Brasil não vai ao cinema e desaprende a falar de si

Por Matheus Pichonelli

Seis dias antes da estreia de “Três Verões”, prevista para 19 de março de 2020 – por coincidência o penúltimo dia do verão brasileiro – a distribuidora Vitrine Filmes enviou um comunicado aos jornalistas informando que, diante do avanço do coronavírus e das recomendações das autoridades para evitar aglomerações não havia outra opção a não ser adiar o lançamento do filme de Sandra Kogut.

Quem já havia assistido ao longa na cabine de imprensa teve de aguardar para publicar qualquer análise sobre como a história de uma família rica impactada pela Lava Jato dialogava com o desfecho melancólico de uma década de expectativas não realizadas – ou realizadas pela metade – no Brasil.

No início daquele mês, a atriz Regina Duarte tomava posse como secretária especial da Cultura, que sob o governo de Jair Bolsonaro perdeu o status de ministério.

Na cerimônia, a ex-atriz global, já chamada de namoradinha do Brasil, afirmou que seu propósito era de “pacificação e diálogo permanente com o setor cultural, com estados e municípios, com o Parlamento e com os órgãos de controle”. O discurso virou poeira quando a mesma secretária endossou, em suas redes sociais, as manifestações previstas para o dia 15 daquele mês, com pedidos de fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

A cerimônia foi marcada por uma imagem simbólica. Com um vestuário padronizado, em vestidos sóbrios de bolinhas estampadas, Regina Duarte, que na TV interpretou mulheres fortes como a protagonista do seriado “Malu Mulher” (1979) e a viúva Porcina, da novela “Roque Santeiro” (1985), figurava agora alinhada com a primeira-dama Michelle Bolsonaro e a ministra de Mulheres, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, defensora da abstinência sexual como resposta à gravidez na adolescência e conhecida por proclamar uma nova era no Brasil onde menino veste azul e menina veste rosa.

Ao lado delas, a atriz declarou que “uma cultura forte consolida a identidade de uma nação”. 

Regina Duarte entraria para a história – e na corrente de memes nas redes sociais – ao fazer uma lista do que para ela seria cultura e incluir nela o “pum do palhaço”. Caiu pouco depois de minimizar, em uma entrevista à CNN Brasil, os mortos da pandemia e da ditadura militar. 

Pois era neste contexto que outra Regina, de sobrenome Casé, também atriz global, daria rosto a uma espécie de arquétipo do brasileiro comum no filme de Kogut. “Três verões” acompanha o ocaso de uma família rica, herdeira da casa grande, em três momentos distintos.

O filme começa com uma festa sem hora para acabar à beira da piscina. No meio do frisson, é possível capturar uma tensão toda vez que o dono da casa, interpretado por Otávio Müller, corre para os cantos e atende o celular.

No verão seguinte, a festa dá lugar ao silêncio, mas as hierarquias, embora abaladas por uma operação policial de combate à corrupção, permanecem mais ou menos onde estavam na temporada anterior.

Um ano depois, os empregados da casa grande contemporânea, instalada em um condomínio fechado, experimentam uma espécie de quarentena pré-pandemia: na ausência de comando e com pagamentos atrasados, assumem o controle da casa, que passa a ser locada para terceiros, como acontece na plataforma Airbnb. O ponto-alto (ou baixo, dependendo de onde se observa) é quando uma pequena produtora de comerciais se instala na imensa sala da casa para gravar uma propaganda deprimente de Natal.

A ascensão e queda daquela tradicional família brasileira, um território em disputa na cinematografia brasileira contemporânea, é observada pela personagem de Regina Casé, ela mesma uma entusiasta e apresentadora do sincretismo cultural brasileiro levado à TV em programas como “Brasil legal” e “Esquenta”.

No filme, sua personagem, Madalena, é uma espécie de governanta que serve como entreposto entre uma classe em decadência e outra emergente. Ou que almeja emergir.

Em diversas cenas ela é humilhada pela dona da casa e suas amigas, mas evita o confronto. Nas áreas contíguas da casa, como a copa e a cozinha dos funcionários, ela é responsável por colocar os pares no lugar. Numa das cenas, faz piadas com a fome de um dos motoristas, chamado por ela de “retirante”.

Madalena organiza as duas pontas da história com o que se convencionou a chamar de “jeitinho brasileiro”, um mito, se não fundador, organizador de uma certa identidade nacional marcada pela flexibilidade moral como norma de sobrevivência.

