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              A 
                questão racial Octavio 
                Ianni  A questão 
              racial parece um desafio do presente, mas tem sido permanente. Modifica-se 
              ao acaso das situações, das formas de sociabilidade 
              e dos jogos das forças sociais, mas reitera-se continuamente, 
              modificada mas persistente. Esse é o enigma com o qual defrontam-se 
              uns e outros, intolerantes e tolerantes, discriminados e preconceituosos, 
              segregados e arrogantes, subordinados e dominantes, em todo o mundo. 
              Mais do que tudo isso, a questão racial revela, de forma 
              particularmente evidente, nuançada e estridente, como funciona 
              a fábrica da sociedade, compreendendo identidade e alteridade, 
              diversidade e desigualdade, cooperação e hierarquização, 
              dominação e alienação. Vista 
              assim, em perspectiva ampla, a história do mundo moderno 
              é também a história da questão racial, 
              um dos dilemas da modernidade. Ao lado de outros dilemas, também 
              fundamentais, como as guerras religiosas, as desigualdades masculino-feminino, 
              o contraponto natureza e sociedade e as contradições 
              de classes sociais, a questão racial revela-se um desafio 
              permanente, tanto para indivíduos e coletividades, como para 
              cientistas sociais, filósofos, artistas. Uns e outros com 
              freqüência são desafiados a viver situações 
              e/ou interpretá-las, sem alcançar a explicação, 
              nem resolver a situação. São muitas, recorrentes 
              e diferentes, as tensões e contradições polarizadas 
              em termos preconceitos, xenofobias, etnicismos, segregacionismos 
              ou racismos, multiplicadas ou reiteradas no curso dos anos, décadas 
              e séculos, nos diferentes países, continentes, ilhas, 
              arquipélagos. Esse 
              o dilema envolvido entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gines de 
              Sepúveda, na época da conquista do Novo Mundo, repetindo-se 
              e desenvolvendo-se nas vivências e ideologias, teorias e utopias 
              de muitos, no curso dos tempos modernos. Essa é uma história 
              na qual entram Herbert Spencer, Conde de Gobineau e Georges Lapouge, 
              tanto quanto o evolucionismo e o darwinismo social, o nazismo e 
              o americanismo. Em 
              certa medida, o debate relativo ao "choque de civilizações" 
              implica em xenofobia, etnicismo e racismo. Ao hierarquizar as "civilizações", 
              hierarquizando também os povos, nações, nacionalidades, 
              e etnias, é evidente que se promove a classificação, 
              entre positiva, negativa, neutra ou indefinida, de uns e outros. 
              Samuel P. Huntington, que classifica as "civilizações 
              contemporâneas" em: Chinesa, Japonesa, Hindú, 
              Islâmica, Ocidental e Latinoamericana, está, simultaneamente, 
              estabelecendo alguma relação entre etnia, ou raça 
              e cultura ou civilização; uma relação 
              cientificamente insustentável, desde Franz Boas, mesmo quando 
              dissimulada. Essa é, obviamente, uma implicação 
              de sua teoria, ao priorizar a "civilização ocidental" 
              por sua escala de "modernização", "tecnificação", 
              "produtividade", "prosperidade", "lucratividade". 
