Euclides da Cunha para se Pensar Amazônia
   
 
Poema

Da pangéia à biologia molecular
Adalberto Luís Val

A biodiversidade e o novo milênio
Vera de Almeida e Val
Contrastes e confrontos
Ulisses Capozoli
As línguas indígenas na Amazônia
Panorama das línguas indígenas
Ayron Rodrigues
Lucy Seki e o indigenismo
As várias faces da Amazônia
Louis Forline
Euclides da Cunha
Isabel Guillen
Yanomami
Saúde dos Índios
Amazônia e o clima mundial
Manejo florestal
Niro Higuchi
Impactos ambientais
Cooperação internacional
Energia e desenvolvimento
Ozorio Fonseca
Interesse internacional
Programas científicos e sociais
Internacionalização à vista?
Indústria de off shore na selva
Marilene Corrêa da Silva
Peixes ornamentais

Produtos da Biodiversidade
Lauro Barata
Missão de pesquisas folclóricas

Radiodifusão para indígenas
Mamirauá
Vídeo nas aldeias
A música dos Urubu-Kaapor
 

Euclides da Cunha escreveu sobre a Amazônia alguns textos esparsos, onde sobressai o tom de denúncia social das condições de vida dos migrantes nordestinos nos seringais. Seus artigos e ensaios foram publicados essencialmente em À margem da História, cuja primeira edição é de 1909, e também em Contrastes e Confrontos, de 1907. Esses textos, e outros não publicados, foram reunidos por Leandro Tocantins num volume intitulado Um Paraíso Perdido. Tal qual o título do grande livro que Euclides desejava escrever sobre a Amazônia.

Desses textos não se pode passar ao largo quando se pretende discutir a história da Amazônia, especialmente o período do auge da extração da borracha. Euclides da Cunha foi para a região amazônica em 1904, para chefiar a equipe brasileira da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, que tinha como objetivo demarcar a fronteira entre o Brasil e o Peru. Era já um escritor consagrado. O que o levou a embarcar nessa aventura, expondo-se aos muitos perigos da floresta?

Encontramos algumas pistas em sua correspondência. Euclides escreveu para o amigo José Veríssimo que sua proposição era "um meio admirável de ampliar a vida, o de torná-la útil e talvez brilhantíssima. (...) Que melhor serviço poderei prestar à nossa terra. Além disso, não desejo a Europa, o boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a picada malgradada, a vida afanosa e triste de pioneiro." O que transparece na correspondência que Euclides envia para os amigos referindo-se aos preparativos da viagem é um imenso desejo de se integrar na solidão desse imenso deserto, sinônimo que ele a todo momento emprega para se referir à floresta.

Ao mesmo tempo, ao se confrontar com a natureza e com os homens que na Amazônia viviam, a imagem um tanto quanto romântica da floresta-deserto-sertão se desfaz. Que sociedade era aquela que se propunha a ocupar a Amazônia? Quem eram aqueles homens e que vida tinham?

Refere-se, no Terra sem História, que à entrada de Manaus existe uma ilha, de Marapatá, que é o "mais original dos lazaretos - um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência..." Na foz do Purus também há uma ilha que o povo costuma chamar de "Ilha da Consciência". Assim, a exemplo de Dante, aquele que penetra pelas duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, deve abdicar das melhores qualidades nativas. Penetrado, o inferno se revela o lugar onde o homem "trabalha para escravizar-se" (cf. Cunha, 1994, p.35)

Natureza e Civilização

O primeiro ponto a se observar desses escritos euclidianos sobre a Amazônia é a idéia de que a região e seus habitantes podem ser representados como um anfiteatro da história, da civilização, da nacionalidade, que se abrigava potencialmente no deserto, no sertão. No qual, no entanto, já podemos antever as ruínas, a destruição e a incompletude. O paraíso, que tanto deseja encontrar, já tinha sido corrompido, e por isso se encontrava, talvez, irremediavelmente perdido.

Só partindo do binômio natureza e cultura é que se poderia delinear a forma que, para Euclides, toma a vida social na floresta, especificamente a vida no seringal. Nessa natureza, ainda incompleta e em expansão, o homem encontrou um poderoso adversário, e o embate com esse ambiente o aproxima do mundo animal, distanciando-o da civilização. Falta "à vestimenta das matas os recortes artísticos do trabalho."(cf. Cunha, 1994, p.53)

A civilização está presente na floresta como moléculas, que aparecem repentinamente na vasta solidão selvagem: as cidades. Essas moléculas de civilização, já corrompidas, corroboram uma imagem fundamental que Euclides pincelou sobre a região: terra sem história. Nessa paisagem, o homem é um "intruso impertinente" e a natureza encontra-se em "opulenta desordem", e incompleta. A imagem da incompletude se delineia com a descrição do rio que leva a terra para além mar, provoca desabamentos, constrói e destrói as ilhas. Página do Gênesis, terra em se fazendo. "Tal o rio, tal a história: revolta, desordenada, incompleta." (cf. Cunha, 1994, p.32). A história da Amazônia aparece como um perpétuo construir e destruir.

