Anderson Miranda: ‘Direitos para a população em situação de rua dependem da adesão de estados e municípios’

Por Eduarda A. Moreira

Anderson Miranda viveu durante 38 anos em situação de rua e hoje atua como Coordenador Geral do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP-Rua), órgão ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

Por questões de violência familiar, Anderson foi encaminhado ao orfanato com apenas 3 meses de vida. Aos 12 anos, discordando das regras da instituição, decidiu viver pelas ruas de São Paulo. Ainda jovem, acolhido por freiras, passou a ajudar na distribuição de sopa para outros moradores de rua. Viveu como andarilho entre São Paulo, Bahia, Ceará e Minas Gerais até retornar definitivamente a São Paulo, onde trabalhou na Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis (Coopamare) e se formou Chef de Cozinha pelo Senac. Ainda assim, não conseguiu um emprego formal porque não possuía residência fixa.

Organizou, junto com o Padre Júlio Lancelotti, um polo da população em situação de rua na capital paulista e a fundação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), que completa 20 anos em 2024.

Qual o perfil geral da população em situação de rua do Brasil?

Nas décadas de 1980 e 1990 a população de rua era oriunda do Norte e Nordeste. No geral, eram trabalhadores rurais que se deslocavam por causa da seca e da fome para trabalhar com construção no Sul e Sudeste.

Hoje essa população é composta por pessoas que perderam o emprego, são famílias que não conseguem pagar o aluguel e passam a viver nas ruas da própria cidade. Os principais motivos são o desemprego, o rompimento familiar e a falta de políticas públicas.

Essa mudança de perfil ficou mais evidente depois da pandemia. Com a necessidade de isolamento social, redução de salários, aumento de demissões, sem vacina, cuidados ou apoio do governo, quem estava dentro da casa passando fome foi para a rua. As pessoas que não tinham o que comer dentro de casa perceberam que na rua teriam mais condições de sobrevivência.

Outra diferença que observo é que antigamente a população em situação de rua criava uma comunidade com estrutura, organização. Construíamos malocas, cozinhas comunitárias – a gente se organizava em grupo. Hoje não, é individual. Essas pessoas têm acesso à alimentação nos restaurantes populares, por exemplo, além de outros serviços que o governo entrega, com uma estrutura muito maior.

A Política Nacional para População em Situação de Rua é de 2009. Qual sua importância para mudanças na vida dessa população?

O primeiro ponto é que nos desinvisibilizou. A gente era invisível tanto para o governo quanto para a sociedade. Ela deu estrutura para que o governo pudesse dialogar com a sociedade, com os estados e municípios, e com o poder legislativo. Foi possível fazer com que o IBGE considerasse as moradias improvisadas, como barracas e malocas de madeira, para que as pessoas fossem recenseadas. Depois de quase 20 anos de discussão, o IBGE está muito mais sensível a essa pauta, e isso é uma conquista.

Mesmo que a implementação de ações seja morosa, e que ainda seja necessário um olhar de descriminalização e sensibilidade de diversos setores, esse decreto de 2009 foi fundamental. Ele viabiliza que o governo atenda, cada vez mais, às necessidades da população em situação de rua que, sabendo dos seus direitos, está mais organizada, exigente, cobrando mais por políticas públicas, dialogando e debatendo.

Antigamente não tinha lugar nem para tomar banho. Hoje temos os Centros POP (Centros de referência especializado para população em situação de rua), serviços de acolhimento para família, idosos, grupos LGBTQIA+, e crianças e adolescentes. Com o Consultório na Rua e a Farmácia Popular, a população em situação de rua consegue um tratamento de saúde. Temos serviços e políticas com orçamento específico para essa população, criados a partir dos comitês municipais, estaduais e nacional, mas é claro que ainda não alcançamos a estrutura que a rua almeja e precisa. Há pontos a melhorar. A educação, por exemplo, nunca olhou para a população de rua. Sem comprovante de endereço não estuda numa escola pública. Acontece a mesma coisa com o trabalho: se não tem comprovante de endereço, não arruma emprego.

