Reportagens






 
Pesca brasileira é pobre em produção de pescado

Cerca de 22% da população brasileira se concentra na faixa considerada como beira mar, e a pesca é uma atividade importante do ponto de vista econômico, social e cultural. A atividade de pesca extrativa marítima e estuarina gera aproximadamente 800 mil empregos diretos e cerca de 3 milhões de pessoas que dependem direta ou indiretamente do setor. Muitos estudiosos já dedicaram seu tempo ao estudo das populações litorâneas brasileiras, ricas em tradições culturais seculares que surgiram através do contato dessas populações com a pesca marítima que, no Brasil, não é muito abundante.

O que toda essa riqueza cultural e importância sócio econômica nem sempre deixa à mostra é que a pesca sempre teve que se adaptar à baixa produtividade pesqueira da costa brasileira, determinada por fenômenos naturais incontroláveis. Para piorar essa realidade, os estoques marinhos pesqueiros brasileiros vêm sendo super explorados há décadas, e os pescadores, artesanais ou industriais, encontram dificuldades para manter os lucros da pesca no litoral brasileiro.

Tanto a pesca artesanal quanto a industrial fazem parte do cenário da pesca marinha brasileira. Jorge Pablo Castello, professor do Departamento de Oceanografia da Fundação Universidade do Rio Grande (Furg), explica que a pesca artesanal ocorre no litoral brasileiro nas áreas costeiras, em baías, estuários, manguezais e litoral adjacente. Esse tipo de pesca não ultrapassa 20 metros de profundidade. A pesca industrial ocorre na plataforma continental, onde a profundidade não ultrapassa os 150 metros, e também nos taludes continentais, principalmente nas regiões Sudeste e Sul.

A presença da pesca industrial nos estados de Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina é mais evidente que nos demais estados, além de apresentar maiores índices de produção. À medida que se desloca do norte para o sul, se modifica a contribuição da pesca artesanal que é mais importante no Norte e Nordeste que no Sul e Sudeste. Porém, vale salientar que nos últimos anos existem avanços tecnológicos significativos na região Nordeste o que, segundo Castello se deve ao arrendamento de barcos estrangeiros por indústrias pesqueiras nordestinas. Esses barcos são melhor equipados e tecnologicamente mais avançados. Segundo Beatrice Padovani Ferreira, professora do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a pesca artesanal participa com cerca de 40%, em peso, cabendo à pesca industrial cerca de 60%. Porém, isso não significa que a participação do setor industrial supere a do artesanal, que incide predominantemente sobre espécies mais nobres. "Na região Nordeste, a pesca artesanal contribui com mais de 70% do pescado capturado, em função da não existência de estoques que permitam uma exploração industrial mais intensa, como é o caso da sardinha e do bonito de barriga listrada nas regiões Sudeste e Sul do Brasil" complementa a pesquisadora.

O esforço empregado pelas embarcações industriais, que costumam utilizar inovações tecnológicas com maior freqüência para aumentar o potencial de captura, ou mesmo as adaptações relativamente mais simples utilizadas pelos pescadores artesanais, não conseguem modificar a natureza do litoral brasileiro, formado geralmente por águas tropicais e subtropicais, com predominância de águas quentes, com elevada salinidade e baixas taxas de nutrientes. Nos estados do Sul, há uma região de transição, com uma forte diferença de temperatura entre o inverno e o verão, o que não ocorre no resto do país e que é determinante para a produção pesqueira local.

