Barra de navegação do site

Página inicial Carta ao Leitor Reportagens Notícias Entrevistas Resenhas Radar da Ciência Links Opinião Observatório da Imprensa Busca Cadastro Reportagens

O olhar de um antropólogo sobre a gestão pública da água como um bem econômico no Brasil

Carlos José Saldanha Machado

Nesses tempos de mudanças e futuro incerto, a administração democrática de um bem de uso comum do povo, a água, está no centro de nossas inquietações e perplexidades diante dos rumos da modernização brasileira no cenário de um mundo globalizado. Pelo fato da água ter se tornado um elemento natural ameaçado em termos de qualidade e quantidade, os estados-membros da federação e a União passaram, estão, a discutir e fundamentar seus respectivos aparatos legais e institucionais sobre recursos hídricos, isto é, a água doce superficial e subterrânea destinada a usos, e a redefinir suas políticas para o setor ambiental, em ritmos diferenciados, tendo como princípios básicos, expressos na Lei federal nº 9.433/97, o gerenciamento por bacia hidrográfica, a água como bem econômico, a descentralização, a integração e a participação dos usuários no processo de gestão de recursos hídricos [01], [02], [03].

Não obstante, para que a gestão pública das águas como recursos hídricos – isto é, a água na condição de bem econômico – seja instrumento de implementação do desenvolvimento sustentável, é necessário atentar para algumas fragilidades a serem vencidas a fim de que aqueles princípios não se tornem mera figura de retórica e ocorra uma maior representatividade e efetiva participação dos atores que constituem a sociedade em entidades de gestão colegiada como os Comitês de Bacias Hidrográficas.

Em primeiro lugar, é relevante destacar que o princípio da gestão colegiada, integrada, descentralizada e participativa no Brasil é fundamental para a compreensão da lei como instrumento de mudança de paradigma de política pública. Contudo, o princípio em questão dá motivo a alguns conflitos entre sociedade civil organizada [04] e poder público, uma vez que há uma cultura administrativa de forte tradição centralizadora e tecnocrática, ainda bastante arraigada no Brasil. Mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha instituído um pacto federativo entre União, estados e municípios através do princípio de subsidiaridade [05], a cultura do poder centralizado é uma herança da fundação da República, transmitida de geração a geração, que tem condicionado a evolução da política brasileira. No caso dos recursos hídricos, essa cultura sobrevive através de toda uma geração de especialistas das mais variadas formações que ocupam cargos decisórios em órgãos do Poder Público, detentores de conhecimentos sobre as bacias hidrográficas e agindo com base em extensas redes de relações sócio-profissionais. Trata-se de funcionários públicos que compartilham a crença, segundo a qual os técnicos são os que sabem o que é melhor para todos. Esses funcionários não entendem que as ciências e as tecnologias não devem tutelar a democracia direta na gestão integrada das águas, pois nenhum desenvolvimento sustentável poderá existir sem a participação ampliada das populações envolvidas. A gestão integrada, descentralizada e participativa de uma bacia hidrográfica é um assunto sério demais para ficar nas mãos tão somente dos técnicos do poder público. Além disso, como nos tem ensinado as ciências sociais em geral, a antropologia e a sociologia, em particular, toda e qualquer decisão tomada com base em critérios técnicos serve a algum propósito político, quer se tenha ou não consciência disso. Tal característica deve-se ao fato de que todo e qualquer técnico, na condição de ser humano, traz dentro de si os valores políticos, éticos, morais, hábitos profissionais da sociedade e da cultura da qual faz parte, valores esses que norteiam suas ações individuais. Uma pessoa habitua-se a tal ponto com certas identidades que, mesmo quando sua situação social muda, ela encontra dificuldade para acompanhar as novas exigências.

Em segundo lugar, a lógica da gestão territorial participativa e descentralizada contida na Lei nº 9.433/97, lei que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, não pode esconder o fato de que o termo ‘participação’ acomoda-se a diferentes interpretações, já que se pode participar ou tomar parte em alguma coisa, de formas diferentes, que podem variar da condição de simples espectador, mais ou menos marginal, à de protagonista de destaque. Assim, a pretendida e esperada participação da sociedade, dos usuários e das comunidades em geral, está formalmente incluída na Lei, garantida por meio de sua representação eqüitativa nos Comitês e demais organismos de bacia hidrográfica, assim como nos Conselhos estaduais e, nacional.

