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  econômicos prevalecem nas grandes obras em rios
 A viabilização de grandes projetos 
  de infra-estrutura apresenta aspectos econômicos, políticos e socioambientais. 
  Mas na hierarquia dos interesses que envolvem as intervenções 
  em rios, o que se nota é a prevalência dos interesses econômicos. 
  “Primeiro o projeto é viabilizado economicamente, nos centros de 
  decisão ou por quem está investindo, para ver se vai dar lucro 
  ou não. A partir daí é que começam as negociações 
  para a viabilização política e social do projeto. Dentre 
  esses vários mecanismos de viabilização da obra, o licenciamento 
  ambiental, por exemplo, acaba sendo a última etapa”, afirma Chélen 
  Fischer de Lemos, doutoranda em planejamento urbano e regional pela Universidade 
  Federal do Rio de Janeiro.  Assim como os aspectos socioambientais tendem a ficar em último plano, 
  no que diz respeito, especificamente, às grandes obras de intervenção 
  em rios, a apropriação política através de práticas 
  como clientelismo eleitoral e populismo, não é muito recorrente. 
  “Algumas obras são eminentemente políticas. Na construção 
  de uma nova capital federal, como foi o caso de Brasília, a simbologia 
  política é muito mais forte do que no caso da construção 
  de uma hidrelétrica ou da transposição de um rio, por mais 
  importância que cada uma dessas obras tenha em seu devido momento”, 
  afirma o antropólogo Gustavo Lins Ribeiro, da Universidade de Brasília 
  (UnB). Muitas das características das obras em si desfavorecem a sua 
  utilização política: o fato de serem construídas 
  na zona rural, afastadas das cidades, dos processos decisórios se concentrarem 
  nas mãos dos governos federal e estadual, em detrimento dos governos 
  mais locais, que tenderiam mais a utilizar as obras públicas de maneira 
  clientelista, dentre outros aspectos. O governo Lula vem dando continuidade à realização de 
  grandes obras de infra-estrutura em rios por todo o país e a transposição 
  das águas do Rio São Francisco aparece nos discursos do presidente 
  como um projeto pessoal, destinado a resolver o secular problema da seca no 
  semi-árido brasileiro. Mas essas tentativas de se apropriar de forma 
  personalista – ou mesmo populista – da construção 
  de grandes obras seria uma característica da cultura política 
  brasileira. “Essa é uma maneira dos estados afirmarem a sua própria 
  potência política, mostrando-se capazes de realizar grandes obras 
  de engenharia. A associação entre grandes obras e poder político 
  é muito antiga, podendo remontar a momentos diferentes: desde o Egito 
  Antigo, o Império Romano até as igrejas renascentistas. O Brasil 
  não seria uma exceção a essa regra”, avalia Gustavo 
  Lins Ribeiro.
 O projeto de transposição integra um conjunto extenso de grandes 
  obras de infra-estrutura previstas no Plano Plurianual Federal (2004-2007) intitulado 
  “Um Brasil para todos: crescimento sustentável, emprego e inclusão 
  social”. O plano propõe o desenvolvimento e a redução 
  das disparidades regionais. Mas sob esse discurso parece haver outro objetivo: 
  o aumento da competitividade internacional e a integração econômica 
  do país junto aos mercados internacionais. Para tanto, basta observar 
  que, dentre as porções do território brasileiro que receberam 
  e continuam a receber investimentos do governo federal em grandes projetos de 
  intervenção em rios, além do Nordeste, está a região 
  amazônica, na qual, historicamente, interesses econômicos envolvendo 
  a produção de energia foram contemplados com a construção 
  de usinas hidrelétricas de grande porte. Agora, 
  um novo grupo de interesse surge no cenário: o agronegócio, cada 
  vez mais empenhado no escoamento da soja e nos projetos de construção 
  e ampliação das hidrovias.
 O avanço sobre a AmazôniaO setor enérgico sempre deteve muito poder na disputa pelo uso da água 
  na Amazônia. O caso mais emblemático é o da usina hidrelétrica 
  de Tucuruí, construída no Rio Tocantins, no estado do Pará. 
  A construção de Tucuruí antecede a legislação 
  que exige, a partir de 1986, a realização de estudos de impacto 
  ambiental e, por isso, as decisões que envolveram a construção 
  da obra foram tomadas a partir dos interesses estritos das empreiteiras, do 
  exército e de empresas transnacionais. Os reservatórios da usina 
  foram enchidos em 1984, causando graves impactos socioambientais na região.