Castello conta que, quando as águas estão mais frias, a composição dos nutrientes é alterada "No sul, durante o verão há correntes de águas quentes trazidas pela corrente do Brasil (que atravessa todo o litoral brasileiro), com temperatura acima dos 21°C e alta salinidade. Durante o inverno, prevalece a água de origem Sub Antártica, mais fria (entre 12°C e 17°C) e salinidades inferiores a 36 ppm (partes por mil). Essas águas frias trazem nutrientes, pois são ricas em nitratos, nitrito e fosfato". Os nutrientes são fundamentais para determinar a produção primária no ambiente marinho "determinam a produção do fitoplâncton, pequenas algas que são a base da sustentação alimentar do zooplâncton, e conseqüentemente, do restante da cadeia alimentar marinha. No Brasil, a produção primária varia de fraca a moderada" conta Castello. Essas características determinam uma baixa produtividade e, diferentemente da agricultura, em que existem muitos artifícios para se fertilizar o solo e aumentar a produção, os recursos disponíveis para melhorar a produção da pesca extrativa não são tão eficientes.

Total pesca marinha e estuarina Brasil no ano 2000
Estado Sigla do Estado Artesanal Industrial Total
Amapá AP 3628   3628
Pará PA 63813 37705,5 101518,5
Maranhão MA 40131,5   40131,5
Ceará CE 11546 2665,5 14211,5
Piauí PI 1940,5   1940,5
R. G. N. RN 8305,5 3333,5 11639
Paraíba PB 2621,5 10168 12789,5
Pernambuco PE 5383 56 5439
Alagoas AL 7712,5   7712,5
Sergipe SE 3881,5   3881,5
Bahia BA 38688 460,5 39148,5
Espírito Santo ES 8063 5160 13223
Rio de Janeiro RJ 12899,5 47982 60881,5
São Paulo SP 3339,5 24553 27892,5
Paraná PR 1514,5   1514,5
Santa Catarina SC 6967 71042 78009
Rio Grande do Sul RS 10296,5 33830 44126,5
Total   230731 236956 467687
Fonte: IBAMA

Apesar da situação geral não ser muito animadora, existem pontos localizados onde a natureza criou condições para uma pesca mais abundante, como é o caso das regiões onde existem aportes continentais de rios, ou onde ocorrem ressurgências, que é o fenômeno que faz com que as águas das camadas profundas, ricas em nutrientes, circulem e entrem em contato com a região onde existe penetração de luz, aumentando a produção primária que transforma os nutrientes em matéria orgânica que será consumida por organismos que compõem a cadeia alimentar marinha. "Em regiões onde há grandes aportes continentais de rios, como o rio Prata que desemboca na região do Uruguai e Argentina, há uma maior produção pesqueira, devido à maior concentração de nutrientes. Os rios transportam material em suspensão e substâncias orgânicas e inorgânicas, como nitratos, nitritos, silicatos e, em menor proporção, fosfato, que são fertilizantes da água", afirma o pesquisador.

"Há uma pequena, porém significativa, contribuição da lagoa dos Patos na região gaúcha. Para o norte não existem aportes importantes. Tem também a descarga do rio São Francisco que é moderada, e mais ao norte um aporte significativo do Amazonas. Os rios são os principais elementos de aporte de nutrientes para o mar no Brasil. Por sua vez, a vazante do rio não é constante e depende do regime de chuvas. Quanto mais ao sul, mais sazonal;  mais ao norte, esse regime é mais estabilizado apesar da interferência das estações seca e úmida, como ocorre no litoral nordestino", explica Castello.

Além dos rios, o fenômeno das ressurgências também é importante, principalmente para os oceanos tropicais e equatoriais que apresentam baixa produtividade biológica. Nessas regiões há uma carência constante de sais nutrientes na zona onde há penetração de luz, havendo concentração desses elementos somente nas camadas mais profundas. Alguns mecanismos naturais, como a presença de ilhas e bancos oceânicos estimulam a ocorrência desse fenômeno.

As espécies da pesca brasileira
Os principais recursos pesqueiros, estuarinos e marinhos, em exploração no país, por região, atualmente são: camarão rosa e piramutaba (região Norte), camarões, lagostas, caranguejo-uçá, pargos (Lutjanidae), garoupas e sirigados (Serranidae) (regiões Norte e Nordeste), peixes de linha (Abrolhos e Mar Novo), sardinha, bonito listrado e peixes demersais (castanha, corvina, pescada, etc.) (Sudeste e Sul), atuns e afins (toda a costa).

