Desafios e oportunidades para o desenvolvimento de células solares fotovoltaicas emergentes

Por Paulo Ernesto Marchezi, Francineide Lopes de Araújo, Eduardo Giangrossi Machado, Agnaldo de Souza Gonçalves e Ana Flavia Nogueira

Ano após ano a população mundial cresce e com ela a demanda por energia. Seja pelo alto desenvolvimento tecnológico dos países ricos ou pela necessidade de industrialização dos países emergentes, este aumento torna-se preocupante. Mais recentemente, observamos também uma demanda crescente de energia para recarga de veículos elétricos, dispositivos eletrônicos (gadgets) conectados à internet e até mesmo sensores em aplicações de internet das coisas (IoT). A maioria das fontes energéticas empregadas atualmente para geração de eletricidade são procedentes da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural), que são fontes não renováveis de energia, altamente poluentes e as maiores responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa. Por esses motivos, a busca por fontes de energia mais limpas, renováveis e sustentáveis têm sido um dos principais desafios da ciência moderna. Dentre as fontes renováveis de energia disponíveis, a energia solar é considerada a mais abundante porque em apenas um ano a energia solar que chega à Terra é cerca de 35 vezes maior do que as reservas mundiais de combustíveis fósseis. Desse modo, é primordial o desenvolvimento de tecnologias que aproveitem a energia solar para gerar eletricidade de forma economicamente competitiva e com o maior alcance possível. Atualmente, a tecnologia empregada para converter a energia solar diretamente em energia elétrica é a tecnologia fotovoltaica.

Antes de entrarmos na discussão a respeito das tecnologias fotovoltaicas atuais e emergentes, é importante entendermos como funciona um dispositivo que converte energia solar em energia elétrica. Uma célula solar, ou uma célula fotovoltaica, é um dispositivo capaz de converter diretamente a energia proveniente da luz solar em energia elétrica por meio do efeito fotovoltaico. Esse efeito nada mais é do que a geração de corrente elétrica e potencial quando um material é exposto à luz. Para esse efeito ocorrer é necessário o uso de materiais semicondutores. Porém nem toda a luz incidente é convertida em energia elétrica: os dispositivos fotovoltaicos funcionam com uma certa eficiência de conversão da energia solar em elétrica. Essa eficiência é usada para comparar diferentes materiais, em termos de sua aplicabilidade. Para obtermos dispositivos com eficiência elevada, o que leva a um custo menor na geração de energia, é necessário o desenvolvimento de diversos materiais e o estudo aprofundado de todas as suas propriedades.

Nos últimos anos observamos um aumento na comercialização de painéis fotovoltaicos, principalmente para residências. Esses painéis, um conjunto de células solares, são, em sua maioria, fabricados com silício que é atualmente o semicondutor mais utilizado na geração de energia elétrica fotovoltaica. Essa tecnologia está muito bem estabelecida, porém os materiais devem ter alta pureza e serem produzidos com a menor quantidade de defeitos possível. Para isso, o processamento do silício grau solar envolve altas temperaturas, o que aumenta o seu custo. Desse modo, apesar de sua elevada estabilidade (a capacidade do material de não se degradar e não perder suas propriedades ao longo do tempo), os painéis solares de silício demoram um longo tempo para retornar a energia gasta para sua fabricação. Em laboratório, muitas vezes é possível atender tais requisitos em grande extensão, mas em escala industrial isso se torna mais complexo. Outro ponto importante é que a eficiência desses dispositivos tem se aproximando cada vez mais do valor teórico (29,8%), e portanto não há muito mais o que desenvolver em termos de material. Logo, novos conceitos em células solares, novas arquiteturas, novos materiais e processos de fabricação menos custosos são cada vez mais necessários.

Hoje temos uma grande variedade de tecnologias fotovoltaicas, incluindo células solares de junção única, multi-junção, filmes finos e as chamadas tecnologias emergentes. As tecnologias emergentes incluem as células solares sensibilizadas por corante (CSSCs), as células solares orgânicas (CSOs) e, mais recentemente, as células solares de perovskita (CSPs). Essas tecnologias, ainda em desenvolvimento, têm potencial para se juntar e complementar o mercado dos painéis solares de silício em um futuro não muito distante.

