“Boa noite, Cinderela”: quando o conto de fadas vira pesadelo

Por Isadora Locilento Denkena

“Boa noite, Cinderela” é a expressão utilizada no Brasil para caracterizar os crimes facilitados por drogas (em inglês, Drug-Facilitated Crime, DFC), uma forma de violência que combina estratégia social, manipulação psicológica e farmacologia – uma violação física e mental. Esse termo refere-se às práticas criminosas cometidas por meio do uso de substâncias psicoativas que alteram a percepção da vítima, seja ela homem ou mulher. Entre os principais tipos de DFC, têm-se os crimes sexuais (estupro), maus-tratos contra vulneráveis (idosos, crianças ou indivíduos portadores de necessidades especiais) ou crimes contra o patrimônio (extorsão e roubo).

O cenário é propício e a dinâmica é sigilosa: em festas, bares, encontros casuais ou até dentro de casa, a vítima tem sua bebida adulterada com substâncias psicoativas, geralmente sem perceber. Pouco tempo depois, começa a sentir sonolência, confusão mental, desorientação, sendo o momento ideal para o agressor cometar o crime. Entretanto, o golpe não se restringe ao uso involuntário da substância; há casos em que a substância é ingerida voluntariamente, em contextos recreativos ou não, em que o agressor pode aproveitar do estado de vulnerabilidade induzido para cometer o crime, transformando o consentimento inicial em ferramenta de manipulação e violência.

O elemento mais cruel desse tipo de golpe é a perda de memória. Muitas vítimas não conseguem relatar o que houve, ou sequer sabem que foram alvo de um crime. As substâncias usadas são conhecidas como drogas de estupro (em inglês, date rape drugs ou rape drugs), sendo na grande maioria utilizados fármacos que atuam como potentes depressores do sistema nervoso central, frequentemente de ação rápida, ou seja, produzem efeitos em um curto intervalo de tempo, gerando efeitos similares a uma intoxicação aguda por etanol ou sensação de anestesia geral, tais como sedação, relaxamento muscular, confusão, tonturas, problemas de julgamento, amnésia anterógrada, perda de consciência, náuseas, hipotensão e bradicardia. Em casos de DFC, outras substâncias como cocaína, Δ9-tetrahidrocanabinol (Δ9-THC), anfetamina, metanfetamina, MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina) e MDA (3,4-metilenodioxianfetamina) também podem ser utilizadas, uma vez que podem provocar sintomas como diminuição da inibição e/ou capacidade de raciocínio da vítima. Estudos revelam que a cocaína e o THC-COOH são as drogas ilícitas mais prevalentes nesses casos.

A mídia costuma destacar o ácido gama-hidroxibutírico (GHB) e o flunitrazepam como as drogas mais associadas ao golpe. Entretanto, a ciência mostra que a lista de substâncias envolvidas é muito maior e mais complexa. Diversos medicamentos de venda livre (de fácil acesso) ou sob prescrição médica possuem as características supracitadas. Benzodiazepínicos, remédios para dormir como zolpidem e zopiclona, anestésicos, opioides, antidepressivos, relaxantes musculares, anti-histamínicos, antipsicóticos e neurolépticos são exemplos de classes de fármacos comumente utilizados como DFC.  Quando combinadas com álcool, essas drogas potencializam o efeito depressor do sistema nervoso central, tornando a vítima ainda mais vulnerável.

No Brasil, os dados sobre esse tipo de crime ainda são escassos. Fatores fisiológicos e psicológicos contribuem decisivamente para a falta de informações oficiais, uma vez essas substâncias podem causar amnésia nas vítimas, além do fato de que muitas vezes sentem vergonha ou demoram para buscar atendimento médico ou forense especializado. Esse atraso faz com que o tempo entre o crime e a coleta das amostras para análise toxicológica seja longo para identificar as substâncias – e muitas são rapidamente eliminadas pelo organismo, e poucos laboratórios contam com métodos analíticos específicos e sensíveis para detectá-las. Além disso, a equipe de saúde do serviço de emergência ou forense pode não ter a ciência da possibilidade de que uma DFC possa ter ocorrido. A coleta de amostras para exames toxicológicos nos casos de DFC é extremamente importante, uma vez que as evidências laboratoriais que comprovam o crime trazem maior embasamento técnico para o processo de investigação e acarretam maiores penas ao agressor (por ser um agravante dos crimes).