Não é à toa que a pesca industrial da região Nordeste seja atraída para as regiões de bancos oceânicos, pois há naturalmente uma concentração de diversas espécies de valor comercial, como os atuns. Na costa nordeste, existem principalmente três regiões onde ocorrem ressurgências associadas aos bancos oceânicos, que são a cadeia Norte Brasileira, a cadeia Fernando de Noronha e o Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Apesar de importantes, nada se compara às ressurgências que ocorrem na costa peruana, responsáveis pela elevada produtividade pesqueira daquele país. "Na costa do Peru, os valores são de 500mg/carbono m² ano, ou seja, cada metro quadrado da superfície do mar é capaz de produzir em um ano meio quilo de carbono, o que representa uma biomassa fabulosa. Aqui no Rio Grande do Sul a média anual de produção na plataforma é de 160 mg carbono por metro quadrado, que é um valor moderado", afirma Castello. "A costa do Peru é beneficiada pelas condições propícias geradas pela ressurgência na margem oriental do Oceano Pacífico. Infelizmente, o mar brasileiro é, de uma maneira geral, bastante pobre, apesar da grande extensão da sua costa, pois a produtividade está ligada a outros fatores que não a extensão da costa. O fenômeno da ressurgência costeira, presente na margem oriental das bacias oceânicas, e portanto na costa do Peru, não ocorre na costa brasileira, exceto em pontos muito localizados e em determinadas épocas do ano, como em Cabo Frio (RJ), durante o verão, e em algumas ilhas e bancos oceânicos", conta Beatrice.

Salvo alguns pontos de maior produção, os pescadores artesanais, de uma forma geral, têm que se adaptar como podem às condições ambientais de baixa produção pesqueira. E o fazem muito bem, resultando em uma enorme riqueza de invenções e adaptações. "A diversidade é impressionante, cada estado tem uma adaptação diferente, mas em geral o que podemos dizer é que o pescador artesanal usa embarcação de pequeno porte, sem motor, geralmente a remo ou vela. Quando ele conta com mais recursos, seu barco possui motor de popa de potência de 25 HP ou motor a diesel com potência de até 30 HP", diz Castello. Ele acrescenta que esses pescadores usam rede de emalhar, rede de arrasto, linhas de mão, armadilhas como covos de diferentes materiais e que a criatividade deles é enorme. Além disso, a pesca artesanal é muito dinâmica e tem raízes culturais históricas Castello salienta que, apesar das adaptações constantes e da ocorrência de mudanças substanciais do que era um pescador artesanal de décadas passadas para o pescador de hoje, o componente local/cultural não deixa de estar presente.

Na opinião do pesquisador, a associação freqüente da pesca artesanal como uma atividade não predatória é incorreta "Não existe pesca não predatória, esse conceito foi desenvolvido somente aqui no Brasil. A pesca em si é predatória, como a caça de qualquer outro animal. Quando se fala de pesca depredatória, termo correto, estamos falando da pesca praticada de tal forma que compromete a sustentabilidade, como redes com malhas de pequeno tamanho, captura de animais antes do tempo de reprodução... nesse sentido, a artesanal é tão predatória como a industrial, não há anjos e diabos, ambas atentam contra a sustentabilidade". O problema está na forma como o regime de pesca foi desenvolvido, no qual não há uma preocupação com o desenvolvimento comunitário. "Quando o regime de pesca é desenvolvido de forma comunitária, com uma organização social que dá aos pescadores um senso de ética sobre o que se pode fazer e o que não se pode fazer, existem regras informais sobre como se comportar. Essa comunidade tende a desenvolver um comportamento de pesca que não é predatório porque eles estão mais interessados em preservar o recurso. Eles entendem que sua fonte de sustento depende disso. Tanto no Brasil quanto no resto do mundo o avanço da pesca industrial tem conspirado contra isso porque a empresa objetiva somente o lucro". Ele admite que existe um fator econômico determinante para a visão comum da pesca industrial como sendo mais agressiva, uma vez que o investimento em tecnologia feito pela pesca industrial faz com que as embarcações tenham maior poder de captura em um tempo menor, o que de fato acontece.