As células solares sensibilizadas por corante (CSSCs), ou células de Grätzel, surgiram no início da década de 90 como uma alternativa interessante para a produção de módulos solares de baixo custo. Uma célula solar sensibilizada por corante é constituída, basicamente, por dois eletrodos com um eletrólito entre eles, formando um “sanduíche”. Um dos eletrodos é chamado de fotoanodo, normalmente composto por uma fina camada de óxido de titânio tingida por moléculas que absorvem luz, ou seja, um corante, daí vem o nome “células solares sensibilizadas por corante”. O baixo custo da tecnologia é proveniente da baixa quantidade de material necessário para sua montagem (apenas 2 eletrodos e o eletrólito). A limitação da tecnologia reside na dificuldade de se produzir em escala industrial painéis solares com elevada eficiência e que sejam estáveis por tempo suficiente. O problema do eletrólito líquido tem sido parcialmente resolvido com novos eletrólitos sólidos.

As células solares orgânicas (CSOs) são outro tipo de tecnologia emergente com apelo de baixo custo, facilidade de processamento, flexível e colorida; a eficiência dessas células cresceram de 3,5 % em 2001 para valores próximos de 18% em 2020 [1]. Nesse tipo de célula solar, a camada ativa (a região da célula solar responsável por absorver luz) é composta por materiais semicondutores orgânicos como polímeros condutores, moléculas orgânicas conjugadas e os fulerenos (a famosa bola de futebol de carbono). Como a fabricação das CSOs se baseia em soluções (tinta), existem vantagens como, por exemplo, a utilização de diversas técnicas de deposição menos custosas (roll-to-roll e blade-coating, por exemplo) e sobre substratos flexíveis. Dessa maneira, torna-se viável sua fabricação em larga escala, com transparência e flexibilidade, possibilitando que as CSOs possam ser instaladas em diversas superfícies. Por outro lado, as CSOs ainda apresentam alguns entraves como a baixa eficiência quando comparada com as células solares de silício e a durabilidade.

As células solares de perovskita (CSPs) são a mais nova tecnologia fotovoltaica emergente que se junta às outras duas e inicia uma revolução no mercado fotovoltaico. Isso porque nenhuma outra tecnologia cresceu tanto em termos de eficiência como as CSPs em tão pouco tempo. Os dados mais recentes mostram que a eficiência de conversão de energia de células solares baseadas em perovskita alcançou a marca de 25,5%, o que torna esse tipo de célula competitiva com a de silício monocristalino (26,1%), hoje o padrão comercial. As células solares de perovskita contam com uma arquitetura e materiais que lembram as CSOs e as CSSCs. Uma outra vantagem desse tipo de material é o custo de seu processamento: como sua síntese é feita em solução e o filme é produzido a partir de uma tinta, com deposição em baixas temperaturas, seu custo é muito inferior ao da célula solar de silício. Assim, esse material se torna uma atraente alternativa para a produção de células solares baratas e com eficiência suficiente para ser comercialmente atrativa. Um ponto negativo que ainda carece de mais estudos se refere à sua estabilidade, que de modo geral, ainda é muito questionada. Porém, diante da atrativa possibilidade que as CSPs oferecem, principalmente aliando baixo custo com elevada eficiência, acredita-se que essa tecnologia seja o futuro em termos de tecnologia fotovoltaica. No Brasil, o Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar do Instituto de Química da Unicamp, coordenado pela professora Ana Flávia Nogueira, tem se dedicado ao estudo e fabricação de CSPs. Células solares de perovskita com 20% de eficiência foram recentemente obtidas.

Atualmente vivenciamos uma quebra de paradigma na indústria fotovoltaica. Antigamente a tecnologia predominante para se fazer uma célula solar era partir de uma bolacha (wafer) de silício com espessuras de 100 a 500 micrômetros. Além da alta pureza, o processo produtivo requer alto consumo energético e ambientes extremamente limpos. Hoje temos diversas tecnologias fotovoltaicas baseadas em filmes finos, como apresentamos nos exemplos das CSOs e CSPs, o que permite economia em sua produção. Por filme fino entende-se que a camada absorvedora de luz tenha espessura pelo menos 350 vezes menor que aquelas típicas de wafers de silício.

