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A nova causalidade

Mário Novello

No final do século XX os físicos elaboraram um dos resultados mais inesperados, relacionado à estrutura causal do mundo, ligado a processos não lineares. Embora neste artigo eu me limitarei a examinar uns poucos aspectos envolvendo a modificação sobre a estrutura causal produzida por processos não lineares que envolvem somente fenômenos eletromagnéticos, essas alterações sobre a nova causalidade são bastante gerais e ocorrem para todos os campos que possuem auto-interação. A análise de que tratarei tem uma história longa e não constitui uma novidade formal. Entretanto, ela foi esquecida por muito tempo e suas consequências experimentais não foram suficientemente exploradas. Para entender do que se trata eu farei um breve resumo da questão causal desde os primórdios da relatividade de Poincaré e Einstein bem como sua última grande modificação formal, devido à gravitação, na teoria da relatividade geral.

A descoberta da existência de uma velocidade máxima de propagação, associada a fenômenos luminosos modificou profundamente, no começo do século XX, o modo de compreensão da estrutura causal do mundo. De um modo simplista, o universo foi separado – em cada ponto arbitrário O do espaço-tempo – por um cone matemático, identificado com o modo de propagação da luz, em duas regiões: eventos que estão dentro desse cone e os que estão fora. Os pontos de dentro representam eventos causalmente conectados a partir da origem O; pontos que estão fora do cone representam processos que não estão causalmente relacionados. A luz, representada por seus grãos de energia a altas frequências chamados fótons, se movimenta precisamente por sobre esse cone que, graças a isso, é chamado de cone-de-luz.

Desse modo, para cada observador, existe sempre uma separação causal caracterizada precisamente por esse cone e que determina os limites de sua observabilidade do mundo, separando a região que não pode ser observada por meio da criação de um horizonte. Processos que ocorrem para além de meu horizonte não deveriam fazer parte de minha descrição causal do mundo, posto que inobserváveis. A relatividade geral ampliou esse processo fazendo depender a estrutura dos horizontes das propriedades e intensidades dos campos gravitacionais. Em verdade, essa passagem da relatividade especial para a geral, pela incorporação da força gravitacional, não produziu uma mudança radical no modo de considerar a causalidade, mas tão somente introduziu uma dependência dessa causalidade com as características de cada particular campo de gravitação. Isso se deveu ao fato de a causalidade continar sendo descrita a partir da separação dos fenômenos do mundo induzida pela propagação da luz. O fato fundamental para a manutenção dessa estrutura causal extendida foi o modo pelo qual foram descritos os processos eletromagnéticos na presença de campos gravitacionais. Assim, mesmo a possibilidade de existirem horizontes com propriedades bastante distintas e até mesmo inesperadas, dependentes das propriedades da gravitação – como um buraco negro, por exemplo – sua estrutura formal e conseqüentemente sua descrição, não sofreram uma grande modificação.

Durante muito tempo, praticamente ao longo de todo o século XX, essa formulação da causalidade dominou o pensamento científico. As diversas análises que foram feitas sobre a questão causal tratavam as alterações produzidas pela relatividade geral como a última importante modificação que a física havia produzido. Entretanto, uma profunda mudança nessa estruturação causal apareceu quando – e por diversas razões – os físicos foram envolvidos na análise de processos eletromagnéticos não-lineares. Inesperadamente, vinda de um território aparentemente bem conhecido, essa modificação alterou uma vez mais a formulação da descrição causal. Como foi isso possível e qual foi o mecanismo que permitiu essa nova revolução? Para responder a essas questões iremos comparar os três momentos de re-estruturação causal acima apontados.

Em um primeiro momento, a descoberta da constância da velocidade da luz para todos os observadores foi entendida como produzindo uma modificação que pode ser descrita através de uma mudança na própria geometria do mundo. Passou-se então, no começo do século XX, de uma geometria absoluta, única e universal de embasamento euclideano, para uma particular configuração de uma geometria não-euclideana a que se convencionou chamar geometria de Minkowski. A propriedade mais notável e totalmente fora de nossa intuição dessa nova geometria pode ser entendida por uma simples comparação entre elas. Sabemos, até mesmo por experiência cotidiana de nossos corpos, que na geometria euclidiana, para que a distância entre dois pontos seja nula é necessário que esses pontos coincidam, se reduzam a um só. Uma tal propriedade parece tão natural, que temos até dificuldade em conceber como isso poderia ser diferente. Entretanto, foi precisamente negando essa propriedade que se estabeleceu a geometria de Minkowski, permitindo a anulação da distância entre dois pontos sem que eles sejam identificados, sem que se reduzam a um só. Como é isso possível? O modo mais simples de entender essa propriedade tão afastada de nosso cotidiano, é perceber que ao se estabelecer a nova geometria, começou-se por aumentar o número de dimensões a ela associada, incorporando a dimensão temporal na descrição geométrica do mundo[1] . Assim, foi possível estabelecer que uma distância no mundo deveria ser entendida como uma distância espaço-temporal e não somente do tipo espaço como tradicionalmente a física havia nos convencido. Mais notável ainda, descobriu-se que aquilo que chamamos caminho nulo na nova geometria – isto é, os pontos de distância nula – consiste em uma estrutura contínua (de pontos) caracterizados precisamente pelo movimento da luz. Isto é, os possíveis caminhos nulos na geometria de Minkowski devem ser identificados com os caminhos da luz. Assim, em cada ponto do espaço-tempo haveria definido, em potência, um cone-de-luz que prescreve os caminhos por onde a luz pode se propagar.