Mas a participação efetiva e material da sociedade também deve ser garantida através de outros mecanismos, que valorizem as histórias particulares de cada localidade e as diversas contribuições das populações envolvidas, incorporando-as aos planos diretores e ao enquadramento dos cursos de água. Não se trata apenas de apresentar à população um plano diretor de bacia, elaborado no espaço de trabalho fechado do corpo técnico-científico do poder público, objetivando validá-lo, mas de garantir a efetiva participação da população local na consolidação e materialização de um pacto através da prática política da gestão colegiada e integrada com negociação sociotécnica [06]. A base empírica do conhecimento local da população sobre os corpos d’água de uma bacia hidrográfica deve ser valorizada, pois possui um valor socioambiental inigualável. Além disso, os cursos d’água fazem parte da história do indivíduo, da família e da comunidade que integram essa população, ganhando sentidos simbólicos que ocupam uma parte importante de seu patrimônio cultural.

A defesa, portanto, da participação não envolve apenas princípio democrático de sentido humanista, filosófico (quando não degenera para o demagógico ou puramente retórico), mas é também parte importante na construção de uma nova forma de encarar a gestão de recursos públicos caros e escassos. Envolve o pressuposto de que uma pessoa envolvida na tomada de uma decisão sentir-se-á comprometida e procurará vê-la cumprida, será agente da implantação e não paciente. De fato, a aceitação é maior quando existe participação em todo o processo de gestão de um projeto ou de uma política, e quando o participante faz sua própria escolha. Nos comitês de bacias hidrográficas, a população envolvida é gestora e deve poder reconhecer como propriamente suas as decisões tomadas, que resultam num plano diretor ou no enquadramento de um rio, ou pelo menos deve estar convicta de que elas são a expressão de um consenso possível, resultando de uma negociação sociotécnica em que suas aspirações foram consideradas.

Em terceiro lugar, é imprescindível a participação ativa dos municípios nos comitês de bacias hidrográficas, porque cabe a eles, dentro da competência administrativa comum que lhe é reservada, junto à União, aos estados e ao Distrito Federal (Constituição Federal, 23, VI), o exercício de polícia das águas, inclusive em relação aos bens federais e estaduais. De fato, isso os credencia, nos termos de sua Lei Orgânica e de Posturas, a estabelecer medidas restritivas ou de controle para preservar, por exemplo, as águas de um lago, em seu território, ou obrigar os proprietários de um “lava-a-jato” a não desperdiçarem água tratada, fazendo com que se restrinjam, para esse fim, à utilização de poços artesanais. No exercício do poder de polícia, o município pode exigir taxa, modalidade de receita tributária, como inscrita na Constituição Federal (art. 145, II, e § 2o), para licenciar ou inibir certos usos das águas e até multar infratores por seu mau uso, segundo os interesses comuns urbanos ou metropolitanos.

Em quarto lugar, devemos frisar que as novas idéias são importantes para as mudanças sociais ou políticas. A política de recursos hídricos suscita certamente novas idéias ou, pelo menos, uma re-interpretação de antigas idéias ou de idéias velhas de algumas décadas. Mas é importante nunca esquecer que as preocupações dos cidadãos com o meio ambiente sempre foram instáveis, variadas e ambíguas. Alcançaram raramente a intensidade necessária para forçar uma mudança radical das políticas, exceto quando os cidadãos agem de forma organizada e melhor qualificada para o exercício da cidadania ambiental. Além disso, as preocupações expressas pelos cidadãos ultrapassam freqüentemente suas preocupações reais, como testemunham suas escolhas de consumo, de moradia ou de transporte. Pode-se esperar que a emergência de uma crise ambiental, como a escassez de água nesse início de século, um evento cíclico com escala temporal alternada, provoque reações muito pontuais, e não uma reorientação fundamental do pensamento ou do comportamento.

O fato de que as novas idéias sobre gestão de recursos hídricos não tenham ainda transformado, substantivamente, a administração pública da maioria dos estados e municípios da federação ou os comportamentos individuais não significa, no entanto, que elas sejam ineficazes. Seu efeito medir-se-á ao longo das próximas décadas, e não em anos, dependendo das mudanças que venham a ocorrer na forma como governantes e parlamentares tornaram-se donos do poder desde a época da Colônia, mantendo com os cidadãos, relações pessoais de favor, clientela e tutela, caracterizando a indistinção entre o público e o privado que organiza, desde então, o aparelho do Estado no Brasil.

