Entrevistas
Para líder indígena
participação política ainda é
tímida
Uilton Tuxá
Inbrapi
quer usar propriedade intelectual para compensar exploração
histórica
Daniel Munduruku
Projeto
levou conhecimento sobre direitos autorais a comunidades indígenas
Marlui Miranda
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Projeto
levou conhecimento sobre direitos autorais a comunidades indígenas
A
produtora, compositora e cantora Marlui Miranda iniciou suas pesquisas
sobre música indígena ainda na década de
1970. Seu projeto mais recente, iniciado há quatro anos,
envolveu comunidades indígenas e jovens músicos
do Amapá. O resultado da Ponte entre Povos foi lançado
em fevereiro deste ano: um livro, três CDs e um grande espetáculo
do qual participaram 20 indígenas do Oiapoque e do Parque
Indígena do Tumucumaque, 13 estudantes de música
erudita e a Camerata Atheneum formada por músicos da Orquestra
Sinfônica Municipal de São Paulo. Um marco importante
do projeto foi a questão dos direitos autorais sobre o
material produzido, conceito que a compositora teve que levar
às comunidades indígenas para garantir a elas a
proteção da propriedade intelectual sobre a sua
arte.
ComCiência
– Quando a senhora começou a se interessar pela
música indígena?
Marlui Miranda - Foi na década de 70, quando
me dei conta de que desconhecia a música indígena.
Eu ouvia alguns cantos, mas não sabia nada sobre eles.
Mesmo assim tinha muita vontade de aprender. Meu primeiro
impulso foi querer cantar. Mas logo percebi que para cantar
teria que aprender muita coisa. Foi uma espécie de
intuição. Eu estava justamente numa fase de
redirecionamento da minha própria música e o
encontro com a música indígena foi um marco
na minha vida. Mas percebi que teria um trabalho muito grande
pela frente. Existem 240 grupos indígenas no Brasil
e se eu quiser posso passar a vida toda estudando isso, aliás,
não apenas uma, mas duas, três, sete vidas. Por
conta dessa diversidade é que também optei por
uma abordagem mais ampla, que pudesse fornecer uma espécie
de paisagem da música de vários grupos indígenas
diferentes. Como artista é mais importante eu fazer
isso do que fazer um trabalho mais específico e aprofundado
como o dos antropólogos e cientistas sociais.Sempre
considerei que o meu trabalho deveria ter essa abrangência,
tentar mostrar a sonoridade da música dos povos indígenas
no Brasil. O motor dessa escolha foi a afinidade musical.
ComCiência
- Qual foi a principal dificuldade?
Marlui – Descobrir as nuances de voz, que implicaram
inclusive num trabalho teatral, porque é preciso compreender
o personagem que está interpretando aquela música,
não adianta pensar somente do ponto de vista técnico.
Buscar esse personagem dentro de mim foi o mais difícil.
Mas todo brasileiro tem um pouco de índio dentro de
si, é só cavar um pouco que encontra. O principal
foi me desligar da minha educação musical e
criar uma forma de aperfeiçoamento vocal, porque os
timbres e as colocações de voz dos indígenas
são bastante diferentes da maneira em relação
a que nós usamos.
ComCiência
- E sobre o registro dessa música?
Marlui - Outro dia recebi um e-mail de um jovem índio
juruna, que está organizando um acervo multimídia
e me pediu as minhas músicas. Eu expliquei que as músicas
não são minhas, que sou fiel depositária
de algumas, mas que eu disponibilizaria para ele o que eu
tenho.
ComCiência
- É interessante que ele, um jovem indígena,
tenha escrito para a senhora porque, com o seu trabalho, a
senhora está colaborando com o registro de uma cultura
que muitos povos estão perdendo, muitas vezes porque
os mais jovens não se interessam mais.
Marlui – Eu tenho a impressão de que,
introduzindo coisas novas, agregamos valor à cultura
indígena. Abrimos para os mais jovens uma nova perspectiva
a respeito da sua própria cultura: se eles souberem
cantar, se fizerem um artesanato bem feito, da maneira tradicional,
eles têm um lugar no mundo, inclusive naquele onde circula
o dinheiro. Um exemplo disso foi esse projeto que fizemos.
No começo foi problemático. Alguns queriam participar
mas não entendiam o que era. E muitas pessoas se recusaram
porque não havia como saber qual seria o resultado.
ComCiência
- E quando viram o resultado?
Marlui - Quando viram o livro e os CDs prontos as
pessoas que não participaram ficaram arrependidas.
Os indígenas que participaram do projeto até
sugeriram que, numa próxima viagem para apresentações,
outras pessoas pudessem ser escolhidas. Mas o processo de
preparação, que consistiu numa espécie
de oficina, durou três anos, e os espetáculos
são apenas a parte final desse processo. O objetivo
do projeto era criar um grupo que pudesse expandir a experiência
entre eles, e mostrar que permanecer praticando a cultura,
não esquecer a cultura, é crucial. E para isso
é importante usar as ferramentas de que dispomos, seja
pela publicação de um livro, um CD, apresentações.
Divulgação |
|
Indígenas
da etnia Palikur, em estudio para a gravação
do CD Kiyeminaki |
ComCiência
- E como vocês resolveram a questão dos direitos
autorais do material?
Marlui – A minha prática era colocar as
músicas como de autoria da comunidade, mas descobri, já
em 1971, quando gravei uma música em meu CD Olhos D´Água,
que a coletividade não poderia ser autora, porque isso,
na verdade, anula o autor. A autoria, reconhecida legalmente,
é de natureza individual. Existe um código de proteção
de autoria e propriedade intelectual que não aceita a produção
como coletiva.