Uma tal estrutura que produziu a modificação do mundo newtoniano para o mundo da relatividade de Poincaré e Einstein, deixava de lado – por razões técnicas que não comentarei aqui – a força mais universal existente: a gravitação. Quando, ao final da segunda década do século XX, essa força foi introduzida em uma descrição mais realista e certamente mais completa do mundo, o resultado foi avassalador. Descobriu-se que aquela geometria de Minkowski constitui somente uma configuração bastante particular e que na presença de campos gravitacionais ela deve ser substituída por uma geometria mais geral, descoberta pelo matemático Riemann no século XIX.

Como consequência dessa nova alteração na geometria do mundo, os caminhos possíveis para os fótons foram uma vez mais modificados e, conseqüentemente, a estrutura causal. Os fótons seguiriam caminhos do tipo nulo como antes, mas esses caminhos seriam alterados pela particular configuração da geometria gerada pelo campo gravitacional. Tudo se passa como se, ao invés de um cone formal, único, comum para todos os pontos como na geometria de Minkowski, estivesse embutida no espaço-tempo uma estrutura na qual esses cones são deformados em cada ponto pela presença universal do campo gravitacional. Essa segunda mudança na velocidade da luz provocou, de imediato, uma nova estrutura causal. É preciso que se diga no entanto, que essa mudança foi suave, isto é, não produziu nenhuma novidade escandalosa, mas somente a possibilidade da dependência dos horizontes de informação com cada configuração do campo gravitacional.

Isso dito, estamos preparados para entender o terceiro momento e a nova revolução causal que está em marcha a partir do aparecimento de processos não-lineares no eletromagnetismo. Na virada do século XIX para o XX, a formulação de Maxwell do eletromagnetismo serviu de base e sustentação da relatividade de Poincaré e Einstein. Ao longo de todo o século XX essa descrição das forças eletromagnéticas produziu uma enorme modificação na sociedade com o controle da propagação das ondas eletromagnéticas. O notável sucesso dessa teoria foi possível graças em parte à facilidade do tratamento matemático associado às equações que descreviam o eletromagnetismo. Em particular isso se deveu à característica dessa força de ser linear, o que permite associar soluções dessas equações de um modo direto: dadas duas soluções independentes é possível encontrar uma nova solução pela soma dessas duas. Essa propriedade está, sem dúvida, na base de seu enorme sucesso e do largo alcance de sua utilização. Entretanto, em vários momentos ao longo do século XX essa linearidade foi posta em questão. Isto é, os físicos começaram a examinar se essa linearidade não seria somente uma propriedade circunstancial – embora bastante geral – de alguns processos da interação eletromagnética. Isto é: em todas as circunstâncias, em qualquer situação – seja de natureza clássica ou quântica, seja para situações de campos muitíssimos fortes ou não – essa linearidade se mantém como típica de todos os processos eletromagnéticos?

A resposta, dada por vários cientistas dos quais em particular devemos citar M. Born, L. Infeld e W. Heisenberg, foi negativa. Em certas circunstâncias – por exemplo, devido a propriedades da natureza quântica do campo eletromagnético – processos não lineares ocorrem. Esse resultado em si não é escandaloso. Entretanto, algumas de suas conseqüências o são. Dentre essas, a que nos interessa aqui, consiste na profunda alteração que fenômenos não lineares provocam na propagação do campo e conseqüentemente, em sua estrutura causal. O resultado desse exame mostra que, como consequência direta dessa não linearidade, os fótons se propagam como se houvera uma nova modificação da geometria do espaço-tempo, vista somente por esses fótons. Isto é, os fótons se movimentam em um cone nulo de uma geometria efetiva que só ele percebe. Tudo se passa como se a não linearidade produzisse uma inesperada alteração na geometria que não é experimentada por outros corpos materiais ou energéticos de qualquer outra espécie que não os fótons! Nessa geometria efetiva, o fóton se comporta como se ele estivesse na presença de um campo gravitacional fictício que curvaria o espaço-tempo. Dito de outro modo, a não linearidade produz a imitação de um campo gravitacional. Dessa forma, ao mesmo tempo em que uma nova estrutura causal se organiza, aparece uma novidade notável envolvendo essa relação entre a não linearidade dos fótons e um campo gravitacional fictício: podemos imaginar que certas configurações típicas da gravitação poderiam ser imitadas por configurações equivalentes envolvendo somente a força eletromagnética. Um exemplo consiste na possibilidade de produzir uma métrica efetiva que tivesse todas as características de um verdadeiro buraco negro, mas somente para fótons!

Assim, estranha e inesperadamente, pelo menos em relação à estrutura causal do mundo, o século XX termina de modo simbolicamente semelhante ao seu começo: com novidades sobre a estrutura causal do mundo que o reexame da propagação da luz provoca.

Mário Novello é pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – ICRA – BR/CBPF

Nota
[1] Em verdade, a estrutura da geometria não-euclidiana não depende do número de dimensões. No entanto, apresentá-la desse modo, associando-a a processos da física, tem a vantagem de permitir entendê-la intuitivamente.

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Atualizado em 10/03/2005

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