Quais são os principais desafios na implementação de políticas voltadas para a população de rua?

Falta de compromisso e de orçamento. Além disso, muitos municípios ainda têm prefeituras higienistas. O governo federal tem obrigatoriedade de repassar o recurso, mas quem executa a Política Nacional para População em Situação de Rua são os estados e municípios. Muitas vezes, quando tentamos fazer essas parcerias, o processo é oneroso e lento. Precisamos ser mais rápidos, práticos e eficientes nessas ações, porque quando uma pessoa “cai” na rua e não conseguimos retirá-la rapidamente, encaminhando para um serviço de acolhimento, com moradia e trabalho dignos, essa pessoa fica na rua e nós perdemos. Precisamos romper com essa morosidade. Cair na rua é muito mais fácil do que sair dela, porque envolve saúde, trabalho, educação, cultural. Muitas vezes, também, é preciso resgatar o vínculo familiar e fornecer apoio psicológico e social.

Não adianta tirar uma pessoa ou uma família da rua para viver em uma casa vazia, sem geladeira, fogão, cama. O município paga o aluguel e o Governo Federal fornece a estrutura básica, com insumos para até seis meses de alimentação, porque sem garantia de alimentação ou um restaurante popular próximo, a pessoa vai voltar para a rua.

Em muitas situações o Estado se omite e, como consequência, há aumento da população em situação de rua. Um exemplo disso são os egressos do sistema prisional. O Estado prende mais do que cuida, e quando a pessoa tem o direito à soltura, ela vai para a rua, porque depois de ficar presa por 10 ou 15 anos, muitas vezes, perde o vínculo familiar – isso ocorre principalmente com as mulheres.

E a Cracolândia?

Outra situação que merece atenção são os espaços como a Cracolândia, em que existe criminalização sem a implantação de políticas de saúde, moradia, trabalho. São grupos que não têm estrutura, se concentram em uma determinada região e começam a crescer descontroladamente, até que vêm a guarda municipal e a polícia para exterminá-las.

Hoje é mais fácil criar uma comunidade terapêutica do que uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ou políticas de redução de danos. É mais fácil internar um usuário de drogas em uma instituição – religiosa, na maioria das vezes – durante meses, dizendo que fornece cuidados e alimentação, mas submetendo os internos à trabalho forçado. Quando a pessoa sai desse tipo de instituição ela volta para rua, porque não houve diálogo, não houve tratamento de saúde, nem busca por moradia ou trabalho.

É necessário ter um olhar diferenciado para esse grupo. Não é um olhar de caridade, é um olhar de estruturação. Você não tira o ser humano da rua se não tiver política pública.

Quais são as iniciativas mais urgentes que o governo está colocando em prática para melhorar a vida das pessoas em situação de rua?

A principal iniciativa necessária nesse momento é a adesão dos estados e municípios à Política Nacional para População em Situação de Rua. Muitas vezes eles reivindicam contrapartidas, e o que o Governo Federal tem a oferecer são os serviços previstos no decreto, como a implantação de serviços de acolhimento, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).

Há baixa adesão de cidades e estados porque muitos negam a existência dessas pessoas em seus territórios, e argumentam que não precisam destes serviços. Os estados do Sul são os maiores problemas, atualmente: eles invisibilizam e criminalizam a população em situação de rua.

É papel do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania estar atento a isso, fiscalizar e inibir violações de direitos, e dialogar com os Ministérios da Assistência Social, do Trabalho, da Educação, da Saúde, fazendo essa rede de fato acontecer. Aqui entra também o CIAMP-Rua, com as funções de acompanhar as ações, fazer parcerias, negociar adesões, verificar se o decreto está sendo executado de fato, e agir onde não estiver.

Eduarda A. Moreira é doutora em ciências (USP) e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp