Saúde 
    indígena enfrenta entraves políticos
  A 
    preocupação em ter um sistema de saúde voltado exclusivamente 
    para indígenas no Brasil é recente. Data de 1999, quando a responsabilidade 
    deixou de ser da Fundação Nacional do Índio (Funai) para 
    ser da Fundação Nacional da Saúde (Funasa). A preocupação 
    com a saúde do índio passou a ser mais preventiva do que curativa 
    e voltada para as diferenças étnicas existentes no país 
    com a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas 
    (DSEI). Embora essa política tenha ampliado o acesso à saúde 
    no território nacional, seus progressos não impediram os altos 
    índices de mortalidade nas populações indígenas, 
    como ficou claro no recente episódio de mortes de crianças por 
    desnutrição em Mato Grosso do Sul, principalmente no município 
    de Dourados (MS).  
    
  
    
      | Litogravura de Rugendas do 
          século XIX  | 
    
      |  | 
    
      | O contato com os brancos introduziu 
          enfermidades nunca antes presentes em comunidades indígenas | 
  
  Divididos 
    em 34 territórios, definidos de acordo com termos técnicos e 
    étnico-demográficos, os DSEIs não coincidem, necessariamente, 
    com as fronteiras municipais existentes (veja 
    mapa). Os Distritos contam com conselhos, dos quais participam 
    representantes do governo, profissionais de saúde, usuários 
    e representantes de comunidades indígenas, que definem estratégias 
    e controle de execução de políticas de saúde. 
    Uma das metas é a busca pela humanização do tratamento 
    da saúde do índio e uma compreensão global desta no sentido 
    de prover condições mais dignas a essas populações.
  
    
      | Funasa | 
    
      |  | 
    
      | O 
          Brasil possui 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas 
          que ampliam o acesso do índio à saúde | 
  
  O 
    mapeamento dos grupos étnicos indígenas brasileiros ampliou 
    a cobertura de atendimento à saúde e também os investimentos 
    no setor. Mas, problemas na gestão têm deixado a comunidade indígena 
    preocupada, o que acabou fortalecendo o "Manifesto 
    de Abril". A exemplo do Abril Vermelho, organizado pelo Movimento 
    dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no ano passado, as populações 
    indígenas se organizaram para pressionar o governo federal a implementar 
    melhorias em inúmeros setores, inclusive o da saúde. O documento 
    foi apresentado no dia 31 de março, em Brasília.
  Entre 
    os acontecimentos recentes que impulsionaram a manifestação 
    está a mortandade de 17 crianças indígenas por desnutrição 
    no estado do Mato Grosso do Sul, a maior parte no município de Dourados, 
    da etnia Guarani-Kaiuá. Escolhido pela Funasa, em 2002, para abrigar 
    o Centro de Recuperação Nutricional, o caso de Dourados deflagrou 
    a gravidade e complexidade da questão da saúde no país. 
    Para melhorar a situação, não bastam medicamentos e acesso 
    a profissionais capacitados para evitar perdas, mas é preciso garantir 
    o acesso, prioritariamente, a terras. 
    Para Maria Luiza Garnelo, professora da Faculdade de Ciências da Saúde 
    da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o que existe é uma carência 
    de ações intersetoriais. “Não se consegue resolver 
    os problemas de saúde apenas com consultas, médicos e vacinas. 
    Existem outras ações estruturais importantes: a questão 
    da terra, alimentação, a geração de trabalho, 
    uma série de problemas que acometem as populações e que 
    incidem de uma forma pesada na sua saúde”, conclui.
  A 
    rigor, a mortalidade infantil por desnutrição na população 
    indígena já era conhecida de autoridades e profissionais de 
    saúde indígena. Os índices chegaram, em 2004, a uma média 
    de 47,48 mortes a cada mil nascimentos, de acordo com dados da Funasa. A média 
    nacional equivale a 29,6 por mil (Censo 2000). Alexandre Padilha, diretor 
    do Departamento de Saúde Indígena da Funasa, garante que o número 
    de óbitos, apesar de ainda alto, tem diminuído desde o início 
    da gestão Lula (veja gráfico 
     abaixo). Desde que foi inaugurado o Centro de Recuperação 
    Nutricional de Dourados em 2002, Padilha diz que também diminuíram 
    os índices de nova internação por causa de desnutrição, 
    após um ano de tratamento. Sessenta por cento das crianças que 
    recebiam alta em 2002 retornaram no primeiro ano; em 2003, foram 35%, e em 
    2004 apenas 10%. Os dados de mortalidade 
    infantil (a cada mil crianças menores de um ano) da Amazônia 
    Legal (Funasa), de 2002 a 2004, revelam que os índices variam enormemente 
    em cada Distrito Sanitário. Entre os casos mais sérios, estão 
    o do DSEI do Alto Rio Juruá (AC), com mortalidade em 2003 de 49,8 chegando 
    a 115,38 no ano seguinte; DSEI do Vale do Rio Javari (AM), com índices 
    de 111,1 em 2002, 150, 69 em 2003 e sem informações em 2004; 
    e o do Rio Tapajós (PA) que tinha índice de mortalidade igual 
    a 64,10 em 2003 e saltou para 101,85 um ano mais tarde. Entre os casos mais 
    otimistas estão os Distritos Sanitários Especiais Indígenas 
    Kayapó do Pará (PA), com 94,74 mortes infantis em 2003 e apenas 
    14,08 em 2004; o DSEI de Cuiabá (MT) reduzindo o índice de 15,9 
    em 2003 e zerando no ano seguinte; e o DSEI Alto Rio Negro (AM) que reduziu 
    seu índice de mortalidade infantil de 117,26 (2003) para 58,64 (2004).
  