 A produção de energia de Tucuruí destina-se, quase que 
  integralmente, às chamadas indústrias eletro-intensivas, dentre 
  as quais se destacam as indústrias de alumínio. A Companhia Vale 
  do Rio Doce, por exemplo, administra as indústrias Valesul, MRN, Alunorte 
  e Albras – essas e outras indústrias da região são 
  abastecidas por Tucuruí e recebem subsídios públicos da 
  ordem de 200 milhões de dólares anuais, no valor da energia fornecida. Mas um novo interesse entra em jogo, a partir, principalmente, 
  do final dos anos 1990: o escoamento da soja e, com ela, os projetos de construção 
  e ampliação das hidrovias. Segundo os geógrafos Ricardo 
  Castillo e Vitor Vencovsky, em artigo 
  publicado na ComCiência, as hidrovias são as principais 
  obras a constituírem os chamados eixos de integração que 
  privilegiam as regiões produtoras de commodities, buscando ligá-las 
  aos mercados internacionais. Empresas como Ceval, Cargill, Sadia e Perdigão 
  são as grandes beneficiárias. A proposta de construção e ampliação 
  das hidrovias está presente tanto no Plano Plurianual do governo Lula 
  quanto na Iniciativa de Integração de Infra-estrutura Regional 
  Sul-Americana (IIRSA), 
  acordo formado no ano de 2000 entre os países da América do Sul 
  para a integração e o desenvolvimento da região. Visando 
  o escoamento da soja produzida no Brasil, entre as principais obras previstas 
  está a retomada do projeto da hidrovia Paraná-Paraguai, a hidrovia 
  do Rio Madeira e a hidrovia Araguaia-Tocantins. Vários movimentos sociais 
  e organizações não-governamentais vêm alertando para 
  os possíveis danos socioambientais que esse conjunto de obras poderá 
  trazer para a região amazônica. Licenciamento ambiental: uma arena de disputasO atraso no licenciamento ambiental, que é a última etapa no processo 
  de viabilização de grandes obras em rios no Brasil, é proposital, 
  segundo a cientista social Chélen Fischer de Lemos. A construção 
  de uma grande obra, como uma hidrelétrica ou uma transposição 
  de um rio, demanda vários anos e as análises e os cálculos 
  são feitos com antecedência. Seria possível, portanto, informar 
  as pessoas e começar a fazer os levantamentos socioambientais nesse mesmo 
  período. “O problema é que, quando se quer fazer um investimento, 
  a idéia é atrair o capital e, no Brasil, o licenciamento ambiental 
  tende ainda a ser visto como um entrave econômico que impede o desenvolvimento 
  do país”, afirma Lemos.
 Mesmo sendo iniciado tardiamente, o licenciamento ambiental, ainda é 
  um importante processo político. “Durante o processo de licenciamento, 
  o período que antecede a licença prévia, no qual a análise 
  do Estudo e do Relatório de Impactos Ambientais (EIA-RIMA) deve ser discutida, 
  ainda existe alguma margem de manobra, alguma pressão política 
  pode ser feita. Depois disso, não existe fórum. A obra continua, 
  o empreendedor irá obter a licença de instalação 
  e de operação mas as comunidades locais interessadas, por exemplo, 
  não terão nenhuma garantia daquilo que for acordado depois da 
  obtenção da licença prévia pela empresa privada”, 
  afirma Chélen. Nesse contexto é que, durante o processo de licenciamento ambiental, 
  ganham relevância as audiências públicas. De acordo com Instituto 
  Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), as 
  audiências seriam o espaço no qual o conteúdo do estudo 
  e relatório ambientais devem ser apresentados e debatidos juntamente 
  com todos os interessados, esclarecendo-se dúvidas e recolhendo-se sugestões. Mas as audiências públicas despertam polêmica justamente 
  por serem o espaço no qual as disputas em torno das grandes obras se 
  concretizam. Em alguns casos, como no processo mais recente de licenciamento 
  ambiental da transposição das águas do Rio São Francisco, 
  os movimentos sociais vêm criticando a convocação de audiências 
  públicas pelo governo federal sem que tenha havido a divulgação 
  do EIA-Rima, necessária para que a sociedade civil possa participar efetivamente 
  do debate. Os movimentos sociais presentes nas últimas audiências 
  públicas organizadas pelo Ibama, em Belo Horizonte e Salvador, acreditam 
  que elas sejam uma estratégia do governo federal para conferir legalidade 
  ao processo de licenciamento e poder afirmar que houve consulta pública. 