Como o sushi de salsicha que Madalena come com os empregados enquanto os patrões fazem a sua última festa numa Ilha Fiscal particular, ela molda sua personalidade no improviso. Obedece enquanto dá ordens. Pede empréstimo ao patrão enquanto topa participar de um esquema que só desconhece em parte, fornecendo seu CPF para os aparelhos celulares de quem não quer ser monitorado. Ela ginga, em outras palavras, enquanto experimenta uma fantasia empreendedora de olho num terreno onde pretende montar uma lanchonete. A chance de fazer o negócio vingar é mínima, mas a fantasia persiste.

Até que, no vácuo de lideranças, ela e os empregados decidem ocupar, por direito, a casa dos patrões fugitivos que deixam para trás as dívidas e os pagamentos suspensos.

Se no filme “Parasita” a alegoria do sul-coreano Bong Joon-Ho é um choque de classes, marcado pela transição não-pacífica de realidades mediadas por escadas, num contraste entre um submundo que alaga e outro que faz festa sob a mesma chuva, o filme de Kogut aponta para uma solução à brasileira do conflito – uma fantasia, evidentemente, num país de violência latente, onde o Estado de confinamento é mediado pela letalidade policial e a criminalidade dentro e no entorno dos enclaves de condomínios fechados.

Mas esse “jeitinho” levado à tela aponta uma ocupação de espaço pelo que Sergio Buarque de Holanda chamou de cordialidade, uma virtude que não é sinônimo de bons modos, bondade e amizade, mas uma forma de convívio marcada pelo disfarce de uma polidez que permite a cada um preservar suas sensibilidades e emoções. O olhar do motorista instalado como “parasita” na versão sul-coreana da casa grande é, em si, uma declaração de guerra ao desprezo mal disfarçado por quem, insensível, comemora o dia lindo após a tempestade que alagou parte da cidade que não é acessada pela elite retratada no filme vencedor do Oscar de 2020.

No longa de Kogut, a personagem de Regina Casé não declara guerra, mas fixa-se no entreposto como quem espera o bote, e não pelo conflito aberto – e distante, portanto – do derramamento de sangue da fábula sul-coreana.

O adiamento da estreia adiou também a análise do filme de Sandra Kogut em contraposição a outro filme protagonizado por Regina Casé. Em 2015, quando a Lava Jato monopolizava o noticiário e a crise econômica mostrava os dentes, parte dos afetos políticos identificados com as bandeiras do governo sob ataque convergiram em outra fábula: o filme “Que Horas Ela Volta”, de Anna Muylaert.

No filme, a atriz carioca interpreta uma migrante nordestina instalada na casa de outra família decadente. Os parâmetros de uma sociedade marcada pela desigualdade são medidos pela distribuição de afetos naquela casa, onde o filho tem basicamente duas mães. A sua e a de criação.

Para pagar a criação da filha, que ficou no Nordeste, a personagem Val intercala os papéis de empregada, cuidadora e babá do menino que se nega a amadurecer.

Num país de relações trabalhistas assimétricas, Val é tratada como alguém da família enquanto as hierarquias estão intocadas; quando ela recebe, em seu quarto de empregada, a filha vestibulanda, que chega à cidade grande para ocupar um espaço supostamente indevido, tudo se transforma. Diferentemente da mãe, Jéssica (Camila Márdila) não pede licença nem dobra a espinha para os donos da casa.

Sua presença ali é transitória. Inteligente e articulada, ela aponta a decadência da (de novo) família tradicional brasileira que projeta na ocupação dos espaços de prestígio, como a universidade, um direito natural. Filha, isso sim, das políticas distributivas de um período que consagrou as ações afirmativas, Jéssica se tornou o símbolo da ascensão social dos anos petistas. Uma ascensão interrompida, contestada por notícias de corrupção e que colocou em disputa e revisão a trajetória, retratada numa cinebiografia precoce, triunfalista e autorizada, de Luiz Inácio Lula da Silva, o imigrante que sobreviveu à fome, se torna líder da classe operária e alcança a Presidência da República.

Sua eleição, em 2002, consagrou a ideia de que não havia limites para sonhar – ao menos para quem nasceu brasileiro. Essa ideia estava inserida num conjunto de anúncios levados ao ar no segundo ano de seu governo. O slogan era uma frase do historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), estudioso do folclore nacional: “o melhor do Brasil é o brasileiro”. Trazia histórias de superação, como a de Ronaldo Nazário, centroavante cuja carreira foi marcada por uma série de graves lesões e que chegou à Copa de 2002 sob desconfiança e, recém-recuperado, marcou os dois gols da final contra a Alemanha.

Para quem gosta de paralelismos, a derrota por 7 a 1 para a mesma Alemanha, quando o país se dispôs não a disputar, mas a receber o megaevento, são o retrato da deflação de expectativas de uma década para a outra.

