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              dimensões da experiência escrava no Brasil  Silvia Hunold Lara
 Assim como em outras áreas das ciências humanas, a 
              história da escravidão no Brasil tem presenciado inúmeros 
              debates. No início dos anos 60, a idéia de que as 
              relações entre senhores e escravos haviam sido pautadas 
              pelo paternalismo benevolente dos senhores e que esta característica 
              havia dado origem a uma democracia racial no país foi duramente 
              denunciada e questionada por pesquisas históricas e sociológicas 
              de grande envergadura. Importantes do ponto de vista acadêmico 
              e político, estas obras não apenas influenciaram todos 
              os estudos posteriores sobre o tema, como também marcaram 
              profundamente a formação de muitos militantes do movimento 
              negro.
 A tese 
              clássica de Florestan Fernandes - que atribuía à 
              violência da exploração escravista o aniquilamento 
              completo do escravo, tornando-o um ser socialmente anômico 
              e incapaz de integrar-se plenamente na sociedade de classes - tornou-se 
              praticamente hegemônica. Dando continuidades a estas idéias 
              matrizes, os estudos subseqüentes reafirmaram a incompatibilidade 
              entre a escravidão e o desenvolvimento do capitalismo, discutiram 
              questões teóricas relacionadas ao enquadramento conceitual 
              da sociedade escravista e, sobretudo, investigaram aspectos importantes 
              das relações de produção no período 
              colonial e nas grandes fazendas cafeeiras do século XIX. 
               Ao 
              longo das duas décadas seguintes, o debate sobre os modos 
              de produção no Brasil envolveu os estudos sobre a 
              escravidão, trazendo novos posicionamentos teóricos 
              que foram se desdobrando em diversas direções. Paralelamente, 
              ecoando de certo modo o fortalecimento do movimento negro, a produção 
              acadêmica interessou-se cada vez mais pela rebeldia escrava. 
              Afirmando que os cativos não haviam se submetido passivamente 
              aos desmandos senhoriais, os estudiosos passaram a dedicar sua atenção 
              à análise das fugas, quilombos, revoltas e rebeliões. Com 
              o desenvolvimento dos programas de pós-graduação 
              no país, foram surgindo também muitos trabalhos de 
              caráter monográfico, e o campo dos estudos históricos 
              sobre a sociedade escravista alargou-se. Estudos sobre regiões 
              específicas, cuja economia não estava voltada para 
              a produção de gêneros para exportação, 
              ou investigações sobre aspectos da ideologia escravista, 
              sobre a família escrava, o tráfico negreiro, o processo 
              da abolição, etc. foram aparecendo em número 
              cada vez maior. No conjunto deste revigoramento da produção 
              historiográfica sobre a escravidão e a abolição 
              no Brasil destaca-se um conjunto de estudos que, por seus pressupostos 
              e procedimentos, passou a questionar posições teóricas 
              e linhas explicativas que vinham sendo defendidas até então. 
               Problematizando 
              a tese da anomia social e pretendendo romper com a oposição 
              reducionista entre acomodação e resistência, 
              vários autores passaram a investigar a multiplicidade das 
              experiências negras sob o escravismo, buscando as visões 
              escravas da escravidão e da liberdade. Estas obras procuraram 
              mostrar como aqueles que estiveram submetidos ao cativeiro tinham 
              valores e projetos - diferentes daqueles de seus senhores - e lutaram 
              por eles de variadas formas. Construíram alternativas de 
              vida, conquistaram pequenos espaços de autonomia econômica, 
              social e cultural, e suas ações - individuais ou coletivas 
              - transformaram as próprias relações de dominação 
              a que estavam submetidos.  Redimensionando 
              a abordagem do tema, estes pesquisadores afastaram-se do debate 
              sobre os modos de produção e de grandes interpretações 
              do processo social, para analisar os significados históricos 
              das lutas escravas enfocando o ponto de vista dos cativos e dos 
              libertos. A possibilidade de ser posto à venda, por exemplo, 
              era algo constante na vida de homens e mulheres escravizados. Trocar 
              de senhor podia significar então muitas coisas: com uma venda 
              podiam ser alteradas as condições de vida e de trabalho, 
              laços familiares e amizades. Alianças diversas podiam 
              ser desfeitas, acordos rompidos e conquistas perdidas. Mas os escravos 
              não viviam este processo de forma passiva, como uma simples 
              mercadoria. Muitos chegaram a interferir na transação 
              feita entre os senhores, procurando padrinhos que os protegessem 
              ou os comprassem, fugindo diante da iminência da venda, ou 
              através de ações mais violentas, que os levavam 
              às malhas da justiça e tornavam o negócio impraticável. 