 O descaso com o processo de licenciamento ambiental, no caso da transposição 
  das águas do Rio São Francisco, também se evidencia no 
  fato de o governo federal já ter anunciado que dará início 
  ao processo de licitação das obras selecionando as empreiteiras 
  e escolhendo os fornecedores das máquinas e equipamentos necessários 
  – sem que o processo de licenciamento ambiental tenha sido concluído. Para Chélen Fischer de Lemos, existe ainda, de modo geral, um outro 
  problema grave no processo de licenciamento ambiental: o empreendedor é 
  quem contrata a empresa que irá fazer o estudo de impacto ambiental. 
  A empresa, por isso, tende a deixar o interesse público em segundo plano, 
  em nome da lealdade ao interesse do empreendedor que a contratou. “As 
  empresas tendem a viabilizar o empreendimento, mesmo que ele não seja 
  viável do ponto de vista socioambiental”, afirma Lemos. Na opinião da cientista social, uma solução possível 
  seria a instituição de um fundo público para estudos ambientais 
  a partir do qual a empresa contratada deveria prestar contas a algum tipo de 
  conselho, no qual estariam presentes o órgão ambiental, o empreendedor 
  e as comunidades interessadas. É preciso destacar a importância política 
  dos movimentos sociais e das organizações 
  não-governamentais que vêm se posicionando contra as grandes intervenções 
  em rios e questionando o modelo de desenvolvimento adotado pelo governo. A legislação 
  ambiental vem também propiciando contornos mais democráticos aos 
  processos de viabilização de grandes obras. Mas o poder decisório 
  da sociedade civil ainda hoje é comprometido em nome de interesses estritamente 
  econômicos de indústrias, empreiteiras e outros grupos interessados 
  na utilização da água como negócio. Barra Grande: um descaso socioambiental 
  recenteO caso mais recente no qual todos esses problemas envolvendo o processo de licenciamento 
  ambiental se concretizam é o da usina hidrelétrica de Barra Grande.
 A hidrelétrica foi construída na divisa entre os estados de Santa 
  Catarina e Rio Grande do Sul. A autorização para a obra foi obtida 
  a partir de uma fraude, constatada pelo Ibama, no Estudo e Relatório 
  de Impacto Ambiental (EIA-Rima). Realizado pela empresa Engevix Engenharia a 
  pedido do consórcio Baesa – formado pelos grupos Votorantim, Camargo 
  Corrêa, Bradesco, Alcoa e CPFL – o estudo ambiental omitiu a existência 
  de cerca de seis mil hectares de mata de araucária, característica 
  da Mata Atlântica na região sul. Com base nesse documento, foi 
  concedida a licença prévia para a construção da 
  obra, iniciada em 2001. 
 Dois anos depois, quando 95% da usina já estava concluída, inclusive 
  a barragem de 185 metros, o Ibama constatou a omissão no estudo ambiental. 
  Além da ameaça de destruição da Mata Atlântica, 
  que corre risco de extinção e é protegida por lei, a usina 
  de Barra Grande deslocará cerca de 1.500 pequenos proprietários 
  rurais.
 Desde então, a usina vem sendo embargada por liminares judiciais e o 
  Ministério das Minas e Energia, Ibama, Baesa, Ministério Público 
  e Advogacia Geral da União negociam uma solução para que 
  a usina entre em funcionamento. Em setembro de 2004, o consórcio Baesa 
  assinou um termo de ajustamento de conduta no qual foram definidas compensações 
  ambientais tais como um banco de germoplasma das espécies encontradas 
  no local a ser inundado e a compra de uma área de floresta nativa, para 
  fins de conservação, de dimensão equivalente a da área 
  que deve ser alagada. “O governo federal, em vez de penalizar quem 
  cometeu a fraude, busca resolver o problema através de um acordo para 
  liberar a obra”, afirma Marco Antônio Trierveler, um dos coordenadores 
  do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que vem promovendo uma série 
  de manifestações na região e reivindica o cancelamento 
  da operação da usina. A Rede de Organizações Não-Governamentais 
  da Mata Atlântica e o MAB, dentre outros movimentos sociais, estão 
  acampados na região para impedir que a usina entre em operação. (CC) |