Usar tecnologia para explorar um recurso que já está sobre explorado é insustentável do ponto de vista ambiental. Para o pesquisador da Furg, o desastre econômico do Atlântico Norte é bom exemplo. Lá se encontram cerca de 15 a 20 países pescando em águas da Zona Econômica Exclusiva da União Européia, ou no Atlântico Norte do Canadá e Estados Unidos com recursos tecnológicos dos mais modernos que existem. Essas pescarias estão praticamente em colapso. Nesse sentido, ele vê com preocupação algumas das afirmações feitas pelo atual secretário da pesca, José Fritsch (leia entrevista nesta edição), como a de aumentar o esforço de pesca sobre os estoques disponíveis através da construção de novas embarcações que, na opinião de Castello, podem substituir as antigas, apenas após um trabalho de avaliação do potencial de pesca dos novos barcos para que não ultrapassem a capacidade atual de captura.

Beatrice concorda com Castello, mas lembra que o discurso atual sobre exploração pesqueira já é bem diferente daquele do início da década de 70, quando os recursos marinhos ainda eram considerados inesgotáveis. "Pesca é uma atividade extrativa e os oceanos não são uma fonte inesgotável de recursos. A FAO estima que entre 47 e 50% dos estoques pesqueiros marinhos encontram-se sob explotação plena - não havendo, portanto, qualquer possibilidade de expansão das suas capturas em bases sustentáveis - entre 15 e 18% estão sobre-explotados, e 9 a 10% já entraram em colapso, encontrando-se exauridos ou em recuperação" salienta a pesquisadora. Segundo ela, a esperança para o setor está na organização e valorização da pesca artesanal, na preservação dos ecossistemas-habitats das espécies alvo e na consciência de que a pesca é uma atividade extrativa que explora espécies selvagens, que se reproduzem por conta própria e sobre as quais temos pouco ou nenhum controle. "O pescador sabe disso, que depende da natureza, que tem seus ciclos de fartura e pobreza e que juntos determinam um estado de equilíbrio".

Castello acrescenta que é possível recuperar parte da capacidade produtiva tomando medidas de controle de esforço de pesca, permitindo que os estoques comprometidos voltem a produzir mais. Para isso são necessárias medidas de gestão e conservação. Uma das opções para aumentar a produção de pescado marinho, já adotada em muitos países, é o desenvolvimento da maricultura. Porém, Castello adverte que essa atividade deve ser desenvolvida de forma sustentável para que não cause impactos negativos sobre o meio ambiente.

A valoração da pesca ultrapassa a quantidade de pescado capturado
Beatrice explica que a valoração da pesca está muito mais relacionada ao uso e aproveitamento econômico e social do pescado capturado do que ao seu volume. "Muitas das espécies capturadas no Brasil são de alto valor econômico, e a pesca, na sua maioria de características tropicais ou subtropicais, é praticada por um grande número de pessoas, o que tem como conseqüência um maior aproveitamento da captura e distribuição mais ampla e direta do benefício que pescarias temperadas monoespecíficas. Ou seja, pode não estar aparecendo tanto no PIB, mas muita gente tem no pescado uma importante fonte de proteína". Para Beatrice a manutenção de uma pesca artesanal de pequena escala é muito mais importante para a economia nacional do que se imagina. A população que se concentra na região costeira depende desses recursos de uma forma diária. A preservação dos ecossistemas costeiros é essencial para a manutenção dos estoques pesqueiros. Sejam mangues, recifes de coral, estuários, restingas ou pradarias de fanerógamas.

(JS)

 
Anterior Próxima
Atualizado em 10/03/2003
http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2003
SBPC/Labjor
Brasil