Reportagens

Há luz no fim do túnel?
Conhecimento tradicional e perspectivas de mudanças na política indigenista brasileira

Thiago Ávila

Os conhecimentos que os povos indígenas e populações tradicionais possuem acerca da utilização da biodiversidade nunca estiveram tão em moda. Nunca se falou tanto, se escreveu tanto e se pensou tanto sobre as utilidades que os saberes dessas comunidades indígenas, sertanejas, caiçaras, ribeirinhas, seringueiras ou quilombolas podem ter dentro da ótica da sociedade ocidental, do atual mundo da informação e da contínua transformação. As modernas empreitadas biotecnológicas e o screening desenfreado de espécies vegetais vêm colocando novas e interessantes questões tanto para os países com uma mega diversidade biológica como para os povos indígenas que vivem justamente nessas áreas tão desconhecidas quanto cobiçadas.

Um ponto inusitado dessa temática é que, talvez pela primeira vez na história brasileira, os interesses dos povos indígenas e do Estado brasileiro se encontraram. A diplomacia brasileira e o aparato governamental lutaram, pressionaram e fizeram alianças com outros países nos diversos fóruns internacionais, defendendo a soberania nacional sobre os recursos naturais existentes em seu território. Esse campo escuro – sim porque somente uma ínfima parcela da biodiversidade é “cientificamente” conhecida – foi reconhecido legalmente, em acordos como a Convenção da Diversidade Biológica como de posse e soberania dos países onde essas áreas estão localizadas. Por outro lado, os movimentos indígenas, indigenistas, ambientalistas e de direitos humanos também se articulavam e pressionavam para que também as chamadas “populações tradicionais” fossem reconhecidas como soberanas (ou na nomenclatura que se consagrou: os guardiães) desses novos recursos: os recursos genéticos.

Nessa surpreendente aliança entre duas forças historicamente opostas – Estado brasileiro e povos indígenas – ambos foram reconhecidos como detentores de direitos sobre os recursos genéticos presentes em seus territórios. Os movimentos indígenas e segmentos da sociedade nacional que lutam em favor dos direitos indígenas visualizam nesses novos projetos – que envolvem tecnologia e ancestralidade para produção de novas mercadorias farmacêuticas, cosméticas ou alimentícias – como uma real possibilidade de mudança efetiva no modelo das relações entre os índios e a sociedade brasileira.

Pretendo, neste texto, apresentar de maneira simples e rápida algumas questões que nos auxiliem a refletir sobre as reais possibilidades de reversão do cenário das políticas indigenistas no Brasil. Considero o acesso aos conhecimentos tradicionais como um fenômeno ideal para essa tarefa, principalmente porque ele evidencia aspectos sugestivos das relações entre povos indígenas e Estados nacionais no mundo contemporâneo, colocando em choque os entendimentos e as perspectivas globais versus os desejos e os anseios locais. Enfim, o texto pretende ver se realmente há alguma luz no fim do túnel, visualizando se os “conhecimentos tradicionais” podem realmente alterar os modelos de relacionamento com os povos indígenas.

Em meio a essas perspectivas ora mais localizadas e ora mais globalizadas, temos o Estado-nacional, instituição símbolo e base da modernidade política ocidental. Sabemos que as leis em vigor em um país não existem isoladas do restante de sua sociedade. Ao contrário, elas são reflexos do tempo e espaço onde foram elaboradas e estão entrelaçadas com sua cultura, dizendo muito das sociedades que lhes produziram. Neste sentido, as legislações indigenistas são caminhos para que percebamos como esses Estados – e suas elites políticas - construíram um certo estilo para lidar com as alteridades indígenas dentro de seus territórios.

A história da legislação indigenista brasileira e de atuação dos órgãos governamentais revela os processos de dominação e subjugação impostos aos índios que, obviamente, não aceitaram esse papel “passivo” que os governos nacionais lhe impunham e, desde muito tempo, vêm se organizando para inviabilizar e resistir aos avanços da sociedade brasileira sobre seus territórios. As recentes conquistas nos direitos indígenas, presentes na Constituição de 1988, são uma inovação na história brasileira e foram conquistados, em grande medida, pelos esforços dos diversos movimentos indígenas e de suas redes de articulação nacional e internacional.

No atual contexto das políticas indigenistas, o acesso aos conhecimentos tradicionais é visto como um potencial meio de reversão dessa situação histórica. O acesso aos recursos genéticos e os direitos intelectuais coletivos são produtos de um tempo facilmente identificável, tempo este que uniu os ideais ambientalistas e humanistas – especialmente os direitos humanos – com a causa indígena. Apesar de haver um Projeto de Lei em tramitação no Congresso desde 1995, ainda não há uma legislação sobre a questão que é regulamentada por uma Medida Provisória. A biopirataria, outro conceito que está muito em voga, é um caso de acesso ilegal dos recursos genéticos, podendo envolver o conhecimento tradicional e os direitos a ele relacionados.

