A Amazônia, a Biodiversidade e o novo milênio
   
 
Poema

Da pangéia à biologia molecular
Adalberto Luís Val

A biodiversidade e o novo milênio
Vera de Almeida e Val
Contrastes e confrontos
Ulisses Capozoli
As línguas indígenas na Amazônia
Panorama das línguas indígenas
Ayron Rodrigues
Lucy Seki e o indigenismo
As várias faces da Amazônia
Louis Forline
Euclides da Cunha
Isabel Guillen
Yanomami
Saúde dos Índios
Amazônia e o clima mundial
Manejo florestal
Niro Higuchi
Impactos ambientais
Cooperação internacional
Energia e desenvolvimento
Ozorio Fonseca
Interesse internacional
Programas científicos e sociais
Internacionalização à vista?
Indústria de off shore na selva
Marilene Corrêa da Silva
Peixes ornamentais

Produtos da Biodiversidade
Lauro Barata
Missão de pesquisas folclóricas

Radiodifusão para indígenas
Mamirauá
Vídeo nas aldeias
A música dos Urubu-Kaapor
 
"A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o império da água... ...O rio diz para o homem o que ele deve fazer. E o homem segue a ordem do rio." Thiago de Mello, poeta

 

 


A fala deste grande poeta amazonense Thiago de Mello, extraída da obra Mormaço na Floresta, remete-nos ao domínio da natureza sobre os homens e, por conseguinte, sobre os seres vivos que a povoam... As leis são da Natureza, os desígnios, de quem?...

Quem, ou "o que" determinará o futuro? Quem construiu o passado? Quem orienta o presente?

No que concerne aos processos biogeoquímicos que deram origem à vida no planeta e aos fenômenos biológicos, geológicos, climáticos e ecológicos que moldaram essa vida durante toda sua existência, está provado cientificamente que o acaso e a necessidade atuaram intrincadamente, sem um destino pré-estabelecido, para apresentar-nos os ecossistemas que aí estão, ou estiveram há tempos atrás. Assistimos hoje, ao resultado de um processo evolutivo do qual fazemos parte, se não por acaso, por um desígnio, e no qual continuamente tentamos interferir. Resultam dessa interferência os problemas que se apresentam ao homem e aos demais seres vivos que são graves e, embora passíveis de solução, detêm em si uma complexidade enorme. A questão que aqui se impõe, e é atual, concerne à Biodiversidade, sua exploração, sua manutenção, a exploração de seus "Santos Graais", e, é claro, necessita de respostas rápidas. Como é moda dizer, urge encontrarmos seu "uso sustentado"!

Discorrer sobre este tema, Biodiversidade, é uma tarefa simples. Simples e, ao mesmo tempo, difícil. Simples, porque o conceito é antigo, embora venha sendo estudado e abordado com outras denominações; difícil porque, mesmo na qualidade de conceito científico, assume muitas vertentes além da biológica. O assunto é de tal maneira complexo, atual e importante, que a definição do termo "biodiversidade" tem uma história política mundialmente conhecida. A mais adequada e mais utilizada definição para o termo Biodiversidade é aquela estabelecida no âmbito da Comissão de Ciência e Tecnologia do Congresso dos Estados Unidos da América (OTA - Office of Technology Assessment) em 1987 que assim se traduz: "Biodiversidade abrange a variedade e a variabilidade entre os organismos vivos e os complexos ecológicos nos quais eles ocorrem. Diversidade pode ser definida como o número de itens diferentes e sua freqüência relativa. Por diversidade biológica, esses itens são organizados em muitos níveis, variando de ecossistemas completos a estruturas químicas que são a base molecular da hereditariedade. Assim, o termo engloba diferentes ecossistemas, espécies, genes e sua abundância relativa". Como podemos ver, esta definição abrange os conceitos de quantificação de espécies existentes num ecossistema (abundância e riqueza) bem como suas relações com o meio ambiente, as quais são reflexo do patrimônio genético que detêm em si, suas diversas populações em seus diversos habitats.

De fato, ao discorrermos sobre biodiversidade, não podemos ter em mente apenas o número de espécies por metro quadrado. No estudo da biodiversidade incluem-se todos os aspectos ecológicos das populações que compõem as espécies, ou seja, sua distribuição no planeta, seu tipo de alimentação, suas características migratórias, sua convivência com outras espécies, etc. Tanto para animais como para plantas, a distribuição é um dos fatores mais importantes, pois nela estão contidos tanto a relação com o ambiente (disponibilidade de alimento e espaço), como o ritmo que esse ambiente imprime às espécies, que devem responder de acordo com seus próprios ritmos biológicos - Nascer, Crescer, Reproduzir, Morrer...