  As 
    reclamações em relação à saúde estão 
    no cerne de uma transição política, iniciada no governo 
    atual. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso os recursos reservados 
    para a saúde eram repassados para organizações não-governamentais 
    que cuidam de questões indígenas, para que executassem as ações 
    necessárias. O Ministério da Saúde atual, porém, 
    iniciou um processo inverso, a que Maria Luiza Garnelo chama de restatização, 
    via edição da Portaria 
    70, que retoma as atribuições para os órgãos 
    do governo. Esse processo, ainda em andamento, tem demorado para se efetivar, 
    o que estaria causando prejuízos à saúde das comunidades 
    indígenas. De acordo com o coordenador geral da Coordenação 
    das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira 
    (Coiab), Jecinaldo Sateré-Mawé, embora o orçamento para 
    a saúde indígena tenha aumentado no governo atual, falta organização 
    entre os ministérios, principalmente nas questões relacionadas 
    à saúde, como educação e terra. 
  A 
    Coiab 
    divulgou comunicado em seu site, expressando preocupação 
    com os planos da Funasa de municipalização da saúde indígena, 
    temendo “a deterioração dos DSEIs e o acirramento das 
    perseguições às organizações indígenas”. 
    Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, segundo o coordenador, 
    representam um enorme avanço na política de saúde indígena. 
    Por outro lado, está o fato de a maioria dos prefeitos não darem 
    tratamento adequado para a questão da saúde do índio. 
    “Há uma completa discriminação contra populações 
    indígenas”, denuncia, justificando a inquietação 
    da Coiab. Ao contrário dos conselhos dos DSEIs, nos quais representantes 
    das populações indígenas participam das decisões 
    das políticas voltadas para eles, a população tem pouca 
    representatividade nos conselhos das prefeituras, que não têm 
    a responsabilidade de aplicar recursos nessas comunidades.
  A 
    Funasa, no entanto, acredita que a descentralização do sistema 
    é importante como forma de melhorar o atendimento das populações. 
    As mortes ocorridas em Dourados mostram a enorme demanda por serviços 
    descentralizados, pois o único Centro de Recuperação 
    Nutricional acaba recebendo crianças de inúmeros municípios 
    vizinhos.
  A 
    questão da municipalização da saúde indígena 
    ainda é uma discussão informal. O coordenador da Coiab espera 
    que, pela Coordenação ter sido parceira da Funasa, assim como 
    outras organizações indígenas, desde 1999, sejam convidados 
    a contribuir nessa e outras discussões. “Não somos radicalmente 
    contra a municipalização”, informa Sateré-Mawé, 
    “mas é preciso abrir essa discussão”. 
  Humanização 
    