Alguns casos tornaram-se famosos. A ayahuasca, utilizada em rituais mágico-religiosos por diversas populações amazônicas, foi alvo de tentativas de patenteamento, o que foi prontamente questionado por diversas organizações indígenas, especialmente a Coordinación de las Organizacones Indigenas de la Cuenca Amazonica (Coica). Os povos amazônicos e suas organizações conseguiram mostrar que aquele tipo de saber era coletivo e sagrado, sendo que o patenteamento dessa planta foi considerado como ofensivo às culturas indígenas. Seus representantes afirmavam que era como se a hóstia fosse patenteada pelos índios! A ação da Coica impediu a apropriação de um conhecimento coletivo, imemorial e comum à diversos povos.

O caso vivido pelos índios Wapichana, moradores ancestrais das bacias dos rios Branco e Rupununi, localizadas nas savanas e cerrados do leste de Roraima e do sul da República Cooperativista da Guiana, representa um caso concreto de biopirataria. Dois processos químicos, chamados cunaniol e rupununies, foram patenteados nos escritórios europeu e norte-americano em nome de Conrad Gorinski. Essas ações foram realizadas entre 1993 e 1998 e surpreenderam os Wapichana ligados ao Conselho Indígena de Roraima, que tomaram conhecimento sobre o assunto por meio de uma reportagem publicada pela Folha de S. Paulo.

O cunaniol é um alcalóide desenvolvido a partir de um veneno de pesca preparado pelos Wapichana que os chamam de cunani. A Guiana é conhecida na etnografia sul-americana como uma região que usa amplamente diversos tipos de venenos de pesca. Os Wapichana relatam que Gorinski prometera pesquisar as plantas, fazer os remédios e ajudá-los na saúde distribuindo medicamentos nas aldeias. Nunca o fez. Filho de uma índia guianense com um fazendeiro descendente dos primeiros europeus a chegarem na região, Conrad Gorinski reconheceu que os processos químicos patenteados são baseados em saberes dos índios daquela região, mas considera que não pode ter uma patente compartilhada porque os índios não sabem lidar com o dinheiro. Ao expor a questão nesses tópicos, o pesquisador revela todos os seus preconceitos acerca das populações indígenas, essencializando-as em estereótipos como crianças, tolos e ignorantes ao ponto de não saberem administrar recursos financeiros.

Os Wapichana começaram a discutir essas questões ainda em 1996, nas reuniões do Conselho Indígena de Roraima e da Amerindian People Association, duas das organizações indígenas mais influentes na região. Denunciaram esse caso em fóruns e encontros, chegaram a receber prêmios internacionais pelo combate à biopirataria, mas não entraram em um questionamento formal das patentes. Não o fizeram, talvez, por estarem envolvidos em questões consideradas mais imediatas, como o reconhecimento oficial de seus territórios tanto no Brasil como na Guiana. Para os Wapichana, os direitos intelectuais coletivos são vistos como uma grande ficção ou um ideal distante. Isso porque os Wapichana ainda não tiveram seus territórios assegurados e seus mais de 6 mil habitantes no Brasil têm que viver em áreas pequenas e apertadas, o que dificulta uma vida tradicional. Como alternativa à vida nas malocas – como são conhecidas as aldeias indígenas em Roraima – eles podem ir para a periferia de Boa Vista atrás de uma renda ínfima obtida nos empregos informais.

O projeto de pesquisa desenvolvido pela conceituada Universidade Federal de São Paulo – Unifesp/Escola Paulista de Medicina entre os índios Krahô é outro caso de acesso arecursos genéticos com conhecimento indígena associado que tem ganhado bastante atenção. A Unifesp assinou um protocolo de intenções com uma associação representativa de seis povos Timbira do Maranhão e Tocantins, inclusive os Krahô. Os Krahô são dois mil índios que vivem no norte do Estado do Tocantins, em uma das maiores áreas de cerrado contínua brasileira, mas somente quatro de suas 18 aldeias são associadas à Wyty-Catë.

Uma doutoranda em psicobiologia pesquisou o que oito wajaca krqhô – pajés e curadores – de três aldeias conheciam sobre plantas medicinais, especialmente aquelas com ações psicoativas. A pesquisa revelou que esses oito pajés conheciam mais de 500 receitas para 400 espécies de plantas do cerrado. Mas a pesquisadora não respeitou os limites das aldeias associadas e realizou atividades na Aldeia Nova, Forno Velho e Serra Grande, onde somente a primeira é associada à entidade parceira da Unifesp.