Passei então a designar indivíduos. Achei a
melhor solução tendo em vista a complexidade
dessa questão. Por exemplo, se você é
o autor de uma música, e eu tenho direitos recolhidos
para repassar, mas eu repasso esses direitos para a associação
que representa você e sua família: você
compôs a música, mas o dinheiro é depositado
para a sua família? Por isso é que foi depositado
individualmente, em nome do autor, que foi comunicado ao Escritório
Central de Arrecadação e Distribuição
(Ecad), responsável pelo repasse dos recursos arrecadados
com as apresentações, ou outras utilizações
das músicas.
ComCiência
- Esse nome fica registrado?
Marlui - No CD consta uma ficha detalhada sobre quem
são os autores, produtores, etc. Foi preciso também
confeccionar a partitura das músicas e registrá-las
na Funarte e na Biblioteca Nacional. Na apresentação
que fizemos em São Paulo, no lançamento do livro
e dos CDs, foi realizada uma mesa redonda pra discutir a questão
dos direitos autorais. É um assunto muito novo para
os indígenas, que não pode ser discutido aleatoriamente.
É preciso colocá-los no mesmo patamar dos outros
compositores, de recolhimento de direitos. Para eles, esse
recolhimento é possível quando possuem número
de telefone de contato, conta corrente no banco. No nosso
projeto fizemos tudo isso para que eles fossem remunerados,
de maneira justa, pelas músicas e apresentações.
ComCiência
– E quanto ao patrocínio?
Marlui - Há o patrocínio mas também
há bilheteria. Recebemos apoio do Ministério
da Cultura e do Sesc. Ao contrário do período
de preparação, durante o qual contamos com o
apoio do governos do Amapá, não tínhamos
esse apoio governamental local na época posterior,
das apresentações, mas o Sesc sempre apoiou
e prestigiou o nosso trabalho, assim foi possível fazer
essa obra completa. Espero que ela seja utilizada em sala
de aula, pelos professores.
ComCiência - Ainda em relação aos direitos
autorais, não são só as músicas,
mas os trajes, conhecimentos, os mitos e os rituais. Como
se calcula isso?
Marlui – O livro, na medida em que contém
fotografias, a descrição de rituais ou de mitos,
acaba sendo um inventário e um registro importante,
que funciona como uma forma de proteção porque
tudo o que está publicado no livro necessita de autorização
para ser utilizado.
Divulgação |
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Marlui
Miranda acompanha gravação de música
para sentar para tomar caxixi, bebida típica
dos Palikur |
ComCiência
- Como você aprende uma música, um ritual? Como
foi feito no caso do CD Ihu - Todos os sons?
Marlui – Em relação ao Ihu,
eu visitei várias comunidades indígenas, mas o pessoal
do coral que participou do disco, não. As minhas visitas
não eram muito longas, duravam até 30 dias. Por
conta disso, naquela época, - 1993, 1994 - ficamos 2 anos
trabalhando nas músicas. Muita coisa se aprende só
na audição. Se alguém quiser aprender a música
indígena, se quiser cantar, é só ouvir. Mesmo
que você não vá à aldeia, acredito
que a música possibilita, a qualquer um que esteja realmente
disposto a ter um contato profundo, uma relação
com a cultura indígena, mesmo longe. O projeto Ponte
entre Povos tem como propósito fazer essa ligação.
No Ihu só havia brancos cantando. Fui somando
as vivências, brancos, indígenas, eruditos. Com os
índios no palco, o ganho para eles e para nós é
muito grande. Existe um português que eles entendem, há
uma integração. O projeto era grande e tinha uma
equipe ajudando. Era um grupo de 62 pessoas com grande participação
de cada um.
ComCiência
- Ainda com relação aos direitos autorais: de 1994
até agora, a senhora considera que houve uma mudança,
uma evolução?
Marlui - No caso das comunidades com quem eu trabalhei,
eu mesma alertei. É necessário promover uma conscientização
sobre direitos autorais. Mas dependendo de quem está fazendo
isso, pode fazer errado. Os índios estão numa estaca
zero em relação a esse assunto. Por isso, eles não
sabem, muitas vezes como exigir um retorno. Por exemplo, quando
cobram dinheiro dos antropólogos para que eles possam fazer
pesquisa de campo. Os trabalhos científicos não
podem ser onerados dessa maneira é preciso explicar que
isso está sendo feito em favor da cultura. De modo geral,
a conscientização sobre direitos autorais é
um trabalho demorado. A linguagem jurídica e o português
rebuscado, eles não entendem.
ComCiência
- Existe uma idéia generalizada de que, para os índios,
o conceito de propriedade é coletivo...
Marlui – Isso é muito perigoso porque se
for considerado coletivo, passa a ser considerado também,
automaticamente, pela nossa legislação, como domínio
público e aí as pessoas não recebem direito
algum. Por isso eu nomeio cada autor. É preciso conhecer
a comunidade em questão e as pessoas para saber quem deve
ser considerado o autor. Em alguns casos tem que ser o chefe,
que tem autoridade. Em outros, vai para uma associação
porque eles mesmos preferem assim. O dinheiro dos direitos autorais
é pouco, cerca de 50, 100 reais por trimestre. E eles têm
muita expectativa. Como têm pouco dinheiro, dão muito
valor a esses recursos. E estão conscientes de que sua
música tem que ser paga para ser usada. E negociam os preços.
Quem quiser usar tem que pagar os direitos.
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