              Outros se tornavam "imprestáveis" (recusavam-se 
              a trabalhar, bebiam, executavam mal as tarefas ou ofícios 
              de sua especialidade, etc.), depreciando seus próprios valores 
              de mercado e dando origem a longas querelas senhoriais entre comprador 
              e vendedor acerca da boa fé e da qualidade do escravo negociado. 
              As implicações e os desdobramentos de análises 
              como esta logo fizeram reacender os debates. Avançando 
              no sentido de recuperar as práticas cotidianas, costumes, 
              enfrentamentos, resistências, acomodações e 
              solidariedades, modos de ver, viver, pensar e agir dos escravos, 
              estes estudos acabaram por revelar dimensões da experiência 
              negra sob a escravidão até então insuspeitadas. 
              Nos anos 60, as teses sobre a anomia social produzida pelo cativeiro 
              praticamente impediam o aprofundamento dos estudos sobre a família 
              escrava, por exemplo. Hoje em dia este é um campo que possui 
              uma densa literatura e vários estudos importantes, apoiados 
              em extensa investigação documental. As roças 
              e outras atividades econômicas informais que sustentavam um 
              certo grau de autonomia econômica e permitiam que os escravos 
              acumulassem dinheiro para comprar sua alforria ou de a de seus familiares 
              ganharam importância nas análises, que se desenvolveram 
              paralelamente ou associadas aos estudos sobre outras dimensões 
              da experiência dos libertos e alforriados. Às lutas 
              cotidianas somaram-se os estudos sobre os grandes quilombos e as 
              insurreições, mostrando que elas possuíam lógicas 
              e objetivos enraizados nas experiências dos cativos e muitas 
              vezes mantinham relações bem próximas com o 
              mundo dos que continuavam nas senzalas.  Procurando 
              fugir de estereótipos e afastando-se de oposições 
              mecanicistas, os pesquisadores encontraram múltiplas formas 
              de negociação e conflito que mediavam o cativeiro 
              e a conquista da liberdade: além das fugas, quilombos e das 
              rebeliões, ou das ações mais cotidianas, muitos 
              cativos chegaram a usar os tribunais, buscando garantir o direito 
              à alforria ou defendendo-se contra os interesses senhoriais 
              - mesmo quando não podiam acionar diretamente a justiça. 
              Do mesmo modo, os estudos sobre os significados da liberdade tornaram-se 
              mais complexos, situando-se bem longe da sua identificação 
              direta com o trabalho assalariado. Vários estudos regionais 
              mostraram que o "paradigma paulista" (da "substituição" 
              do trabalho escravo pelo imigrante assalariado) não se aplicava 
              em várias regiões do Brasil, nas quais a maior parte 
              dos trabalhadores continuava a ser constituída pelo chamado 
              "elemento nacional", mesmo depois da abolição. 
              Além disso, as várias formas de chegar à liberdade 
              passaram a ser analisadas em conjunturas diversas, durante a plenitude 
              do regime escravista ou quando a perspectiva da liberdade já 
              se desenhava no horizonte e a política de domínio 
              senhorial se encontrava ameaçada. Pesquisas recentes têm 
              demonstrado cada vez mais que, rastreando fontes diversas, é 
              possível acompanhar a trajetória de libertos e ex-escravos, 
              verificando o quanto os laços de solidariedade (entre companheiros 
              de senzala, familiares ou de linhagem, entre outros) bem como práticas 
              econômicas e sociais, construídas no período 
              do cativeiro, foram revividas e preservadas na liberdade.  Este 
              redimensionamento dos estudos sobre a experiência escrava 
              no Brasil tem sido acompanhado, mais recentemente por uma perspectiva 
              que passou a incorporar as relações entre África 
              e Brasil e a enfatizar o imbricamento dos processos históricos 
              nas duas margens do Atlântico. Além dos estudos sobre 
              o tráfico negreiro e as relações comerciais 
              e sociais a ele ligadas, os pesquisadores têm se interessado 
              pelas questões identitárias, acrescentando novas variáveis 
              no estudo da experiência dos cativos e afro-descententes no 
              Novo Mundo. Explorando as diferenças étnicas no interior 
              da comunidade escrava e no modo como os cativos de procedências 
              diversas viveram sob a escravidão, muitos temas têm 
              sido re-visitados pelos estudiosos, surgindo abordagens mais complexas 
              para teses tradicionais. A Unicamp 
              tem participado ativamente destes debates historiográficos, 
              de modos diversos, em diferentes momentos. Nos final dos anos 70, 
              por exemplo, ela abrigou um famoso seminário sobre os modos 
              de produção e a realidade brasileira, durante o qual 
              várias teses sobre a escravidão foram debatidas. Dele 
              fizeram parte, por exemplo, José Roberto do Amaral Lapa, 
              Maria Sylvia Carvalho Franco, Fernando Novais e Antonio Barros Castro, 
              pesquisadores de renome que já eram ou tornaram-se, alguns 
              depois, professores da Unicamp. Nos 
              anos 80, foi a vez dos professores que integravam a linha de pesquisa 
              "Escravidão e Trabalho Livre" do Programa de Pós-Graduação 
              em História da Unicamp: Peter Eisenberg, Robert Slennes, 
              Sidney Chalhoub, Célia Azevedo, Izabel Marson e eu. Trabalhando 
              sobre temas da história da escravidão e da abolição 
              participamos daquele movimento de renovação dos estudos 
              sobre a escravidão, publicando obras importantes sobre a 
              criminalidade escrava no período da abolição, 
              sobre as dimensões paternalistas do castigo dos escravos, 
              sobre a família e outras dimensões do cotidiano dos 
              escravos, sobre as lutas cotidianas dos cativos pela liberdade. 