    Padilha acredita que a humanização do sistema de saúde 
    indígena é peça-chave para melhorar esses índices. 
    Atualmente, os cuidados médicos mais severos são feitos no hospital 
    público mais próximo à aldeia. As diferenças alimentares, 
    a distância dos familiares e curandeiros, as mudanças de ambiente 
    e a própria condição de estar internado, acabam atropelando 
    as particularidades de cada etnia e comprometendo o sucesso do tratamento 
    médico. Em Dourados, por exemplo, muitas crianças em estado 
    grave de desnutrição tiveram seu tratamento interrompido pelos 
    familiares que, inseguros, preferiram tirá-las dos hospitais, o que 
    acabou resultando em morte. “Essas situações são 
    muito decorrentes de desinformação, ou dificuldade dos hospitais, 
    que estão atarefados demais para tentar um diálogo paciente 
    com as famílias [indígenas]; seus serviços são 
    voltados para a população geral e têm pouca flexibilidade 
    para acolher pessoas que tenham certos hábitos diferentes, o que desperta 
    rejeição”, diz a professora da Ufam.
  Para 
    tentar minimizar a inadequação dos espaços, a Funasa 
    tem apostado nas Casas de Saúde do Índio (Casai), no selo Hospital 
    Amigo do Índio e na capacitação de profissionais. As 
    Casai, embora não sejam unidades hospitalares, servem para abrigar 
    pacientes e acompanhantes, oferecendo alimentação e espaços 
    mais adequados às etnias, que tornam a permanência no hospital 
    mais tranqüila. São 53 Casais construídas com mais uma 
    a ser concluída no segundo semestre no município de Dourados 
    (MS). Já o selo deverá certificar os hospitais que respeitarem 
    a cultura do índio, por meio do recebimento de incentivos financeiros 
    da Funasa. Mais de cem instituições já receberam o estímulo 
    e agora serão submetidas a uma avaliação. Apesar dos 
    agentes indígenas de saúde, é preciso ampliar as especialidades 
    de práticas de saúde indígena, os incentivos para fixar 
    os profissionais nas regiões e melhorar a qualidade dos hospitais. 
    Padilha declara que a Funasa está fazendo convênios com universidades 
    e órgãos de assistência à saúde, mas confessa 
    que “temos que avançar muito ainda”, com a oferta de profissionais 
    e agentes indígenas.
  Uma 
    outra tentativa de valorizar as etnias é a abertura de farmácias 
    de fitoterápicos, voltadas para o conhecimento tradicional, para complementar 
    o sistema de saúde indígena. De acordo com o diretor do Departamento 
    de Saúde Indígena da Funasa, no final de abril a Funasa deverá 
    inaugurar o primeiro laboratório de manipulação de fitoterápicos 
    da etnia Fulniô, em Pernambuco. A idéia é que o laboratório 
    piloto possa, no segundo semestre, ser autosuficiente atingindo os padrões 
    requisitados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária 
    (Anvisa) para, posteriormente, ser ampliado para outros povos.
  Faltam 
    dados 
    “Recentemente, ficou evidente que há a necessidade de 
    se desenvolver estudos e estabelecer estratégias para reunir e analisar 
    dados sobre as populações indígenas, para entender melhor 
    sua realidade e assim planejar e implementar políticas públicas 
    em áreas cruciais, como educação e saúde”, 
    afirma Ricardo Ventura Santos, antropólogo da Escola de Saúde 
    Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em um capítulo 
    do livro Diversity, Difference and Deviance: Ethics in Human Biology, 
    a ser publicado neste ano. Uma simples busca na Biblioteca Científica 
    Eletrônica Online (Scielo) por pesquisas sobre índios revela 
    que, além de poucas, tratam principalmente de saúde. “Os 
    estudos existentes são muito pontuais, não temos um estudo sistemático 
    da situação da saúde indígena [no Brasil]”, 
    pontua Garnelo. Isso equivale a dizer que a carência de informações 
    não permite afirmar, por exemplo, quais são as doenças 
    que mais afligem os diferentes grupos étnicos e traçar uma tendência 
    nas várias populações. A Funasa informa que a principal 
    causa de morte entre as populações indígenas são 
    as doenças respiratórias, em especial a pneumonia (a ser prevenida 
    na campanha de vacinação em vigor, veja Box). Segundo Garnelo, 
    a maior parte dos registros são feitos a partir da mortalidade e não 
    da morbidade (incidência relativa de uma doença), o que permitiria 
    agir com mais rapidez e corrigir o problema.
  O 
    livro Os povos indígenas e a constituição das políticas 
    de saúde no Brasil (2003), editado pela Organização 
    Panamericana de Saúde (Opas) em 2003, mostra que as doenças 
    infecciosas graves (tuberculose, malária e hepatite, por exemplo) ainda 
    aparecem em maior predominância, além da alta mortalidade infantil, 
    causada por desnutrição e que vêm se elevando os índices 
    de doenças crônicas em adultos, tais como o diabetes, a hipertensão 
    e a obesidade. Diferentemente das doenças infecciosas, com tratamentos 
    relativamente eficientes e pontuais, as doenças crônicas surgem 
    de mudanças de hábitos (como vida sedentária e ingestão 
    de alimentos mais calóricos e menos nutritivos) e, por isso, estão 
    entre os maiores desafios na questão da saúde indígena, 
    afirma Garnelo, porque precisam ser contornadas com ações integradas. 
    