              Aliás, esse contrabando etnicista, xenófobo ou racista, 
              está presente em diferentes pensadores "empenhados" 
              em explicar o mundo em termos de "modernização", 
              "racionalização", "tecnificação" 
              e outros emblemas ideológicos do "ocidentalismo". É 
              evidente que Huntington "esquece" a presença e 
              a atuação do mercantilismo, colonialismo, imperialismo 
              ou capitalismo, simultaneamente "ocidentalismo" na constituição 
              do seu mapa do mundo; uma "recomposição da ordem 
              mundial" de conformidade com a geopolítica norteamericana, 
              arrogando-se como herdeira do "ocidentalismo", como guardião 
              do capitalismo, ou vice e versa. Toma cada "civilização" 
              como se fossem essências, qualificáveis ou inqualificáveis, 
              com referência ao padrão de civilização 
              capitalista desenvolvida na Europa Ocidental e nos Estados Unidos 
              da América do Norte. Está empenhado em delinear a 
              geopolítica de alcance mundial que está sendo exercida 
              pelas elites governantes e as classes dominantes norteamericanas 
              desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), entrando pelo século 
              XXI. Essa é a ideologia que informa também o pensamento 
              e a prática de Henry Kissinger, Zbigniew Brzezinsk, Condoleezza 
              Rice e outros. É 
              assim que o mundo ingressa no século XXI, debatendo-se com 
              a questão racial, tanto quanto com a intolerância religiosa, 
              a contradição natureza e sociedade, as hierarquias 
              masculino-feminino, as tensões e lutas de classes. São 
              dilemas que se desenvolvem com a modernidade, demonstrando que o 
              "desencantamento com o mundo", enquanto metáfora 
              do esclarecimento e da emancipação continua a ser 
              desafiada por preconceitos e superstições, intolerâncias 
              e racismos, irracionalismos e idiossincrasias, interesses e ideologias. Esta 
              é, em síntese, uma idéia, hipótese ou 
              interpretação com a qual todos se defrontam cotidianamente 
              ou de quando-em-quando: a sociedade burguesa, capitalista, fabrica 
              contínua e reiteradamente a questão racial, assim 
              como as desigualdades feminino-masculino, o contraponto sociedade 
              natureza e as contradições de classes, além 
              de outros problemas com implicações práticas 
              e teóricas. São enigmas que nascem e desenvolvem-se 
              com a modernidade, por dentro e por fora do "desencantamento 
              com o mundo". A despeito de inegáveis conquistas sociais 
              realizadas no curso dos tempos modernos, esses e outros enigmas 
              se criam e recriam, desenvolvem e transfiguram, em diferentes círculos 
              de relações sociais, não só em sociedades 
              nacionais, como também na sociedade mundial. De par-em-par 
              com a globalização da questão social, desenvolve-se 
              e intensifica-se mais um ciclo de racialização do 
              mundo, assim como de transnacionalização de movimentos 
              sociais de todos os tipos, envolvendo feministas, reivindicações 
              étnicas, tensões e lutas religiosas implicadas na 
              geopolítica do terrorismo e crescente consciência de 
              que o próprio planeta Terra. Esses são problemas e 
              enigmas da modernidade-nação, ou primeira modernidade, 
              e da modernidade-mundo, ou segunda modernidade, ambas conjugando-se 
              e tensionando-se no curso dos tempos e nos espaços do mapa 
              do mundo; revelando que a modernidade seria ininteligível 
              sem esses dilemas, os quais desafiam a prática e a teoria 
              a ideologia e a utopia.  Seria 
              fácil reconhecer que esses enigmas estão na natureza 
              das coisas, da vida, ou da sociedade burguesa, moderna, como enigmas 
              insolúveis, ainda que manejáveis. E é esse 
              o pensamento de muitos em diferentes partes do mundo. Grande parte 
              das práticas e dos discursos sobre "a lei e a ordem", 
              "a nova ordem econômico-social mundial", "o 
              mundo sem fronteiras", "o fim da história" 
              ou "a teoria, a prática do neoliberalismo" implica 
              em "naturalizar" ou "ideologizar" o status quo: 
              modificar alguma coisa para que nada se transforme.  Mas 
              é possível imaginar que esses problemas ou enigmas 
              podem ser fermentos de outras formas de sociabilidade, outros jogos 
              de forças sociais, outro tipo de sociedade, outro modo de 
              produção e processo civilizatório; com os quais 
              se põe em causa a ordem social burguesa prevalecente, revelando-se 
              a sua incapacidade e impossibilidade de resolvê-los, reduzi-los 
              ou eliminá-los. Sim, esses problemas ou enigmas podem ser 
              tomados como contradições sociais abertas, encobertas 
              ou latentes, permeando amplamente o tecido das sociedades nacionais 
              e da sociedade mundial, com os quais se fermenta a sociedade do 
              futuro. Octavio 
              Ianni é professor do Instituto de Filosofia e Ciências 
              Humanas da Unicamp 
              
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