a responsabilidade por governar os mais variados comportamentos que, segundo a autora do livro, serão sempre e irremediavelmente marcados pelas diferenças entre os sexos. O que interessa aqui neste artigo é discutir brevemente a natureza desse tipo de discurso e, para tanto, é preciso fazer referência ao que se entende por sexo e gênero.

O termo gênero é usado na antropologia para indicar como modelos do que seria idealmente feminino ou masculino são construções culturais que, portanto, variam em cada contexto social. Essas definições são produzidas não apenas nos discursos, mas também nos próprios corpos das pessoas ou naquilo que se percebe, como se compreende, as diferenças percebidas entre esses corpos. Nesse sentido, seria, portanto, impossível falar de uma separação entre gênero como meramente social e sexo como puramente biológico, já que nossa forma de entender o que seria biológico depende necessariamente de nossas concepções de gênero. Na verdade, o que é muito importante de levar em consideração é que essas concepções estão ancoradas em determinadas normas sociais tradicionais e, por sua vez, também as reforçam. São normas que vêm sendo edificadas ao longo do tempo e em sintonia com outras articulações políticas.

Ou seja, designar o que é feminino ou masculino, desta forma dicotômica e binária, está associado e tem consequências relacionadas a muitas outras disputas de poder ou relações de força que têm a ver, por exemplo, com hierarquias relativas a raça/etnia e classe social. Historicamente, não é difícil percebermos como a discriminação com o feminino e com as mulheres justificou sua falta de acesso à educação e à política. Nos tempos atuais, continuamos a assistir à produção desse tipo de preconceito, além de outros que emergem cada vez mais associados ao gênero e também à sexualidade. No entanto, se por um lado nossa sociedade tem promovido padrões dicotômicos, restritos ao par masculino/feminino, por outro, percebemos a existência de muitas outras maneiras de lidar com o gênero, como atestam todos os dias as pessoas trans que enfrentam enormes dificuldades de viver assumindo uma condição de não correspondência estável ou definitiva em relação a um dos dois polos. Outro aspecto importante é que a norma de gênero tradicional prevê uma correlação entre o que seria o sexo biológico, o gênero e a orientação sexual enquanto, na prática, o que temos é uma multiplicidade de associações possíveis e que, inclusive, variam ao longo da vida.

O que podemos perceber na realidade é uma tensão constante entre a projeção de certos ideais relativos a gênero, especialmente em determinadas esferas como o campo religioso, o jurídico e mesmo o científico, e a imensa variedade de existências e comportamentos concretos que desafiam a estabilidade dessas normas. No que se refere às apropriações do conhecimento científico, caso sobre o qual me ocupo aqui, é muito importante refletirmos sobre alguns pontos. O primeiro deles é a interação constante entre a ciência e a sociedade. Ou seja, não há produção de conhecimento isolada de um determinado contexto social e político. Mas pode haver, sim, a consideração séria, ética e reflexiva acerca desse contexto e seus possíveis constrangimentos por parte de quem faz ciência, com a consciência de que este conhecimento estará afetando a sociedade. O segundo diz respeito às muitas formas pelas quais o conhecimento científico é produzido e absorvido em enquadramentos variados. Podemos imaginar que a produção publicada em revistas especializadas difere bastante daquela que é objeto de divulgação científica. Em um caso e em outro, os objetivos, a linguagem, a relevância dos aspectos teóricos e metodológicos podem ser bastante distintos. E quando se trata de veículos não especializados de grande circulação, como jornais, revistas, programas de televisão ou mesmo internet, as apropriações vão se tornando cada vez mais diversificadas. Contudo, é possível notar algumas pistas que podem nos dar indicações sobre esse processo de produção de “verdades” generalizantes popularmente disseminadas em frases como “a culpa é dos hormônios”.