              Muitas das teses orientadas pelo Programa naqueles anos e nos seguintes 
              transformaram-se em livros que também contribuíram 
              para redimensionar o estudo das ações dos quilombolas, 
              do significado das leis do ventre livre, dos sexagenários, 
              e de outros aspectos da experiência de muitos homens e mulheres 
              cativos que viveram e lutaram durante o período em vigorou 
              a escravidão.  Em 
              1995, uma parte deste grupo de professores juntou-se a outros colegas 
              que estudavam o movimento operário e temas ligados à 
              cultura popular no final do século XIX e início do 
              século XX para criar o Centro de Pesquisa em História 
              Social da Cultura (Cecult). Consolidando a experiência positiva 
              das pesquisas desenvolvidas na pós-graduação, 
              estes pesquisadores passaram a trabalhar em projetos de pesquisa 
              de maior envergadura, destinados a repensar a história dos 
              trabalhadores no Brasil. Trata-se, agora, de ultrapassar a tradicional 
              dicotomia que tende a separar escravos e operários, para 
              pensar ambos como parte da longa história de formação 
              da classe trabalhadora no país. Sem dúvida alguma, 
              um dos principais eixos de pesquisa do Cecult é constituído 
              pelos estudos sobre a escravidão e a abolição. 
              Porém, não é mais "o" escravo ou 
              "o" liberto que estão em questão, e sim 
              experiências de trabalhadores que eram escravos ou libertos. 
               A mudança 
              pode parecer sutil, quando expressa de forma simples, em poucas 
              palavras. Mas esta perspectiva implica alterações 
              historiográficas importantes, capazes de estabelecer conexões 
              e possibilidades de diálogo entre áreas da história 
              do Brasil que até agora eram estudadas isoladamente. De um 
              lado, ganham os estudos sobre a experiência operária, 
              dando continuidade a movimentos historiográficos anteriores 
              que caminhavam no sentido do alargamento das análises para 
              fora das fábricas, dos sindicatos e dos partidos políticos 
              - e agora passam a incorporar as questões raciais e os significados 
              da presença negra e dos egressos do mundo escravista na conformação 
              da experiência dos trabalhadores no Brasil. De outro, ganham 
              os estudos sobre a escravidão e a abolição, 
              que passam a participar de análises mais amplas, relacionadas 
              às dimensões políticas e culturais das lutas 
              pela cidadania em diversos momentos do chamado "longo século 
              XIX". De 
              certo modo, para citar um historiador e militante negro norte-americano 
              W. E. B. Du Bois, é como se pudéssemos dar foros de 
              cidadania a uma história que permaneceu muito tempo isolada. 
              Dizia ele, em 1934, que o "drama mais espetacular dos últimos 
              mil anos da história humana" havia sido "a deportação 
              de dez milhões de seres humanos da beleza morena de sua terra 
              natal para o recém-descoberto Eldorado do Oeste". Eles 
              haviam descido "ao Inferno e, no terceiro século, ressuscitaram 
              da morte, no maior esforço de conquista da democracia para 
              milhões de trabalhadores que este mundo jamais viu. Foi uma 
              tragédia que amesquinhou a da Grécia; uma convulsão 
              na humanidade como a da Reforma e a da Revolução Francesa." 
              Apesar disso, acrescentava ele, "somos cegos", pois "não 
              percebemos nisto uma parte do nosso movimento operário, de 
              nosso triunfo industrial, de nossa experiência religiosa". 
               Eis, 
              de forma poética e forte, o desafio que temos pela frente, 
              depois de tantas reviravoltas e debates nos estudos sobre a escravidão 
              e a experiência dos negros no Brasil. Silvia 
              Hunold Lara é pesquisadora do Centro de Pesquisa em História 
              Social da Cultura do IFCH, da Unicamp 
              
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