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Etnobotânica no litoral da Mata Atlântica

Natalia Hanazaki

A Mata Atlântica brasileira é considerada como uma das áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade, pois apresenta um alto endemismo biológico e um grande risco de destruição de seu ambiente1. Este risco se estende para além do patrimônio biológico, alcançando também as comunidades humanas e todo o seu conhecimento sobre o ambiente, que podem estar desaparecendo mais rápido do que a própria floresta.

Para fazer frente a essas ameaças ao conhecimento ecológico local, o enfoque da etnobiologia tem se mostrado bastante promissor. A etnobiologia permite estudar a interação entre pessoas e recursos naturais, dentro de determinados contextos e inserida em sistemas dinâmicos. Neste sentido, a etnobotânica, em particular, pode ser compreendida como o estudo das interações entre pessoas e plantas, revelando a grande importância dos recursos vegetais para a sobrevivência e manutenção de populações locais.

No litoral sudeste brasileiro, os caiçaras são habitantes nativos, de origem mista, descendentes tanto de colonizadores europeus como de indígenas, mas também com influências de outras culturas. Historicamente a subsistência caiçara era baseada na agricultura de pequena escala e na pesca. Porém, face às mudanças ocorridas nas últimas décadas, muitos habitantes locais deixaram suas comunidades, passando a viver nas periferias dos centros urbanos litorâneos. Outros, que permaneceram nos bairros caiçaras, gradualmente estão substituindo suas atividades costumeiras por outras, como as atividades voltadas para o turismo.

A despeito dessas recentes mudanças, ainda existe uma grande dependência local por recursos vegetais e, sobretudo, ainda existe um rico conhecimento sobre tais recursos. É aqui que entra a importância dos estudos etnobotânicos, não apenas como uma ferramenta descritiva ou analítica sobre o uso de recursos, mas também com o seu potencial para o resgate e valorização de conhecimentos que estão sendo pouco a pouco abandonados.

Fotos: Natalia Hanazaki
Praia da Almada, Ubatuba, litoral de São Paulo

Uma série de estudos etnobotânicos2 foram realizados entre o litoral norte do estado de São Paulo e o litoral sul do estado do Rio de Janeiro, incluindo tanto comunidades caiçaras continentais como comunidades insulares. Em mais de 400 entrevistas com moradores locais de ambos os sexos, foram mencionadas mais de 200 espécies botânicas diferentes. As plantas citadas são utilizadas principalmente para manufaturas, para alimento, ou como plantas medicinais. Árvores nativas fornecem matéria-prima para manufaturas, casas, remos e canoas, estas últimas construídas utilizando técnicas indígenas. Algumas das espécies usadas são a aricurana (Alchornea iricurana), a caixeta (Tabebuia cassinoides), a capororoca (Rapanea spp.), o ingá (Inga sessilis), a paina (Pseudobombax grandiflorum) e o guapuruvú ou bacurubú (Schizolobium parahyba). As plantas usadas na alimentação incluem tanto espécies cultivadas em roças -- dentre as quais as principais são a mandioca (Manihot esculenta) e a batata-doce (Ipomoea batatas) -- como espécies cultivadas em hortas e quintais (como o abacate Persea americana, o jambo Syzigium jambos e o maracujá Passiflora edulis) e espécies coletadas da mata (como o bacuparí Rheedia spp., o coquinho Syagrus sp. e a pitanga Eugenia uniflora). As plantas usadas com finalidades medicinais incluem muitas espécies não-nativas, de uso bastante difundido na farmacopéia ocidental (como a erva cidreira Melissa officinalis e Lippia citriodora, o boldo Coleus barbatus e Vernonia condensata, a erva-de-santa maria ou canema Chenopodium spp. e a erva-doce Foeniculum vulgare), mas também algumas espécies nativas, tais como a goiaba (Psidium guajava) e a pitanga. As plantas medicinais compreendem a categoria de uso de maior diversidade de espécies, quando comparada às categorias de uso de plantas para alimento e para manufaturas. Os principais problemas tratados com estas plantas medicinais são as dores em geral, febres, problemas respiratórios e gastrointestinais.

Os resultados encontrados nesses estudos apontam para algumas implicações para a conservação da Mata Atlântica. Uma destas implicações é de que, tal como a farmacopéia de outras populações rurais, a importância das plantas introduzidas na medicina caiçara pode ajudar a evitar o uso de espécies nativas. Outro fato observado é que entre todos os entrevistados, são as pessoas mais idosas e algumas poucas mulheres que podem ser identificados como elementos-chave para a manutenção do conhecimento sobre as plantas usadas na medicina local do litoral Atlântico.

Por fim, e não menos importante, os programas de conservação da Mata Atlântica devem considerar e permitir a sobrevivência e a permanência destas populações locais em seu ambiente, encorajando atividades costumeiras que possam servir como alternativas econômicas, e levando em conta o conhecimento local sobre os ambientes e as espécies conhecidas e utilizadas. Neste sentido, há uma crescente necessidade por estudos direcionados às condições que refletem ou não a conservação, bem como às práticas de manejo de recursos vegetais. É urgente que tais estudos considerem também as rápidas mudanças sócio-econômicas pelas quais passam a maioria das comunidades locais. O resgate do conhecimento local representa apenas um início na busca de alternativas para a melhoria da qualidade de vida e para a continuidade dessas comunidades.

As canoas eram confeccionadas através de técnicas indígenas, utilizando espécies nativas

 

Notas:
1. Veja Myers, N. 1988. Threatened biotas: hotspots in tropical forests. Environmentalist 8: 1-20; e Myers, N., Mittermeier, R. A., Mittermeier, C. G., Fonseca, G. A. B. e Kent, J. 2000. Biodiversity hot spots for conservation priorities. Nature 403: 853-858. [voltar]
2. Veja Begossi, A., Hanazaki, N. e Tamashiro, J. Y. 2002. Medicinal plants in the Atlantic Forest (Brazil): kowledge, use, and conservation. Human Ecology 30 (3): 281-299; e Hanazaki, N., Tamashiro, J. Y., Leitão-Filho, H. F. e Begossi, A. 2000. Diversity of plant uses in two Caiçara communities from the Atlantic Forest Coast, Brazil. Biodiversity and Conservation 9 (5):597-615.
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Natalia Hanazaki é professora do Departamento de Ecologia e Zoologia, Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Santa Catarina.

 
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Atualizado em 10/03/2003
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