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Projeto levou conhecimento sobre direitos autorais a comunidades indígenas
Marlui Miranda

 

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Projeto levou conhecimento sobre direitos autorais a comunidades indígenas

 

A produtora, compositora e cantora Marlui Miranda iniciou suas pesquisas sobre música indígena ainda na década de 1970. Seu projeto mais recente, iniciado há quatro anos, envolveu comunidades indígenas e jovens músicos do Amapá. O resultado da Ponte entre Povos foi lançado em fevereiro deste ano: um livro, três CDs e um grande espetáculo do qual participaram 20 indígenas do Oiapoque e do Parque Indígena do Tumucumaque, 13 estudantes de música erudita e a Camerata Atheneum formada por músicos da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Um marco importante do projeto foi a questão dos direitos autorais sobre o material produzido, conceito que a compositora teve que levar às comunidades indígenas para garantir a elas a proteção da propriedade intelectual sobre a sua arte.

ComCiência – Quando a senhora começou a se interessar pela música indígena?
Marlui Miranda -
Foi na década de 70, quando me dei conta de que desconhecia a música indígena. Eu ouvia alguns cantos, mas não sabia nada sobre eles. Mesmo assim tinha muita vontade de aprender. Meu primeiro impulso foi querer cantar. Mas logo percebi que para cantar teria que aprender muita coisa. Foi uma espécie de intuição. Eu estava justamente numa fase de redirecionamento da minha própria música e o encontro com a música indígena foi um marco na minha vida. Mas percebi que teria um trabalho muito grande pela frente. Existem 240 grupos indígenas no Brasil e se eu quiser posso passar a vida toda estudando isso, aliás, não apenas uma, mas duas, três, sete vidas. Por conta dessa diversidade é que também optei por uma abordagem mais ampla, que pudesse fornecer uma espécie de paisagem da música de vários grupos indígenas diferentes. Como artista é mais importante eu fazer isso do que fazer um trabalho mais específico e aprofundado como o dos antropólogos e cientistas sociais.Sempre considerei que o meu trabalho deveria ter essa abrangência, tentar mostrar a sonoridade da música dos povos indígenas no Brasil. O motor dessa escolha foi a afinidade musical.

ComCiência - Qual foi a principal dificuldade?
Marlui –
Descobrir as nuances de voz, que implicaram inclusive num trabalho teatral, porque é preciso compreender o personagem que está interpretando aquela música, não adianta pensar somente do ponto de vista técnico. Buscar esse personagem dentro de mim foi o mais difícil. Mas todo brasileiro tem um pouco de índio dentro de si, é só cavar um pouco que encontra. O principal foi me desligar da minha educação musical e criar uma forma de aperfeiçoamento vocal, porque os timbres e as colocações de voz dos indígenas são bastante diferentes da maneira em relação a que nós usamos.

ComCiência - E sobre o registro dessa música?
Marlui -
Outro dia recebi um e-mail de um jovem índio juruna, que está organizando um acervo multimídia e me pediu as minhas músicas. Eu expliquei que as músicas não são minhas, que sou fiel depositária de algumas, mas que eu disponibilizaria para ele o que eu tenho.

ComCiência - É interessante que ele, um jovem indígena, tenha escrito para a senhora porque, com o seu trabalho, a senhora está colaborando com o registro de uma cultura que muitos povos estão perdendo, muitas vezes porque os mais jovens não se interessam mais.
Marlui –
Eu tenho a impressão de que, introduzindo coisas novas, agregamos valor à cultura indígena. Abrimos para os mais jovens uma nova perspectiva a respeito da sua própria cultura: se eles souberem cantar, se fizerem um artesanato bem feito, da maneira tradicional, eles têm um lugar no mundo, inclusive naquele onde circula o dinheiro. Um exemplo disso foi esse projeto que fizemos. No começo foi problemático. Alguns queriam participar mas não entendiam o que era. E muitas pessoas se recusaram porque não havia como saber qual seria o resultado.

ComCiência - E quando viram o resultado?
Marlui -
Quando viram o livro e os CDs prontos as pessoas que não participaram ficaram arrependidas. Os indígenas que participaram do projeto até sugeriram que, numa próxima viagem para apresentações, outras pessoas pudessem ser escolhidas. Mas o processo de preparação, que consistiu numa espécie de oficina, durou três anos, e os espetáculos são apenas a parte final desse processo. O objetivo do projeto era criar um grupo que pudesse expandir a experiência entre eles, e mostrar que permanecer praticando a cultura, não esquecer a cultura, é crucial. E para isso é importante usar as ferramentas de que dispomos, seja pela publicação de um livro, um CD, apresentações.

Divulgação
Indígenas da etnia Palikur, em estudio para a gravação do CD Kiyeminaki

ComCiência - E como vocês resolveram a questão dos direitos autorais do material?
Marlui –
A minha prática era colocar as músicas como de autoria da comunidade, mas descobri, já em 1971, quando gravei uma música em meu CD Olhos D´Água, que a coletividade não poderia ser autora, porque isso, na verdade, anula o autor. A autoria, reconhecida legalmente, é de natureza individual. Existe um código de proteção de autoria e propriedade intelectual que não aceita a produção como coletiva.
Passei então a designar indivíduos. Achei a melhor solução tendo em vista a complexidade dessa questão. Por exemplo, se você é o autor de uma música, e eu tenho direitos recolhidos para repassar, mas eu repasso esses direitos para a associação que representa você e sua família: você compôs a música, mas o dinheiro é depositado para a sua família? Por isso é que foi depositado individualmente, em nome do autor, que foi comunicado ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), responsável pelo repasse dos recursos arrecadados com as apresentações, ou outras utilizações das músicas.