Na produção científica atual, seria muito difícil encontrar pontos de completa concordância se considerarmos a multiplicidade de áreas e abordagens que poderíamos consultar. Entretanto, é muito provável que cientistas de distintas áreas concordassem com a afirmação de que a produção do conhecimento tem, como ponto de partida e como motor de impulso constante, a dúvida. É porque se duvida de alguma coisa, e não porque se tem certeza acerca dela, que se parte para uma investigação. E a produção de conhecimento é permanentemente cercada por processos que deveriam envolver esse caráter questionador e instigante. Contudo, se estamos lidando com situações nas quais o/a cientista é responsável por intervenções diretas, como quando é também um/a médico/a por exemplo, existe um desafio que é a difícil tarefa de combinar as incertezas inexoráveis do processo científico às necessidades de produção de alguma certeza contingencial, que oriente uma ação direta de aconselhamento ou tratamento clínico. Este exemplo é citado aqui para chamar a atenção sobre como, nas situações de interface mais direta com a sociedade, ou em contextos nos quais intervenções imediatas são esperadas ou exigidas, a dúvida vai perdendo seu espaço. Da mesma forma, parece que quando o conhecimento sobre hormônios é popularizado, vai perdendo a complexidade que deveria ter inicialmente para ir se cristalizando na forma de algumas poucas verdades genéricas e absolutas. Nesse ponto, estamos muito mais longe das dúvidas e mais perto dos dogmas.

Quando ouvimos repetidas vezes que “a culpa é dos hormônios” então, provavelmente, estamos bem distantes das dúvidas que deveriam povoar o conhecimento de ponta, e muito mais perto das tentativas de reafirmação de determinadas normas sociais. Quando lemos, por exemplo, que homens e mulheres são absolutamente distintos em função de sua constituição hormonal e que isso implica em comportamentos diferenciados, muito provavelmente estamos nos deparando com um enunciado que diz menos acerca do atual estado de debate científico sobre o tema e muito mais a respeito das convicções que se está se reproduzindo.

Nessa direção, os hormônios parecem funcionar como mensageiros que, muito além de substâncias químicas, transmitem informações reveladoras sobre nossa sociedade, no que se refere a gênero, por exemplo (Oudshoorn, 1994; Roberts, 2007). Podemos percebê-los como metáforas que nos ajudam a entender como certos valores vão sendo redefinidos ou reafirmados. Mais precisamente, o que estou argumentando é que necessitamos prestar mais atenção aos significados subjacentes às recorrentes referências à entidade “hormônio” como explicação ou evocação de tantas diferenças. Se consideramos a contextualização desse tipo de explicação hormonal, no contexto de uma referência histórica mais ampliada, percebemos que faz parte de um processo mais geral.

Como muitos estudos têm mostrado, é a partir do final do século XVIII e início do século XIX que o conhecimento científico, especialmente médico, vai se dedicar com afinco a definir as diferenças entre homens e mulheres concebendo-as como radicalmente inscritas na natureza que, por sua vez, seria concebida como imutável. Essas diferenças estariam presentes no desenho anatômico e na fisiologia, e se espalhariam até o comportamento e mesmo atingiriam emoções e intelecto. Por meio da justificativa de que homens teriam cérebros maiores, por exemplo, fundamentava-se a inadequação dos estudos para as mulheres. Percebe-se, assim, a promoção de uma justificativa biológica para os papéis sociais distintos a serem exercidos por homens e mulheres em virtude de uma organização corporal diferenciada (Laqueur, 2001; Rohden, 2009).

Em torno da passagem para o século XX, é possível notar que não se trata mais apenas de uma referência anatomofisiológica, porém de uma busca por explicações de ordem bioquímica, para fundamentar as diferenças de gênero. No caso das mulheres, todo o comportamento feminino passa a ser descrito em função dos ciclos e substâncias governados pelos órgãos reprodutivos, especialmente os ovários.  A mulher passa a ser “explicada” por fases como puberdade, gravidez, amamentação e menopausa e as substâncias produzidas pelos ovários passam a ditar a diferença em relação ao homem e às secreções dos testículos. Pode-se dizer que entra em curso uma nova precisão a respeito das diferenças que se pretendia conceber como naturais (Rohden, 2008).