Responder a perguntas como estas: Quantas vezes uma espécie se reproduz por ano? Do que depende essa reprodução? De quem depende essa reprodução? deve envolver, necessariamente, a abordagem do tema biodiversidade. Para maior clareza, podemos exemplificar essa questão: não basta considerarmos apenas uma espécie vegetal ou animal isolada de seu meio e das demais espécies que ocupam seu habitat; a atenção deve estar centrada na relação que a espécie mantém com o seu derredor. A relação planta-animal, a qual está presente em qualquer ecossistema, é um dos melhores exemplos do que estamos aqui considerando; muitas plantas dependem de animais para sua polinização e distribuição no ambiente. Na escola aprendemos que a abelha poliniza as flores ao retirar o néctar de uma delas e visitar outras; que outros insetos também são agentes necessários à reprodução de outras espécies. Também aprendemos que os pássaros, que se alimentam de um fruto aqui, irão semear a planta em outras de suas paradas, durante sua migração. Na Amazônia, não apenas insetos e aves, como se vêem nos livros escolares, mas também morcegos, peixes, macacos, entre tantos outros animais, são agentes responsáveis pela reprodução e distribuição de espécies vegetais, contribuindo para o aumento e manutenção da biodiversidade nos diversos ecossistemas aquáticos e terrestres.

Na Amazônia, como em qualquer outro conjunto de ecossistemas, as relações são complexas e exigem atenção especial. A única região remanescente de floresta tropical úmida do planeta merece maior atenção. O pouco conhecimento acumulado sobre a floresta já oferece uma boa noção da complexidade da maior bacia hidrográfica do Planeta (tão grande que se vê da Lua!) e de sua relação íntima com a floresta. Certamente, nem todos os grupos animais estão nela em maior número de espécies ou de populações, mas, muitos dos grupos de invertebrados, vertebrados, plantas e microorganismos que a compõem encontram-se nela com maior diversidade e, portanto, vêm merecendo muita atenção por parte das nações mais desenvolvidas (ECO 1992 - Rio de Janeiro).

A história da formação da bacia tem muito a ver com a existência de dois fatores: o ambiente heterogêneo e a variabilidade genética. A esses dois componentes refere-se a definição de Biodiversidade. A relação íntima entre ser vivo e ambiente proporciona inúmeras possibilidades de interações e sinergismos que podem ser a causa de tamanha disponibilidade de espécies tanto animal como vegetal na região. Uma vez que a variabilidade genética é fruto de mudanças contínuas no patrimônio genético dos seres vivos (e não interessa aqui se ocorrem ao acaso ou sob ação de força seletiva) as possibilidades de interações se tornam infinitas... No caso da Amazônia, a própria existência da biodiversidade parece ser também sua causa. Retirem-se espécies de uma comunidade de terra firme ou aquática, haverá mudanças nas espécies remanescentes. Este fato pode ser observado até em nossos jardins, os quais só serão mantidos com robustez e beleza se houver um número mínimo de espécies a conviver naquele espaço. Essa variabilidade genética intrínseca às populações naturais, quer animais, quer vegetais, é um dos maiores patrimônios que a região possui.

Esse patrimônio genético transforma-se em patrimônio econômico à medida que o homem interfere sobre o ambiente e busca nele a solução de seus "problemas". A exploração dos recursos naturais (biológicos ou não) tem atingido o meio ambiente como um punhal que se crava lentamente. Os interesses nacionais e internacionais sobre a madeira nobre existente na região pressionam a economia da terra. As autoridades não conseguem conter seu contrabando, mais do que denunciado e escancarado pela mídia. A organização dos contraventores é tal que não se intimida com a ação das autoridades que tentam se mobilizar em meio à intrincada teia de interesses econômicos. Sem volta, ambientes explorados para extração de minérios se desertificam, após serem sangrados pelo homem que, em percebendo o fim da reserva de "ouro" abandona o local sem sequer olhar para trás. A região, antes detentora de riqueza e diversidade biológica, perece em argila e sob erosão devastadora. O petróleo ("ouro preto") também está presente em vastidão na Amazônia e começa a ser explorado. Essa exploração, porém, se dá com maiores cuidados que as outras por terem seus exploradores mais conhecimento tecnológico, mais consciência ecológica e bem mais estrutura econômica; não são garimpeiros isolados e desorganizados em busca de riqueza individual e sim empresas consolidadas, nacionais e multinacionais.