Embora os desafios sejam grandes e diversificados, existem enormes oportunidades ao superá-los. A empresa japonesa Fujikura Ltda, por exemplo, anunciou recentemente módulos solares feitos a partir de CSSC focando no mercado de IoT. Como esses dispositivos são capazes de manter uma eficiência relativamente alta mesmo sob iluminação difusa ou artificial, é possível atender requisitos de diferentes setores, tais como agronegócio, fábricas inteligentes e monitoramento de infraestrutura.

Painéis fotovoltaicos de silício comerciais convertem atualmente 15%-20% da luz solar em eletricidade. Ao se depositar uma única camada de perovskita sobre esses painéis solares, a empresa Oxford PV, da Inglaterra, atingiu uma eficiência recorde de 28%. Atualmente essa empresa está criando painéis solares de silício recobertos com várias camadas de perovskita almejando uma eficiência de cerca de 37%, o que possibilitará grandes avanços rumo aos objetivos da Sustentabilidade 2050. A empresa Oxford PV anunciou em seu site oficial [2] que iniciará a produção para comercialização desse painel a partir de 2021.

Aqui no Brasil a Sunew, uma spin-off do CSEM, centro de pesquisa e desenvolvimento localizado em Belo Horizonte, comercializa as células solares orgânicas. São módulos solares com espessura de 0,3 mm que se moldam a diferentes perfis de superfície. Inicialmente atuando no mercado B2B, a empresa já instalou módulos solares na fachada da sede da Totvs, em São Paulo, na unidade da Natura em Cajamar, cuja instalação foi feita numa área de 1.800 m² e 1.580 painéis solares, além de diversas soluções para shopping centers.

Existem diversos desafios e oportunidades no desenvolvimento das tecnologias fotovoltaicas, fontes de energia sustentável, limpa e cada vez mais acessíveis. Os principais desafios atuais a serem superados se referem à estabilidade dos materiais chamados de emergentes (materiais novos, diferentes do silício) e a eficiência das células solares. Podemos destacar outros, dentre eles a inerente complexidade do tema (interdisciplinar por natureza), alto custo do aparato experimental e dos insumos necessários para a pesquisa dos dispositivos, diversos testes de estabilidade e toxicidade antes de passar para a escala de produção. Apesar desses desafios, as oportunidades são imensas, uma vez que poderemos ter em breve uma tecnologia de geração de energia que seja eficiente, de custo acessível, renovável (usando a energia solar como fonte) e portátil. Esse último aspecto abre interessantes opções tecnológicas, como por exemplo unidades de resfriamento portátil (atualmente bastante relevante para o transporte de vacinas), e cobertura de prédios e habitações, para serem energeticamente autossuficientes. Há grande expectativa de toda a comunidade científica mundial frente a esse amplo horizonte de oportunidades. Cabe saber se o Brasil fará parte dessa iniciativa. Temos Sol em demasia por todo nosso território e a possibilidade de produzir essa tecnologia a partir de nossos próprios recursos e aprendizado.

Paulo Ernesto Marchezi é doutor em Ciências pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atualmente é bolsista de pós-doutorado no Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar (LNES) do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Francineide Lopes de Araújo é doutora em Física Aplicada pela Universidade de São Paulo (IFSC/USP) e atualmente é bolsista de pós-doutorado no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ/Unicamp) sob supervisão da Profa. Dra. Ana Flávia Nogueira.

Eduardo Giangrossi Machado é doutor em Físico-Química pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente é bolsista de pós-doutorado no Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar (LNES) do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ/Unicamp).

Agnaldo de Souza Gonçalves é doutor em Química pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atualmente realiza pós-doutorado no Instituto de Física Gleb Wataghin, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ana Flavia Nogueira é professora do Instituto de Química da Unicamp. Fundadora e coordenadora do Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar da Unicamp, grupo líder na América Latina em pesquisa sobre tecnologias emergentes para energia fotovoltaica. Ela é a diretora geral do Centro de Inovação em Novas Energias (CINE), onde também atua como pesquisadora e coordenadora de programa.

Agradecimento
Os autores agradecem o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo número 2017/11986-5), a Shell e a importância estratégica do apoio da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), por meio do regulamento da Taxa de P&D.

[1] NATIONAL RENEWABLE ENERGY LABORATORY (NREL). Best research-cell efficiencies. Disponível em < https://www.nrel.gov/pv/assets/pdfs/best-research-cell-efficiencies.20200925.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2020.

[2] Disponível em <https://www.oxfordpv.com/tandem-cell-production>. Acesso em 04 dez 2020.