Até a década de 1920, predominou a noção de que os hormônios produzidos pelos ovários e pelos testículos seriam específicos, exclusivos de cada sexo e dotados de um papel único na determinação sexual. A presença de hormônios femininos só seria possível nas mulheres e determinaria as suas características sexuais. Da mesma forma, os hormônios masculinos seriam exclusivos dos homens e determinariam as características masculinas. A partir dessa época, as experiências realizadas com animais passaram a mostrar a presença dos dois tipos de hormônios em machos e fêmeas. Embora se observassem nítidas “evidências” científicas, não houve uma transformação imediata no campo. Os novos dados foram recebidos com muita resistência e incômodo, e somente uma década depois foi possível aceitar uma nova relação entre hormônios e sexo. Na década seguinte ainda se descrevia com espanto as experiências nas quais se encontrava a presença de hormônios “femininos” em machos e, principalmente, com menos importância, se descrevia a presença de hormônios “masculinos” em fêmeas. Aos poucos, passa-se a demonstrar uma diferença de ordem quantitativa na presença dos hormônios típicos de machos e fêmeas. Contudo, apesar de os cientistas reconhecerem a não exclusividade na origem e função dos hormônios, na clínica os médicos, ginecologistas entre outros, continuaram promovendo um modelo do tipo dualista (Oudshoorn, 1994; Rohden, 2008).

O que percebemos, nessa referência histórica, é a força normativa que as concepções tradicionais de gênero tiveram no processo de definição dos hormônios sexuais. Ao longo do século passado e nas primeiras décadas do século XXI, certamente temos assistido a grandes transformações na produção do conhecimento acerca dos chamados hormônios sexuais. Mas é curioso que, apesar da comprovação da existência de diferentes tipos de hormônios tanto em corpos descritos como masculinos como nos apresentados como femininos, continua sendo muito comum a premissa da exclusividade. E, além disso, prossegue a noção de que hormônios de tipo masculino ou feminino impingiriam comportamentos diferenciados.

Essas observações nos levam a considerar o quão insistentemente as diferenças de gênero são traduzidas em termos de diferenças sexuais, o que significaria, neste caso, uma tentativa de inscrevê-las na ordem do natural. Ao que parece, trata-se de um processo recorrente de produção de justificativas para diferenças e desigualdades sociais e políticas em termos de uma responsabilização da natureza ou da biologia. É como se aquilo que estivesse previsto nesse domínio “superior” ou “primário” fosse mais forte do que as imensas capacidades de transformação insistentemente demonstradas pelas pessoas em suas vidas concretas. E como se a natureza pudesse ser submetida a essa circunscrição tão reducionista, isolada e estática, sem lugar para plasticidade e transformação que podemos perceber quando nos dispomos a adotar um olhar mais aberto à diversidade de todas as formas de vida.

Fabíola Rohden é professora adjunta do Departamento de Antropologia e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, além de pesquisadora associada do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.

Referências:

Brizendine, L. Como as mulheres pensam. Rio de Janeiro, Editora Campus Elsevier, 2006.

Laqueur, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

Oudshoorn, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routledge, 1994.

Roberts, C. Messengers of sex: hormones, biomedicine and feminism. New York: Cambridge University Press, 2007.

Rohden, F. “O império dos hormônios e a constituição da diferença entre os sexos”. História, ciências, saúde – Manguinhos. 2008. 15: 133-152.

Rohden, F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro, Fiocruz, Coleção Antropologia e Saúde. 2ª.ed, 2009.

Rohden, F.; Alzuguir, F. V. “Desvendando sexos, produzindo gêneros e medicamentos: a promoção das descobertas científicas em torno da ocitocina”. Cadernos Pagu. 2016, 48:e164802.