O que chamou a atenção da imprensa foi uma suposta rixa entre os próprios índios, fato que inviabilizou um “projeto de pesquisa bem intencionado” e que respeitava as legislações sobre o tema, inclusive a repartição de benefícios. Os lucros da utilização econômica dessas pesquisas seriam divididos entre a Unifesp, os índios, a Fapesp e o laboratório interessado. O tratamento dado pela mídia, que explorou uma conotação de rivalidade dos índios como incapazes de chegarem à um acordo entre si, revela um outro ponto constante da história de relacionamento das sociedades indígenas com a sociedade brasileira: o silenciamento da voz indígena. A Associação Kapey (União das Aldeias Krahô) se sentiu excluída do processo de negociação com o conhecimento tradicional e acionou o Ministério Público Federal, exigindo uma taxa de bioprospecção milionária. O resultado foi que a pesquisa foi paralisada por completo há mais de dois anos, justamente na fase de pesquisas das plantas selecionadas que teriam maior chance de se tornarem um medicamento ou outro processo patenteável.

A legitimidade de quem é reconhecido para falar em nome de um povo é o cerne das dificuldades práticas dos projetos de bioprospecção e acesso aos conhecimentos tradicionais associados. Parece que sempre há espaço para um grupo se sentir excluído. Mas o mundo indígena amazônico é uma polifonia política. Cada aldeia é uma unidade política em si e nunca houve um processo de centralização política nas sociedades indígenas brasileiras. A construção de uma representatividade unificada de um povo indígena é um reflexo da situação atual envolvendo os povos indígenas que estão aderindo ao associativismo local como uma alternativa.

Os Krahô percebiam, à medida que iam tomando conhecimento das possibilidades legais garantidas pela Medida Provisória que regulamenta a questão, que esse tipo de negociação era única. Dentro de um processo interno de discussão e negociação envolvendo todos os caciques e dois pajés de cada aldeia, os Krahô concordaram com a continuidade da pesquisa, desde que a instituição proponente fomentasse um projeto relacionado à medicina tradicional que seria administrado pelas cinco associações indígenas existentes entre os Krahô. O que os índios queriam era tornar-se propositores de políticas específicas para valorizar sua medicina, exercendo maior controle social e ampliando as ações de saúde em seu povo.

A Unifesp alegou que não poderia atender à solicitação porque não seria responsável por óbitos de pacientes tratados com um sistema médico que não é cientificamente comprovado. Tentou estimular que dois laboratórios parceiros financiassem a idéia dos Krahô, mas esses argumentaram que tinham receio de serem acusados de biopirataria. Então, a Unifesp passou a alegar que o projeto era uma iniciativa pessoal do cientista, então chefe do seu Departamento de Psicobiologia, que havia se retirado do projeto devido às dificuldades de continuar as pesquisas, dando-o por encerrado. Posteriormente reviu sua posição. O projeto continua parado, esperando uma definição formal da Unifesp. O Ministério Público Federal acompanha o caso de perto, pois é um exemplo concreto da complexidade do acesso a recursos genéticos com conhecimentos tradicionais associados.

Os Krahô deixaram de lado suas divergências e diferenças internas e formularam um projeto político dentro dos parâmetros assegurados pela lei. No caso entre a Unifesp e os Krahô, a legislação entrou em vigor durante o andamento do projeto e, desde então, a universidade não tem conseguido a autorização governamental para pesquisar os recursos genéticos conhecidos pelos Krahô e identificados em suas pesquisas. Ela não consegue a autorização por não atender o posicionamento dos índios de desenvolverem, por conta própria, um projeto na área da medicina tradicional. Não queriam que fosse um projeto da Unifesp, mas que ela conseguisse os recursos financeiros necessários para que os pajés pudessem trabalhar. Queriam viaturas para deslocamento de pacientes para tratamento com pajés e, especialmente, queriam solucionar um grave problema social: muitas famílias têm dificuldade em acessar o seu próprio sistema médico tradicional porque não têm como adquirir os bens solicitados pelo pajé para curar e tratar uma pessoa. O projeto previa uma ajuda para que a família utilizasse os pajés, caso quisessem.