Mais de 50 medicamentos são conhecidos pelo uso em DFC e, a cada ano a lista pode aumentar. Drogas ilícitas e lícitas, além de novos compostos que são produzidos e comercializados, geram desafios para os laboratórios de toxicologia e, apesar dos avanços em métodos analíticos, como a espectrometria de massas de alta resolução, ainda há um longo caminho para que a toxicologia forense seja capaz de acompanhar a complexidade da questão. Com isso, pesquisadores do Laboratório de Toxicologia Analítica do CIATox de Campinas atuam na pesquisa e no desenvolvimento de métodos para a identificação das DFC que sejam abrangentes e sensíveis, contribuindo com os laboratórios que realizam essas análises e dando a oportunidade de realizar levantamentos epidemiológicos, com informações sobre quais as substâncias mais comumente relacionadas com estes crimes no país, trazendo respaldo não só epidemiológico e estatístico, mas também auxiliando laboratórios de toxicologia clínica e forense a organizar seus serviços analíticos para essa demanda.

Com esse objetivo, em 2022 o Prof. Dr. José Luiz da Costa desenvolveu uma colaboração científica entre a Faculdades de Ciências Farmacêuticas e Ciências Médicas da Unicamp, o Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti (Caism), e o programa Bem-Me-Quer (Instituto Médico Legal/Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo) para a realização do projeto “Violência facilitada por drogas: desenvolvimento de métodos analíticos para a identificação de drogas facilitadoras de crime sexual e monitoramento em grandes cidades de São Paulo”. O objetivo é identificar quais são as substâncias psicoativas mais prevalentes na agressão sexual facilitada por drogas (em inglês, drug-facilitated sexual assault, DFSA), ocorridos São Paulo e Campinas. Este projeto contribuirá para suprir a carência por dados epidemiológicos analiticamente embasados sobre DFSA em duas grandes cidades brasileiras e terá também um aspecto educativo importante, pois permitirá a divulgação de alertas para a população. Irá também auxiliar os centros de toxicologia clínica e laboratórios de toxicologia forense, no aprimoramento diagnóstico clínico e laboratorial das intoxicações causadas por essas substâncias, através do direcionamento para aquelas mais prevalentes, e que consequentemente precisam fazer parte dos métodos de identificação.

Em 2024, defendi a dissertação de mestrado que foi realizada como parte desse projeto, em que desenvolvi um método analítico para a quantificação de 57 substâncias que são utilizadas no contexto de DFSA em amostras de urina. Foram analisadas 42 amostras de vítimas de violência sexual com suspeita terem sido facilitadas por droga. Como resultado, foi desenvolvido um método sensível para quantificar as substâncias psicoativas coletadas em até 120 horas após a agressão sexual. Pelo menos uma substância foi encontrada em 26 delas (61,9%), sendo o etanol a predominante, detectado em 11 (42,3%). Em seguida, em sete amostras (26,9%) estava a 11-nor-delta9-tetrahidrocanabinol-9-carboxilico (THC-COOH), um produto de biotransformação que indica o uso da Cannabis. Cocaína apareceu em cinco amostras (19,2%) e, por fim, também foram detectados benzodiazepínicos, antidepressivos, relaxantes musculares e hipnóticos. 

Entre o sono e o silêncio, entre o copo e o crime, existe um campo onde ciência, toxicologia, justiça e educação precisam caminhar juntas. 

Isadora Locilento Denkena é doutoranda em farmacologia e pesquisadora do Laboratório de Toxicologia Analítica da Unicamp

Referências:

Denkena, Isadora Locilento. Desenvolvimento e validação de método analítico para quantificação de drogas facilitadoras de crime sexual em amostras de urina. 2024. 1 Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/19372. Acesso em: 11 jun. 2025.

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