Essa deflação tem no cinema um registro histórico.

Na quarentena, um dos muitos retratos dessa década que começa a ser pensada em perspectiva desbotou antes da estreia.

As salas de exibição se tornaram risco de vida. Foram um dos primeiros espaços a fechar e devem ser um dos últimos a reabrir ao fim da pandemia. A resposta das plataformas de streaming ainda são incertas. As lives não parecem dar conta das possibilidades de encontros, leituras e conflitos dos debates entre plateia, realizadores e mediadores. A crítica também parece deslocada de sua função essencial sem a estreia “física” como ponto de partida e referência.

Suspensa, a década do cinema nacional não se completou. 

Foi essa mesma década que assistiu à consolidação do cinema nordestino, sobretudo a produção pernambucana, como um dos fenômenos culturais mais importantes de sua história.

Esse cinema que surge na primeira década do novo século com Marcelo Gomes, Karim Aïnouz, entre tantos, chega sujo de sangue ao fim dos anos 2010 com o longa “Bacurau”, filme de Kleber Mendonça Filho lançado em 2019 que retrata a resistência de um povoado sertanejo, transformado em cenário de uma savana humana de reality show, contra o próprio apagamento.

Aqui o brasileiro em essência está sob ataque e precisa se armar para se defender do bote estrangeiro. Sai a ocupação pacífica do espaço das personagens de Regina Casé e entra o confronto, como num sinal trocado da franquia “Tropa de Elite”. 

Sai de cena também o antropofagismo abraçado por modernistas e tropicalistas que absorvem a guitarra elétrica e as referências estrangeiras e entra em ação a autodefesa de quem precisa voltar às origens e resgatar as ferramentas do passado, guardadas no museu, para evitar o morticínio. 

Longe do sincretismo oswaldiano, essa é a elaboração estética possível diante de um projeto político ancorado em armamento, violência policial, nacionalismo, entreguismo, releituras integralistas e articulação em defesa de intervenções e atualizações de atos institucionais da ditadura.

Como quem vê a casa abandonada pelos donos ao fim da Lava Jato, o bolsonarismo assume o poder e tenta transformar em mito fundador seu messianismo cristão-nacionalista que despreza o carnaval, a cultura popular de matriz africana, e determina que agora a família é o elemento central e estruturante dos afetos políticos. 

O discurso de Roberto Alvim, ex-secretário da Cultura que buscou no nazismo a fórmula do que deveria ser a arte brasileira do novo tempo – heróica, nacional, ou então nada – é sintoma desse emborrachamento.

Num ano marcado pela pandemia, pouca gente se lembra do episódio. Ou se lembra como um episódio menor em um contexto em que o único imperativo é sobreviver. Todo o resto ficou suspenso. Ou, jogado quente debaixo de um tapete que ainda queima, passou desapercebido.

Era tudo isso que estava em disputa quando um país inteiro se viu trancado em casa e passou a viver à base de lives e fotos de pães caseiros no Instagram. Quantos verões levarão para que esta casa seja reocupada como nação?

O dicionário Michaelis define a distração como o estado em que a atenção está dividida entre vários assuntos ou ações; uma falta de concentração dos sentidos quanto à realidade imediata. Os resultados dessa desatenção e dessa vagueação são a irreflexão, a inadvertência e o lapso de quem segue absorto.

Há no dicionário ainda o sentido de desvio ou divisão, resultante da desunião, separação, apartação da distração. Há o sentido também de diversão.

Com os corpos separados, isolados e confinados, esse país já não vai ao cinema para se ver e se distrair. E desaprendeu assim a falar de si.

Ocupado pela urgência pandêmica, já não questiona que retrato é esse que chega assombrado pelas tintas da melancolia de realizadores que adoecem e resistem, como um povoado sob ameaça, para oferecer leituras e sentidos da própria identidade ora sequestrada. Só que o mundo retratado antes da pandemia já não está aqui. Ou está?

Na chamada guerra cultural, a manifestação artística segue como um território em disputa. Por isso declarada inimiga por quem assumiu a trincheira, o orçamento e o controle da narrativa – do cosplay de Joseph Goebbels à namoradinha do Brasil saudosa da ditadura, chegando agora ao ator de “Malhação” escalado para macaquear as ideias do chefe em torno do distanciamento social e das propriedades mágicas da cloroquina.

Alguém se deu conta disso?

Matheus Pichonelli é formado em jornalismo (Faculdade Cásper Líbero) e em ciências sociais (USP). Mantém um blog de política no Yahoo Brasil e um blog sobre comportamento no UOL.