Por Camila Pissolito
Pandemia do novo coronavírus evidencia racismo e problemas estruturais na produção e aplicação de medicamentos.
Quando um novo medicamento chega na fase de testes com humanos, a parcela participante precisa ser representativa, para que os resultados colhidos na simulação se apliquem à população-alvo da droga. O planejamento da amostragem de pacientes nessas pesquisas é extremamente importante para minimizar erros. Entretanto, no caso da pandemia do novo coronavírus, a desaceleração da doença em alguns lugares faz um novo problema surgir: a falta de pacientes para a continuidade de estudos clínicos confiáveis em busca de um tratamento eficaz.
E é nessa hora, então, que alguns cientistas procuram realizar pesquisas em locais com sistemas de saúde precarizados, e em pessoas sem condições de acesso ao tratamento adequado. “Vimos, há algumas semanas, parte da comunidade científica francesa sugerindo que testes de vacinas fossem feitos no continente africano, dadas as precariedades de alguns países em fornecer tratamentos e proteções contra o vírus”, denuncia Rosana Castro, antropóloga e especialista em saúde coletiva. “Isso denota uma dinâmica de capitalização sobre precariedades sanitárias históricas e sistêmicas. A resposta internacional de ativistas negros foi imediata e acertada na denúncia do racismo e das perspectivas neocoloniais que fazem parte da construção de projetos tecnológicos”, completa.
Outra crítica à ciência que se faz necessária, segundo Altay de Souza, psicólogo, estatístico e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é o modo como determinadas áreas do conhecimento formam seus profissionais. Para ele, alguns alunos buscam se tornar “problem solvers”. “Em geral o mercado de trabalho gosta muito de engenheiros, porque eles aprendem competências para resolverem problemas”, exemplifica. “O problema é que isso acontece sem muita crítica do porquê desses problemas”. Além de, evidentemente, para quem estão resolvendo.
A explicação está no fato de que a formação do método científico no mundo ocidental começou a se estabelecer de forma mais massificada a partir da revolução industrial. Anteriormente, o avanço científico estava associado à guerra e ao expansionismo de algumas nações. Com a revolução industrial, educar os cidadãos para o trabalho também se tornou uma forma de propagar o método científico, mesmo que de forma utilitária.
Para Altay, que também produz o podcast Naruhodo, isso não é algo necessariamente ruim. “Tivemos vários benefícios para a sociedade como um todo, como melhora da qualidade de vida, aumento da longevidade e políticas de bem-estar social. Mas esse modelo da educação voltada para o trabalho já está dando sinais de cansaço, sobretudo por conta dos efeitos da tecnologia na redução dos empregos e demanda por uma educação mais flexível”, explica.
O pesquisador sugere que a solução será encontrada quando a ciência virar pedagogia. “Estou sendo até um pouco otimista nesse sentido, na verdade estamos no caminho contrário. Mas isso teria um impacto central na forma de pensar a educação como práxis da pedagogia”, sugere. Neste cenário, a educação não seria necessariamente voltada para competências ligadas à venda da força de trabalho. “Ela seria mais inclusiva e faria as pessoas pararem de pensar que estão certas, mas sim buscarem estar menos erradas”.
A diferença entre a existência de uma vacina e ela estar acessível para todos também há de ser problematizada. Para Rosana, vinculada à Rede de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (ReACT), a preocupação com a eficácia, a segurança e a agilidade deve caminhar junto com o desenvolvimento de políticas que garantam o acesso a essas tecnologias. “O racismo é um elemento que participa dessas dinâmicas tecnológicas”, explica a antropóloga. Em boletim recentemente divulgado pelo Ministério da Saúde, ficou evidenciado que, proporcionalmente, pessoas negras atendidas no sistema de saúde morrem mais do que as brancas por covid-19.
Ainda de acordo com a antropóloga, uma das possíveis razões para isso é justamente a desigualdade no acesso às tecnologias diagnósticas e terapêuticas para enfrentamento da doença. Com isso em vista, perguntas éticas emergem do contexto tecnológico: quem serão as pessoas que correrão os riscos da incerteza da busca por uma vacina segura? Quem são as pessoas que conseguirão acessar as terapias necessárias à proteção imunológica? Que iniciativas podem ser tomadas agora para garantir que as vacinas não cheguem apenas para alguns, mas para todos que necessitem?
À medida em que os estudos avançam, algumas possibilidades de tratamento são eliminadas e apostam-se em outras alternativas. No entanto, é preciso ter em mente que a ciência é feita de conhecimentos que vão sendo aprimorados. “O método científico não é um critério para a verdade, é exatamente o contrário. Se você quer buscar a certeza ou a verdade, abra uma igreja. A ciência e o método científico são formas de reduzir a incerteza e a dúvida”, diz Altay.
Além disso, a objetividade dos métodos científicos também deve ser questionada, como demonstram pesquisas históricas, sociológicas e antropológicas, aqui explicitadas por Rosana Castro, já que estiveram muitas vezes associados a processos que reforçaram diversas desigualdades regionais, raciais, étnicas, de classe e de gênero. “Nesse sentido, acho que as ciências sociais contribuem com as ciências naturais quando explicitam essas conexões e as implicações diferenciais que o desenvolvimento de um medicamento pode ter sobre diferentes contextos, grupos e sujeitos”, analisa.
Para Altay, o que temos agora é o resultado de uma política mundial mediada pelo consumo, que vê a economia como uma causa para a saúde e que, até então, falhou em considerar o caminho oposto. “Logo, temos muitos esforços de vários campos de pesquisa focados em tentar entender como lidar com a epidemia e acelerar uma série de processos”, observa.
O problema, no entanto, é que tempo e reprodutibilidade são fundamentais para a redução da incerteza sobre as hipóteses de validade de vacinas e remédios. “E tempo é uma coisa que não temos. Em breve surgirão receitas milagrosas e práticas sem validade comprovada ou outras com alguma comprovação, mas depois rejeitadas por evidências mais sistemáticas”, prevê Altay.
Do ponto de vista das ciências sociais, é importante considerar que a produção de medicamentos não é um resultado aleatório de uma busca por “novas descobertas”, mas um processo complexo no qual o desenvolvimento de uma tecnologia se articula a contextos sociais específicos. “Não podemos pressupor o método científico como um meio para produção de uma verdade sem vinculações históricas e políticas. Nas ciências sociais e humanas, de uma maneira geral, costumamos entender que a verdade varia a cada momento histórico e a cada contexto social, e que os métodos científicos não se tratam de meios que corrigiram ou aperfeiçoaram erros do passado”, complementa Rosana Castro. “Assim, entendo a importância dos métodos científicos produzidos pelas ciências não por sua independência de contextos sociais, mas pelo modo como se tornaram possíveis e legítimos justamente por suas vinculações com aspectos históricos e disputas políticas particulares”, finaliza.
Camila Pissolito é jornalista, especialista em jornalismo científico e mestranda em divulgação científica e cultural (Labjor). Atualmente desenvolve um projeto de divulgação científica na Rede de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (ReAct) financiado pela bolsa Mídia Ciência da Fapesp.