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A Mudança em Construção Carlos Vogt I Nas férias de verão de 1963, eu estava em Sales Oliveira, na Alta Mogiana, com g, como se escrevia nas máquinas da estrada de ferro de mesmo nome. Sales Oliveira, cidade agrícola, grandes fazendas, meu pai seleiro, eu em São Paulo na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, da USP, da Maria Antônia, na mistura juvenil do prazer ardente do descompromisso boêmio com a seriedade fácil e sincera da militância política estudantil. O Cine Santa Rita, no Largo da Matriz, era uma das cidadelas que conquistávamos todos os dias nas tardes quietas da população pequena e tranqüila. Tomávamos de assalto o cinema para, na verdade invadir-lhe o serviço de som e espalhar pelos alto-falantes presos ao telhado do coreto, a programação de música, poesia, e textos de incitação ideológica que muitos achavam peraltices, outros, esquisitices e alguns, "senhores barões da terra", graves ameaças:
Vinícius de Moraes, Moacyr Félix e os Violões de Rua, o Centro Popular de Cultura,o CPC da UNE, União Nacional de Estudantes, Francisco Julião e as Ligas Camponesas, ancestrais do MST, Movimento dos Sem Terra, a luta pela reforma agrária. II Em Sales Oliveira, nós assustávamos as noites das famílias pelos mesmos alto-falantes do Cine Santa Rita, imitando vozes tenebrosas deste e de outros mundos e, durante o dia, preocupávamos, nas tardes, os fazendeiros temerosos da propaganda "comunista" que o "bando de jovens desocupados e irresponsáveis" propalava na calma quente dos dias de janeiro:
O Brasil espreguiçava contente ao sopro da democracia do pós-guerra e do pós-getulismo. Esticava-se dengoso e descontraído na rede do desenvolvimentismo dos anos JK e vivia a euforia do novo tudo: novacap, bossa nova, cinema novo, vida nova e nós, vida vadia. Mas discutíamos apaixonados e a pregação comia solta:
A poesia, além de Vinícius, tinha o peso e a leveza de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Mário Chamie, gerações diferentes, mas convivendo no mesmo tempo, mágico e conflitante, de afirmação lírica da alma brasileira. Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Murilo Rubião, Dalton Trevisan, Jorge Amado, Clarice Lispector, Raquel de Queirós, Ligia Fagundes Teles, Antonio Callado, Mário Palmério são outras convivências, em prosa, que adensam o período. E no Cine Santa Rita, seguia a doutrinação:
Os anos anteriores tinham sido pródigos na criação de instituições culturais: em 1947, o Masp, o Museu de Arte de São Paulo; no ano seguinte, a Escola de Arte Dramática, o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, o Museu de Arte Moderna de São Paulo e um ano depois, o seu equivalente no Rio de Janeiro; o CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa - é fundado em 1951; as universidades se multiplicam; em 1962, nasce a Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo -, depois de uma longa gestação que tem início com os trabalhos da Constituinte, em 1947. Juscelino Kubitschek, seresteiro, sedutor, imprimiria a marca de suas iniciais - JK - aos anos de seu governo na presidência da república (1956-1960), depois de ter passado pela prefeitura de Belo Horizonte (1940-1945) e pelo governo de Minas Gerais (1950-1955). Deixaria saudades e a sensação de incompletude que sempre permeia a interface entre a realidade e o mito. A fundação de Brasília mobilizou o país e a sua inauguração foi a apoteose do desenvolvimentismo JK. As crises políticas durante os anos do governo JK não tinham também sido poucas; agravam-se, na seqüência, com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e com o governo João Goulart, seu vice-presidente, que o sucedeu, em meio a tensões e anúncios de conflagrações generalizadas até que, em 1964, o golpe militar, em março/abril, fecha, com águas sazonais torrenciais e duradouras, a agitada expectativa de futuros promissores e tranqüilos que tão bem caracterizou a efervescência cultural e política dos anos anteriores:
III O Brasil vinha, há alguns anos, de um esforço de ajuste de contas com o seu passado escravista. Como já pude observar em outros artigos1, o binômio escravidão/ latifúndio engendrou, no Brasil uma predominância dos valores da vida rural, com uma "monarquia tutelar", do ponto de vista político, uma economia escravista e monocultora e um ethos social, com bem mostrado em Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, fundado na cordialidade. Esse esforço intelectual, que se estende até os anos 1960, reúne obras de referência indispensável para a compreensão do país e de suas transformações e as congrega, de um modo geral, em torno dos processos de formação de sua modernidade e de sua contemporaneidade, contando, inclusive, entre seus autores, com a contribuição de pesquisadores estrangeiros. Não é por acaso que todas trazem em seu título o termo formação. Em ordem cronológica Casa-grande e senzala: formação da família patriarcal brasileira (1933), de Gilberto Freyre; Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr.; Formação histórica de São Paulo (De comunidade a metrópole) (1954), de Richard Morse; Formação da literatura brasileira (1957), de Antonio Cândido, Formação econômica do Brasil (1958), de Celso Furtado; Os donos do poder: formação do patriarcado nacional (1959), de Raimundo Faoro; A formação do federalismo no Brasil (1961), de Oliveira Torres; Formação histórica do Brasil (1962), de Nelson Werneck Sodré; Formação política no Brasil (1967), de Paula Beiguelman. Quando este ciclo se fecha, o Brasil está pronto para colher a grande obra literária que nascerá da dinâmica dessas transformações e eclodirá como metáfora definitiva da ruptura entre o rural e o urbano: Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, pela tecitura da linguagem mutante, pelo contensioso da convivência entre o regional e o universal, pela universalização do local e do específico, pela localização dos conflitos universais entre o real, o mítico e o místico, pela desconstrução da memória e pela memória de um mundo em desconstrução, grande sertão, veredas da transformação:
IV As ligas camponesas estão lá atrás no registro devido de sua importância histórica e Francisco Julião, depois de anos de lutas, de exílio forçado e de exílio voluntário, morreu no México, em 1999, aos 84 anos de idade. O mundo mudou muito nesses anos. O capitalismo mudou, os embates ideológicos mudaram e a globalização da economia espalhou-se pelo planeta, envolvendo as nações e suas lutas na malha de aço transparente dos compromissos com a livre circulação do capital financeiro internacional. Sales Oliveira há muito não tem mais a Estrada de Ferro Mogiana e a estação de trem seguiu o destino de suas congêneres pelos interiores de São Paulo: transformaram-se em Centros Culturais simpáticos e espremidos entre o mundo, pela televisão e a internet, e as tradições locais que teimam, acanhadamente, em freqüentar mostras e festivais da produção regional. Os conflitos de terras foram alçados a pautas urgentes de políticas públicas governamentais e o MST nasceu, cresceu, espalhou-se pelo país e adquiriu uma maturidade conflituosa que permanece estirada na tensão contemporânea entre a economia voltada para a produção e o consumo locais e a economia orientada para a exportação. A reforma agrária no país evoluiu de palavra de ordem de movimentos políticos organizados para bandeira civil de movimentos sociais. O Cine Santa Rita, na Praça da Matriz, em Sales Oliveira, faz tempo fechou suas portas e os alto-falantes de seu serviço de som, mudos há muitos anos sobre o teto do coreto do jardim, já não existem mais. Notas: |
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Atualizado em 10/06/2003 |
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