  
     
      | 
           
            | Campanha 
                Nacional de Vacinação dos Povos Indígenas |   
            | Iniciada no último dia quatro de abril, prevista para durar 
                até o final do mês. A meta é imunizar 6711 
                crianças e 7510 mulheres em idade fértil de 13 doenças 
                (difteria, tétano, coqueluche, poliomielite, sarampo, rubéola, 
                varicela, pneumonia, meningite, hepatite B, gripe, tuberculose 
                e febre amarela). O foco deste ano recai sobre comunidades isoladas, 
                com histórico de baixa cobertura vacinal e problemas de 
                registro de dados sobre vacinação, localizados em 
                18 DSEIs. A história das vacinações levanta 
                questões éticas que recaem sobre a compreensão 
                e a permissão daqueles que as estiverem recebendo. A Revolta 
                da Vacina, em 1904, ensinou que campanhas de saúde não 
                podem ser compulsórias, mas, ao contrário, contar 
                com a adesão por meio da compreensão de sua importância. 
                Já acontecimentos como os relatados no livro Darkness 
                in Eldorado (Trevas em Eldorado) de Patrick Tierney dificilmente 
                ocorreriam nos dias de hoje, dado o maior envolvimento e conscientização 
                das comunidades indígenas, apoiadas pela Resolução 
                304/2000 que especifica questões relacionadas à 
                pesquisa que envolve populações indígenas. 
                A polêmica publicação denuncia a inoculação 
                nos Yanomami de um tipo obsoleto de vacinas contra o sarampo feitas 
                pelo antropólogo Napoleon Chagnon e pelo médico 
                geneticista James Neel, de forma experimental e sem o consentimento 
                informado dos índios, e que teria causado inúmeras 
                mortes (leia reportagem 
                sobre o caso). “Hoje em dia o grau de resistência 
                à vacinação é pequeno; há um 
                entendimento de que a vacina ajuda a prevenir [doenças]”, 
                afirma Padilha. Difícil é assegurar que essa compreensão 
                seja efetiva, mas a Funasa, conta com 12 mil profissionais com 
                especialidades múltiplas para atender os mais de 430 mil 
                índios aldeados, pertencentes a 215 povos falantes de 180 
                línguas. Entre eles, trabalham 4.700 agentes indígenas 
                de saúde, capacitados pela Fundação e que 
                mediam as contribuições entre as culturas, minimizando 
                as diferenças.
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  (GB)