O projeto continua parado. O caso não pode ser descrito, até este momento, como um caso de biopirataria. As promissoras pesquisas estão engavetadas, dentro da lógica da Unifesp, porque os índios não souberam definir quem os representa e colocaram uma condição impossível de ser obtida: um projeto que valorize a prática da medicina tradicional entre os Krahô. Para os Krahô, o que os brancos não conseguem é entender o jeito do Mehin – auto denominação dos Krahô. Os cupen, como são chamados os não-indígenas, não entendem que cada aldeia é uma unidade política em si e que uma posição Krahô legitimada internamente só pode ser obtida através de uma delicada e ampla negociação com as diferentes forças políticas presentes no contexto local. Somente através do reconhecimento desses pressupostos básicos da política tal qual entendida pelos Krahô é que foi possível chegar a um acordo interno: o chamado Projeto Mehcarinc – Fundo de Saúde Krahô cujas idéias principais foram expostas.

Nos dois casos vimos que muitas promessas, expectativas e esperanças foram criadas pelos índios em troca de uma pesquisa com seus conhecimentos tradicionais. Todas essas esperanças foram encerradas pela incapacidade ocidental de encarar o “outro” e sua alteridade de maneira igual e respeitosa. Parece que a desigualdade entre as partes, sejam elas pobres e ricos; desenvolvidos e em desenvolvimento; brancos e negros ou índios e não-índios é o modelo em vigor. A desigualdade é a base da prática entre pares no mundo ocidental. Vimos que os dois casos revelam um entendimento muito presente nas relações com os povos indígenas brasileiros, inclusive nas legislações e políticas indigenistas: os índios são pensados como incapazes e, por essa suposta incapacidade é que o Estado brasileiro legitimou a prática da “tutela” que tanto distingue a política indigenista brasileira frente às de todos os outros países sul-americanos.

Então pergunto: Há luz no fim do túnel frente aos projetos de dominação e subjugação que estão historicamente presentes nas legislações e políticas indigenistas brasileiras? Não tenho uma resposta clara e bem definida, mas acredito que existam luzes, pessoas e movimentos sociais tentando reverter esses quadros. Muitos dos avanços obtidos nos direitos indígenas devem-se, diretamente, aos movimentos indígenas que pressionam os Estados nacionais a reconhecerem o direito à diferença, de possuir uma identidade etnicamente diferenciada, de terem costumes e crenças próprias. Todavia é preciso lutar contra as elites políticas, a monocultura, a homogeneização sociocultural que está sendo estimulada pela nossa sociedade. É preciso se orgulhar das diferenças, sejam elas quais forem. A existência e respeito à diferença já está contemplada nos ideais contemporâneos, ao menos nas constituições de muitos países, inclusive no Brasil. Mas há que lutar contra os mecanismos que impedem a mudança da situação atual.

Até que vençamos essas dificuldades práticas, seremos obrigados a conviver com os alarmantes casos de morte por desnutrição de crianças indígenas na Amazônia e no Mato Grosso do Sul, com os índices de alcoolismo e suicídio de jovens indígenas em tantos povos, com o analfabetismo generalizado nas aldeias, com os preconceitos étnicos, com todo um processo de exclusão e marginalização indígena em nosso país.

A nossa incapacidade de “ouvir” e “aprender” com as diferentes sociedades indígenas existentes naquele território chamado Brasil nos faz desperdiçar boas oportunidades de ampliarmos nosso conhecimento. Timidamente vamos reconhecendo o valor que os povos indígenas e demais populações tradicionais têm para o mundo contemporâneo. Reconhecemos que temos muito que aprender sobre a utilização racional e sustentável dos recursos naturais; reconhecemos que as plantas coletadas no mato e utilizadas por um determinado povo podem se transformar em um precioso bem em uma prateleira comercial e, principalmente, reconhecemos que temos que respeitar esses valores tão diferentes aos nossos olhos. Colocamos isto nas nossas legislações. Agora a questão é incorporar essas práticas à realidade empírica das relações com os povos indígenas, procurando modificar e transformar essas relações em patamares mais justos e eqüitativos.

É preciso reconhecer efetivamente que “eles” são iguais a nós, apesar de diferentes. O respeito incondicional à esta diferença é o que pode trazer as mudanças que procuramos. No Brasil, quando o presidente Lula assumiu o governo, os movimentos indígenas e indigenistas comemoraram a chance de poder trazer alterações nesses quadros. A terra e os regimes de proteção dos conhecimentos tradicionais, acreditavam todos, iriam ser tratados dignamente. Nada aconteceu nesse sentido e, pelo contrário, o governo atual tem tomado atitudes anti-indígenas como a demora na homologação da T.I Raposa Serra do Sol em área contínua e a redução do território da T.I Baú em 300 mil hectares. Mas enquanto os movimentos indígenas, e seus parceiros na luta pelo reconhecimento dos direitos mínimos de respeito e convivência aos povos indígenas, tiverem fôlego, sempre haverá luz e esperança de tempos melhores.

Thiago Ávila é pesquisador do Centro de Trabalho Indigenista – CTI.

 

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Atualizado em 10/04/2005

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