Todos esses exemplos são identificáveis e tratam de recursos bem definidos, dos quais sabemos o que retirar, como usar, para que usar, o quão são necessários ao conforto e desenvolvimento do homem e que "valores" possuem, tanto econômicos como ambientais. No atual momento, entretanto, nos deparamos com o fantasma da exploração da biodiversidade, que, como "apenas" detentora de material genético, esconde em si riquezas insondadas, que, se indevidamente exploradas, poderão se esgotar antes mesmo que saibamos seu valor. As recentes discussões sobre a exploração da biodiversidade da Amazônia, com a insistência de alguns em contabilizá-la por meio de mega-projetos de bioprospecção, tomaram grande vulto na comunidade científica brasileira e têm sido motivo de amplos debates, nos quais o interesse ecológico deveria prevalecer, mas o que prevalece é o interesse econômico. Aqui, identificamos um ponto frágil da nossa soberania, o qual se traduz em FALTA DE CONHECIMENTO. Fossem nossos ecossistemas mais bem conhecidos e melhor assistidos científica e tecnologicamente, nosso debate seria enriquecido e seguramente teríamos "defesa". Por isso não basta apenas discutir a "defesa" territorial, como se os invasores fossem apenas aqueles que invadem nossas terras fisicamente e tentam nela se instalar ou dela tirar proveito econômico formal. Nossas divisas podem estar muito mais no que "se esconde" dentro de uma planta ou de um animal; suas informações genéticas e suas potenciais interações com o meio ambiente. E aqui vai um alerta: não basta inventariar! Não basta apenas investir na identificação do material genético, na sua quantificação. As chamadas "bibliotecas genéticas" são necessárias, mas não adianta termos um livro que não saibamos ler!

Voltemos à definição de biodiversidade, que fala em variedade e variabilidade, mas não as dissocia de sua existência no contexto dos complexos ecológicos, ou seja, dos ecossistemas onde ocorrem. A Amazônia é exemplo vivo da definição completa oferecida ao mundo por políticos interessados em divisas, fronteiras, economia, poder, domínio, etc.

A relação entre os diferentes ecossistemas amazônicos obedece às mesmas leis da natureza. A floresta não sobrevive sem o rio e o rio não sobrevive sem a floresta. A cadência imposta aos seres vivos que habitam tanto a floresta como o rio está retratada na paisagem que varia anualmente, como um coração a pulsar lenta e continuamente. O ritmo de cheia e seca, que é anual, mas muda em intensidade ciclicamente, depende de longínquos eventos geológicos e atuais fenômenos climáticos. A existência da diversidade é resultado de processos evolutivos ocorridos há milhões de anos e de processos geológicos que datam de milhares de anos. Nosso conhecimento atual já permite dizer que as adaptações que foram moldadas durante todo o processo evolutivo em função dos ambientes que prevaleceram, poderão atuar como um impedimento à sobrevivência após acidentes ambientais causados pela ação do homem, como é o caso dos peixes de respiração aérea obrigatória, de respiração aérea facultativa e de respiração aquática que dependem da superfície das águas, estas mais ricas em oxigênio.

Na Amazônia, tudo isto resulta da cadência do rio, que impera majestoso. A cheia do rio, inundando a floresta, como uma serpente a se entremear nos galhos das árvores, permite que os peixes se alimentem da abundância de frutos que caem das árvores sobre as águas, tornando-os veículos semeadores de tal diversidade. Na seca, confinados em pequenos lagos ou na calha principal do rio, esse mesmos peixes buscam seus alimentos na intrincada teia alimentar que sustenta e equilibra as comunidades. Cada indivíduo guarda em si esta relação, registrada em seu material genético, porém controlada remotamente pelo ambiente, por outras espécies, pelo clima, etc. É como uma orquestra, na qual um instrumento sozinho não transmite a música, mas o todo, sem ele, nunca será igual. Mesmo sabendo tocar todos os instrumentos da orquestra, o homem ainda necessita da harmonia que só o regente maestro poderá dar. Na Amazônia, a regência é comandada por sua história natural e a interferência do homem tira à orquestra o tom. Somente quando formos detentores da batuta do Maestro, ou seja, quando detentores do conhecimento dos fenômenos de interação da natureza com os seres vivos, é que poderemos encontrar o caminho para dela retirarmos nosso desenvolvimento, que, se sustentado, nos levará à tão sonhada harmonia entre o homem e o seu ambiente.

Não nos restam dúvidas de que, para o novo milênio, a biodiversidade na Amazônia trará as principais divisas, contidas no patrimônio biológico; a delimitação das fronteiras não mais será baseada apenas no território e sim no que está intrínseco aos recursos naturais biológicos. A solução estará em nos curvarmos ao comando do "rio" como constata o poeta, e buscarmos conhecê-lo de maneira profunda. Só assim poderemos obedecer a tal comando com a sabedoria do homem da terra e nos cadenciar com ele, tentando enfrentar suas têmperas com conhecimento científico e tecnológico.

O homem se beneficiará da natureza e dela cuidará para que não se destruam as possibilidades das futuras gerações, estas sim, o verdadeiro sentido de nossa existência na Terra.

Vera Maria Fonseca de Almeida e Val - pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA).

   
           
     

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Atualizado em 10/11/2000

   
     

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