Lambe sujos versus caboclinhos: festa como performance e contradição

A festa consiste na representação teatral da saga do negro em busca de liberdade e tem como cenário as ruas de Laranjeiras, no interior de Sergipe, cuja história foi construída por conflitos de classes entre brancos, negros e indígenas.

Por Vanessa Regina dos Santos

A festa dos lambe sujos versus caboclinhos contradiz a tradicional concepção de festejar – uma vez que nela há também a comemoração da própria derrota.

Com o jargão de “o maior teatro popular a céu aberto do Brasil”, a festa utiliza como palco as ruas arquitetônicas de Laranjeiras Colonial, que revelam um misto de preservação patrimonial e modernidade, permanecendo no contexto cultural há mais de noventa anos.

A encenação teatral, de caráter espontâneo ao ar livre[1], representa o conflito entre escravos negros e indígenas, abordando a historiografia da formação social da cidade. Ao longo dos dois dias do evento, é notório como a performance toma destaque em meio ao clima e a efervescência daqueles que corroboram e participam de maneira direta ou indireta na organização.

Pensar em negros e indígenas dentro da perspectiva cultural é deter-se em características que retomam uma construção social pautada em divergências, principalmente lutas de classes e conflitos. Dessa forma, a festa cultural em Laranjeiras deve ser compreendida a partir da construção e desenvolvimento histórico sobre os dramas sociais envolvendo esses grupos.

A desorganização aparente da festa revela uma estrutura composta de mitos, histórias orais e múltiplos sentidos, que a mantêm ou até mesmo justificam sua permanência dentro do cenário social laranjeirense. A encenação dos grupos permite uma inversão temporária de papéis socialmente construídos ao longo da história da formação da cidade, de modo que ações, gestos e símbolos compõem e dão sentido à festa.

O evento torna-se um processo de reinvenção, em que seus símbolos remetem à história da construção da cidade, reinterpretada de maneira lúdica. Há conexão entre passado e presente, centrada na relação entre os grupos, abordando diversos temas que continuam tão atuais quanto nos tempos de escravidão.

Ao pensar sob a perspectiva de causa e efeito social, todos os envolvidos estão ali para representar a história, uma identidade, uma luta e como isso impactou no desenvolvimento da sociedade.

Lambe sujos e caboclinhos: a encenação sergipana

A festa dos lambe sujos e caboclinhos é descrita pelo seu organizador, Zé Rolinha, como o maior “teatro a céu aberto” dentro do contexto de cultura popular. Toda a estrutura e execução é composta por diversos elementos sociais, históricos e culturais, que incluem mitos, traços e ritos festivos.

Os negros são representados pelos lambe sujos, que se apresentam com o corpo pintado de tinta preta e utilizam vestimentas permeadas de simbolismos, como shorts, macacões e uma boina (gorro) de cor vermelha. Há ainda itens que remetem ao trabalho manual das colheitas de cana, como facões e foices[2], assim como outros elementos sem sentido aparente, como chupetas e adornos.

A pintura corporal, para ter o tom preto brilhoso, é feita de uma mistura composta de restos de moagem de cana de açúcar, pó xadrez preto e sabão em pedra. Essa mistura dá tonalidade e aderência à pele, além de facilitar a remoção ao término do dia.

Fonte: pesquisa de campo da autora. Laranjeiras/SE, 2014.

Dentro do grupo existem personagens como a mãe Suzana (considerada a feiticeira/curandeira), o pai Juá (uma espécie de preto-velho/curador), o rei, o príncipe, os taqueiros (cuja função é de manter a ordem) e o negro forro, o qual, no embate final, sobe no mastro e avisa da aproximação do grupo rival. Os demais componentes são, em sua maioria, brincantes e moradores da cidade, compondo o quadro simbólico do folguedo.

A partir deste teatro de rua, conseguimos constatar a restauração de conflitos sociais estabelecidos dramaticamente: de um lado, os negros estão em guerra contra os indígenas, os quais estão a serviço dos brancos para aprisionar aqueles; e de outro, há o conflito entre feitores (conhecidos como capitães do mato) e escravos, que a todo o momento encenam a resistência em serem capturados e buscam a fuga insistentemente.

Já os caboclinhos, que representam os indígenas, apresentam-se trajados por penas, brilhos, adereços e objetos de caça. Assim como o outro grupo, também realizam a pintura de pele, nesse caso com tom avermelhado e feita de tinta xadrez, misturada à água e sabão em pedra, obtendo tonalidade fosca.

No grupo dos caboclinhos existem dois personagens importantes para compor a trama: o rei e a princesa. O primeiro é personagem central das negociações da soltura de sua filha, que é raptada pelo grupo dos negros, momento que dá ênfase ao conflito como contexto lúdico.

No decorrer das encenações, ambos os grupos circulam pelas ruas da cidade cantando e brincando. Os lambe sujos são mais espontâneos e costumam sujar aqueles que não contribuem com trocados, sob a justificativa de que ela seria destinada a comprar a liberdade simbólica – na verdade, os valores são usados para compra de bebidas alcoólicas.

Os caboclinhos seguem a direção contrária, circulando pela cidade com atos contidos, ao som dos instrumentos musicais e entoados pelo refrão “negro correu, caboclo pegou”. Quando há o encontro dos grupos, os embates acontecem e logo se dispersam.