ComCiência - Esse nome fica registrado?
Marlui
- No CD consta uma ficha detalhada sobre quem são os autores, produtores, etc. Foi preciso também confeccionar a partitura das músicas e registrá-las na Funarte e na Biblioteca Nacional. Na apresentação que fizemos em São Paulo, no lançamento do livro e dos CDs, foi realizada uma mesa redonda pra discutir a questão dos direitos autorais. É um assunto muito novo para os indígenas, que não pode ser discutido aleatoriamente. É preciso colocá-los no mesmo patamar dos outros compositores, de recolhimento de direitos. Para eles, esse recolhimento é possível quando possuem número de telefone de contato, conta corrente no banco. No nosso projeto fizemos tudo isso para que eles fossem remunerados, de maneira justa, pelas músicas e apresentações.

ComCiência – E quanto ao patrocínio?
Marlui -
Há o patrocínio mas também há bilheteria. Recebemos apoio do Ministério da Cultura e do Sesc. Ao contrário do período de preparação, durante o qual contamos com o apoio do governos do Amapá, não tínhamos esse apoio governamental local na época posterior, das apresentações, mas o Sesc sempre apoiou e prestigiou o nosso trabalho, assim foi possível fazer essa obra completa. Espero que ela seja utilizada em sala de aula, pelos professores.

ComCiência - Ainda em relação aos direitos autorais, não são só as músicas, mas os trajes, conhecimentos, os mitos e os rituais. Como se calcula isso?
Marlui –
O livro, na medida em que contém fotografias, a descrição de rituais ou de mitos, acaba sendo um inventário e um registro importante, que funciona como uma forma de proteção porque tudo o que está publicado no livro necessita de autorização para ser utilizado.

Divulgação
Marlui Miranda acompanha gravação de música para sentar para tomar caxixi, bebida típica dos Palikur

ComCiência - Como você aprende uma música, um ritual? Como foi feito no caso do CD Ihu - Todos os sons?
Marlui –
Em relação ao Ihu, eu visitei várias comunidades indígenas, mas o pessoal do coral que participou do disco, não. As minhas visitas não eram muito longas, duravam até 30 dias. Por conta disso, naquela época, - 1993, 1994 - ficamos 2 anos trabalhando nas músicas. Muita coisa se aprende só na audição. Se alguém quiser aprender a música indígena, se quiser cantar, é só ouvir. Mesmo que você não vá à aldeia, acredito que a música possibilita, a qualquer um que esteja realmente disposto a ter um contato profundo, uma relação com a cultura indígena, mesmo longe. O projeto Ponte entre Povos tem como propósito fazer essa ligação. No Ihu só havia brancos cantando. Fui somando as vivências, brancos, indígenas, eruditos. Com os índios no palco, o ganho para eles e para nós é muito grande. Existe um português que eles entendem, há uma integração. O projeto era grande e tinha uma equipe ajudando. Era um grupo de 62 pessoas com grande participação de cada um.

ComCiência - Ainda com relação aos direitos autorais: de 1994 até agora, a senhora considera que houve uma mudança, uma evolução?
Marlui -
No caso das comunidades com quem eu trabalhei, eu mesma alertei. É necessário promover uma conscientização sobre direitos autorais. Mas dependendo de quem está fazendo isso, pode fazer errado. Os índios estão numa estaca zero em relação a esse assunto. Por isso, eles não sabem, muitas vezes como exigir um retorno. Por exemplo, quando cobram dinheiro dos antropólogos para que eles possam fazer pesquisa de campo. Os trabalhos científicos não podem ser onerados dessa maneira é preciso explicar que isso está sendo feito em favor da cultura. De modo geral, a conscientização sobre direitos autorais é um trabalho demorado. A linguagem jurídica e o português rebuscado, eles não entendem.

ComCiência - Existe uma idéia generalizada de que, para os índios, o conceito de propriedade é coletivo...
Marlui –
Isso é muito perigoso porque se for considerado coletivo, passa a ser considerado também, automaticamente, pela nossa legislação, como domínio público e aí as pessoas não recebem direito algum. Por isso eu nomeio cada autor. É preciso conhecer a comunidade em questão e as pessoas para saber quem deve ser considerado o autor. Em alguns casos tem que ser o chefe, que tem autoridade. Em outros, vai para uma associação porque eles mesmos preferem assim. O dinheiro dos direitos autorais é pouco, cerca de 50, 100 reais por trimestre. E eles têm muita expectativa. Como têm pouco dinheiro, dão muito valor a esses recursos. E estão conscientes de que sua música tem que ser paga para ser usada. E negociam os preços. Quem quiser usar tem que pagar os direitos.



Atualizado em 10/04/2005

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