Esperar que tais intervenções marquem, ocasionalmente, mudanças de comportamentos em grande escala é, talvez, ilusório, fazendo com que se ignore nossa responsabilidade coletiva em produzir mudanças mais realistas. Grandes mudanças sociais ocorrem freqüentemente, mas, à exceção das revoluções, estendem-se sobre décadas ou períodos mais longos. Além disso, essas mudanças não se originam unicamente das políticas públicas, e não ocorrem necessariamente por causa delas. Tais políticas podem, certamente, desempenhar um papel relevante, mas não podem, sozinhas, forçar uma mudança social. O que elas podem, na verdade, é ajudar na interação das forças em jogo. Numerosos e distintos tipos de mudanças podem agir entre si. Nesse sentido, mesmo as mudanças individuais, que parecem inexpressivas, podem mostrar-se bastante úteis, uma vez reagrupadas.

Em quinto lugar, na atual Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n. 9433/97) a água é um bem econômico cujo valor será determinado pela interação entre a demanda e a oferta de água de determinado tipo, em determinada localidade e em determinado período de tempo. Nesse sentido, uma forma democrática de determinação do valor da cobrança pelo uso da água de uma bacia hidrográfica é a pesquisa sobre a disposição a pagar do consumidor. Ela pode ser obtida por métodos diretos e indiretos. O método direto, também conhecido como método de avaliação contingente, consiste na opção de perguntar explicitamente às pessoas, por meio de pesquisas amostrais, o quanto elas estariam dispostas a pagar pelo bem. Os métodos indiretos usam os preços relacionados ao comportamento dos consumidores em mercados recorrentes. Dentre os métodos indiretos, destacam-se dois: o método dos índices hedônicos e o método de custos de viagem. O primeiro, procura relacionar os diferenciais de preços de um bem às características qualitativas do mesmo, sendo uma destas características aquela que se pretende valorar. O segundo, por sua vez, atribui um preço ao bem de acordo com o custo que é assumido pelas pessoas para que o bem em questão seja usufruído. Em ambos os casos, são utilizados procedimentos estatísticos tanto para o estabelecimento da relação preço-qualidade ou preço-custo, quanto para a obtenção do preço médio. A idéia básica da pesquisa é obter o montante que as pessoas estariam dispostas a pagar por um bem ou serviço para o qual não existe um mercado. É importante salientar que no contexto da gestão de bacias hidrográficas, o bem não seria a água, mas a garantia do abastecimento, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, isto equivale dizer que o objetivo é estimar quanto as pessoas estariam dispostas a pagar para que o objetivo de otimização de disponibilidade de recursos hídricos, em termos de quantidade e qualidade, seja alcançado, além da preservação ambiental.

Na pesquisa de disposição a pagar, dentro de um estudo para a implementação da gestão de bacias hidrográficas e da cobrança pelo uso da água, deveria ser considerado que os recursos obtidos através dessa cobrança devem financiar parte dos investimentos, e que esses recursos necessariamente serão retirados das famílias que terão como contrapartida os benefícios diretos ou indiretos dos investimentos realizados. De um modo geral pode-se apontar como principais benefícios para as famílias a preservação ambiental da bacia, a melhoria da qualidade da água e a garantia da disponibilidade dos recursos no futuro. Deste modo, a questão que se coloca é saber qual o valor atribuído pelas famílias a esses benefícios, e não o valor da água em si. Colocado dessa forma, a disposição a pagar dependerá principalmente de como cada indivíduo avalia esses benefícios, o que por sua vez pode depender da experiência pessoal de cada um com relação a esses.

As pesquisas de disposição a pagar têm aplicação como alternativa para a obtenção do preço médio que poderia ser pago pelos consumidores finais, sendo inaplicável para se determinar o preço médio que se pretende seja pago pelos usuários que fornecem serviços relacionados aos recursos hídricos. Nesse último caso, qualquer que seja o preço cobrado esse será repassado aos consumidores finais. Sob esse ponto de vista, a pesquisa de disposição a pagar se configuraria mais como um referencial a indicar qual o repasse aceito pelas pessoas. Dessa forma, torna-se irrelevante se as famílias pagarão direta ou indiretamente pelo uso da água, ou seja, se o preço estabelecido para o uso da água será cobrado diretamente do consumidor final ou da empresa de abastecimento. Desde que o indivíduo seja informado de que o adicional pago será utilizado para financiar parte dos investimentos que garantirão que se alcance determinado objetivo, ele deve ser indiferente entre pagar direta ou indiretamente.

Portanto, devido a sua natureza dinâmica, a implementação da cobrança torna-se uma tarefa a ser executa cautelosamente. Para a implementação eficiente e eficaz de um sistema de cobrança é preciso a elaboração de uma estratégia e de um plano que leve em consideração duas premissas básicas. Primeiro, a eficiência do sistema depende da participação dos agentes sociais envolvidos na gestão, exigindo uma articulação política-institucional voltada para a busca do consenso, articulação esta que deve ser empreendida junto ao poder público e ao setor privado da sociedade. Segundo, para que a integração dos diversos setores envolvidos no gerenciamento dos recursos hídricos seja efetiva, é indispensável que sejam considerados os aspectos institucionais e administrativos que possuem interfaces com o processo de efetivação do modelo de gestão. Portanto, um plano de implantação da cobrança deve considerar diferentes etapas que contemplem os diferentes objetivos e metas de curto, médio e longo prazo.