Na véspera da festa (sábado), um caboclinho amarra um lambe sujo pela cintura e segue para a feira da cidade, obrigando o prisioneiro a pedir ingredientes para a feijoada (outro momento da festa).

Na entrada da cidade é construído o mocambo, que servirá de palco para ações posteriores. Às quatro horas da manhã do domingo, sob batuques e fogos de artifícios, todos seguem para casa de mestre Zé Rolinha, representando a invasão dos negros. A euforia toma conta dos participantes, que seguem num só ritmo e cantoria:

 Tava capinando a princesa me chamou, alevanta nêgo
Cativeiro se acabou
Samba nêgo, branco não vem cá
Se vier pau há de levar

Entre desafiar os taqueiros e exceder nas atitudes, o clima de euforia toma destaque, sendo notório como, durante o percurso, o público e os brincantes aderem ao contexto de excesso permissíveis.

Ao término da alvorada, os dois grupos se reúnem para a pintura corporal e complementação do vestuário. Observa-se que, nos últimos anos, a procura do público para se caracterizar de lambe sujos tem crescido significativamente.

Dando continuidade às atividades da manhã do domingo, com a presença do rei dos lambe sujos, o grupo segue o trajeto ao som de cantos e batuques para o terreiro Nagô Santa Bárbara Virgem, pedindo a benção pela peleja que os esperam.

Após a benção, continuam a cantarolar eufóricos: “vou pra terra de congo, vou ver Angola, adeus parente que eu já vou embora”. Então, todos seguem a caminho do próximo encontro, que acontece na porta da igreja matriz Sagrado Coração de Jesus e culmina com a benção do padre aos participantes.

Pelas ruas da cidade, mas em direções diferentes, lambe sujos e caboclinhos continuam cantando. Em determinado momento, os dois grupos se encontram e ocorre o primeiro confronto (embate). Nesse encontro, estalos de espadas tornam-se os sons que conduzem o momento, mas logo os grupos se dispersam, continuando seus caminhos, com animação, muita música e batucadas.

Ao meio-dia, a feijoada é servida no sentido de camaradagem consensual, ou seja, isenta de conflitos. Os grupos se reúnem de forma simbólica e o espaço da comensalidade enfatiza um mecanismo de pacificação temporária.

Durante à tarde, há o início das encenações finais. Cada grupo, em ritmo de cortejo com muita dança, desloca-se até a casa dos personagens, convidando-os e aclamando-os para que assim façam parte do grupo. Os negros reverenciam, com batucadas e fogos, a Mãe Suzana e o Pai Juá. Da mesma maneira, os caboclinhos organizam o cortejo para buscar seu rei e continuam a percorrer as ruas com entoadas e alegria.

Os grupos seguem, então, pelas ruas em sentidos opostos. Em determinado momento, um novo encontro consolida o segundo embate, no qual destacam-se os reis dos grupos, e o clímax final se aproxima.

É neste momento, porém, que lambe sujos sequestram a rainha dos caboclinhos, eclodindo a guerra e instaurando o conflito. As próximas ações se concentram na libertação da rainha dos índios, através de duas tentativas de invasão dos caboclos ao mocambo, mas que não têm o resultado esperado.

Observa-se uma possível conciliação entre os grupos mas, na terceira tentativa, os indígenas invadem o mocambo e conseguem expulsar os negros. Toda a ação é baseada em lutas encenadas e falas de imposição, finalizando com a queima do mocambo como símbolo de resistência, de sentido e mítica das lutas sociais.

Por fim, a história oral permeia a festa e torna-se contínua nos discursos dos seus participantes, localizando a vida contextual e histórica de um povo, operando na reconstrução, situando as identidades para legitimar muitas ações do presente. Por isso a permanência da teatralização dos lambe sujos e sua saga pela liberdade já dura mais de nove décadas.

Festejar faz parte da existência humana, e vemos como é possível uma única festa conter sentidos e variações pertinentes, pois através dela o negro revive sua condição construída ao longo da história nacional. Mesmo após inúmeras revoltas e tentativas de fugas, os lambe sujos comemoram a própria derrota.

Objeto de contradição social, a festa serve para ratificar a estrutura dominante em que a história do Brasil esteve imersa, na qual negros permanecem excluídos do cenário social e a aparente desordem dá lugar à reorganização das relações sociais. Neste evento, os indígenas capturam e devolvem os negros para seus senhores, encerrando os conflitos e reestabelecendo a ordem desejada pelos grupos dominantes.

Compreender a festa não é resumi-la a uma manifestação sem sentido social, mas entender que a historicidade humana a representa teatralmente, integrando a pluralidade dos mundos ali representados, ao mesmo tempo em que mantém a relação dialética do cotidiano e da não ruptura.

Festejar e teatralizar significam, muitas vezes, o retrato da experiência social, integrando vários elementos, rompendo o cotidiano e compondo valores e sentimentos distintos, perceptível na encenação da luta apresentada, que é marcada por seus gestos, num espaço específico e sempre com a necessidade de serem reafirmados.

Vanessa Regina dos Santos é mestra em antropologia pela UFS.

Notas
[1] Expressão utilizada no cartaz do evento de 2015. Fonte: Prefeitura Municipal de Laranjeiras.
[2] Facões e foices feitas de materiais não cortantes como madeira ou papelão.