Poderíamos concluir que Euclides oscila entre as maravilhas que a natureza proporciona, e o horror das sociedades que nela se estabelecem. Sob esse paradoxo, nada é harmonioso. O homem se animaliza, produz o horror por não conseguir produzir uma cultura que se imponha ao ambiente. Euclides vive num tempo em que a grandeza do homem consiste em domar a natureza. Nem por isso suas observações sobre a sociedade que se estabelecia na floresta perderam a atualidade.

Expatriados dentro da pátria.

A tarefa de conquistar a floresta foi atribuída aos seringueiros. A extração da borracha teve seu auge no período de 1880 a 1915, e a mão-de-obra dos seringais era constituída principalmente de trabalhadores oriundos da região nordeste do Brasil. No percurso migratório, o trabalhador chegava aos seringais endividado com o patrão, processo esse que se completava quando era obrigado a comprar os víveres no barracão a preços exorbitantes, e recebia pela borracha que coletava preços ínfimos. Desse modo não podia abandonar os seringais, acorrentado que estava ao sistema que ficou conhecido como "escravidão por dívidas".

É nesse sentido que Euclides da Cunha considera o migrante um "expatriado dentro da pátria". Referindo-se à seca de 1877 no Ceará, afirma que os migrantes foram embarcados nos navios por preocuparem os poderes públicos quanto aos estragos que poderiam provocar nas cidades, e nunca foram acompanhados por médicos ou agente oficial. "Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem. E não desapareceram."(cf. Cunha, 1994 p.57)

O que provoca a grande mortalidade dos migrantes, segundo Euclides, não era o clima da Amazônia, mas o estado social, a instabilidade e fraqueza com que chegavam, o processo de trabalho no seringal que, além de extremamente solitário, gera "a decadência orgânica" pela falta de uma alimentação adequada. Cada seringal é a "conservação sistemática do deserto, e a prisão celular do homem na amplitude da terra." (cf. Cunha, 1994, p.60)

O seringueiro é sobretudo um solitário, perdido no deserto da floresta, trabalhando para se escravizar. Cada dia num seringal corresponde a uma empreitada de Sísifo - partindo, chegando e novamente partindo pelas estradas no meio da mata, todos os dias, sempre, num "eterno giro de encarcerado numa prisão sem muros." (cf. Cunha, 1994, p.59)

No texto Entre os seringueiros, publicado na revista Kosmos, Euclides caracteriza as estradas dos seringais como "tentáculos de um polvo desmesurado." Esta é a "imagem monstruosa e expressiva da sociedade torturada que moureja naquelas paragens". O cearense que lá chega, "numa desapoderada ansiedade de fortuna" passa por um processo de aprendizagem, de bravo a manso, que para Euclides nada mais significa do que adquirir a apatia necessária diante da realidade inexorável. Preso nos tentáculos do dono do seringal, vai percorrer a estrada pelo resto de sua vida, "indo e vindo, a girar estonteadamente no monstruoso círculo vicioso da sua faina fatigante e estéril" ."(cf. Cunha, 1994, p.215)

Desse modo, a sociedade se detém "sem destino, sem tradição, sem esperança" e, tal qual os passos dos seringueiros pelas estradas, as mudanças nada mais são do que um "avançar ilusório que volve monotonamente ao ponto de partida."

Vemos aqui o escritor de Os sertões exercendo novamente, com toda a força das palavras, a crítica social a esse Brasil indiferente com o destino dos brasileiros mais pobres, desses que precisam trabalhar para viver, e nem sempre conseguem emprego. Dos excluídos, ou como Euclides se refere, dos que foram banidos para a floresta, postos à margem.

Para que ler Euclides da Cunha hoje? Não temos mais na Amazônia esses seringais, sinônimo de escravidão e desrespeito aos direitos humanos, pode-se objetar. Não temos? Talvez não mais os seringais, porque muitos deles foram desmatados para dar lugar aos pastos, e os seringueiros expulsos para as cidades. E nessas cidades, engrossam as favelas, marginais. Mas, e a escravidão? Também esta não desapareceu de todo, sendo vez por outra empregada pelos fazendeiros que se julgam imunes à legislação trabalhista. Ler hoje esses textos de Euclides da Cunha repõe a dimensão social que deve perpassar qualquer discussão sobre a Amazônia.

Isabel Cristina Martins Guillen - doutora em História pela Unicamp e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Recife - PE)

   
           
     

Esta reportagem tem
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15,
16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27
documentos
Bibliografia | Créditos

   
     
   
     

 

   
     

Atualizado em 10/11/2000

   
     

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2000
SBPC/Labjor
Brasil