Em sexto lugar, qualquer lei nova implica em duas mudanças que ultrapassam, na maioria das vezes, os limites da nossa capacidade de apreensão da realidade imediata: introduzir modelos de conduta, que antes não existiam, modificar as relações dos indivíduos entre si e entre esses e o Estado. Essa transformação representa um conjunto de perturbações que pode chegar a ser muito violento. Daí a necessidade de um período de adaptação para prover, ajustar e até renunciar, pois o legislador pode verificar que o que pensou como realizável é, na prática, impossível, ou até produzir resultados absolutamente contrários aos esperados. Não se pode esquecer que a lei é ditada para reger no futuro, porém sob as condicionantes da realidade de seu tempo, devido ao fato de que a evolução ambiental, social, econômica e tecnológica produzem continuamente mudanças e situações novas que não podiam ter sido imaginadas pelo legislador, mas que, apesar de tudo, necessitam de regulação, caso contrário resultaria em anarquia e insegurança.

Finalmente, sem deixar de reconhecer o grande esmero das autoridades oficiais, tanto federal, quanto estaduais, na elaboração da Lei nº 9.433/97, é seguro afirmar que, à medida que passe o tempo, aparecerão – um depois do outro – distintos problemas, sendo alguns deles já abordados nos Projetos de Lei n. 1.616 e 4.147 que se encontram, há alguns anos, em tramitação no congresso nacional, pois se trata de uma obra humana e, como tal, imperfeita, embora, também pelo mesmo fato de ser humana, aperfeiçoável. Isso quer significar que, seguindo a nova Lei, é aguardado um autêntico trabalho de gestão: desenvolvê-lo em todos os seus alcances e conseqüências, interpretá-lo, eliminar as contradições, preencher os vazios, afastar suas incoerências; em suma, fazer com que chegue, dentro do possível, ao ideal de uma clareza absoluta, de maneira que todos os atores da dinâmica territorial de uma bacia hidrográfica possam conhecer e discutir as “leis do jogo” do delicadíssimo ato de tratar de um bem de uso comum do povo, a água.

Carlos José Saldanha Machado é doutor em antropologia social pela Sorbonne, pesquisador do Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz e Membro do Comitê Local de Organização do 4º Congresso Mundial de Centros de Ciências – abril 2005.

Notas
[01] MACHADO, C. J. S (Org.). Gestão de águas doces, Rio de Janeiro: Interciência, 2004.

[02] ________, Meandros do meio ambiente. Vol 1: Os recursos hídricos no direito, na política, nos centros urbanos e na agricultura. Rio de Janeiro: E-Papers, 2004.

[03] ________, Meandros do meio ambiente. Vol 2: Os recursos hídricos na economia e no cenário internacional. Rio de Janeiro: E-Papers, 2004.

[04] Entendo por sociedade civil organizada o setor da organização social desvinculado dos interesses econômicos dos mais diversos grupos e entidades públicas e privadas, que incorpora questões e problemáticas que envolvem direitos humanos e sociais os mais diversos, concepções normativas, valorativas e técnico-científicas amplas e, com freqüência, divergentes, assim como causas de interesses humanos gerais, como é o caso da defesa do meio ambiente e da ecologia. Os partidos políticos não fazem parte da sociedade civil organizada por estarem voltados para à conquista e manutenção do poder político strictu sensu, sendo componentes naturais da chamada sociedade política – ou conjunto das instituições que conformam e organizam a vida política da sociedade –, tendo no Estado o seu referencial básico, ou centro estratégico.

[05] No direito administrativo, esse princípio consiste na orientação de que tudo quanto pode ser decidido em níveis hierárquicos mais baixos de governo, não será resolvido por níveis mais altos dessa hierarquia. Em outras palavras, o que pode ser decidido no âmbito de governos regionais, e mesmo locais, não deve ser tratado na capital federal ou nas capitais dos estados.

[06] MACHADO, C. J. S. “Mudanças conceituais na administração pública do meio ambiente”, Ciência & Cultura, v. 55, n. 4, pp. 24-26, 2003.

Versão para impressão

Anterior Proxima

Atualizado em 10/02/2005

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2004
SBPC/Labjor
Brasil