Helion Póvoa Neto: deslocamentos populacionais acompanham a história da humanidade

Por Mariana Hafiz

Agravados em tempos de pandemia e alta conectividade, fluxos migratórios configuram um mundo crescentemente móvel

Vive-se hoje a maior crise de refugiados e migratória desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Os migrantes internacionais, entendidos como aqueles que vivem e trabalham em territórios que não os de seu nascimento ao fugir de perseguições, representam cerca de 3,5% da população mundial. São, assim, um pouco mais que 270 milhões de migrantes internacionais (Acnur 2019), para uma população mundial de 7,8 bilhões de habitantes.

Na atual crise do novo coronavírus sars-cov-2 causador da covid-19, a intensificação e complexificação dos fluxos demandam atenção sobre o que acontece no campo dos estudos migratórios, a refletir sobre quais os precedentes de crises como essa na história e quais suas implicações atuais.

É sobre isso que Helion Póvoa Neto, geógrafo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (Niem), fala com a ComCiência* nesta edição.

Suas pesquisas no laboratório do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR-UFRJ) dizem respeito às políticas quanto a imigrantes e refúgio no Brasil, na América do Sul e no mundo.

Como está o panorama global das migrações? Existem questões históricas ou a maioria dos motivos para migração são contemporâneos?

Podemos dizer que vivemos hoje em um mundo de migrantes, de refugiados, e de deslocados por diversas razões. O deslocamento através de fronteiras internacionais, nacionais ou regionais se tornou algo relativamente habitual, face às necessidades da economia e à progressiva facilitação oferecida pelos meios de transporte e de comunicação, com periodicidade frequente, até mesmo diária. Nesse sentido, podemos dizer que o nosso é um mundo crescentemente móvel.

Historicamente, a percentagem de população migrante internacional no mundo vem crescendo nos últimos cinquenta anos, passando de cerca de 2,3% da população mundial, no início dos anos 1970, para os 3,5% atuais. A estes números teríamos de somar os refugiados, que são em menor número, mas vêm crescendo quantitativamente, os migrantes e deslocados dentro de seus próprios países e os que se deslocam pelo mundo sem se estabelecer como moradores das localidades que visitam.

Deslocamentos populacionais são um fenômeno que acompanha a história da humanidade, até mesmo a própria constituição do ser humano. Pois essa espécie, surgida provavelmente em uma região definida do continente africano, humanizou-se e se apossou do planeta através de amplos e diversificados movimentos migratórios.

De acordo com a pesquisa da Acnur sobre o perfil dos refugiados no Brasil, 41% afirmam terem sofrido algum tipo de discriminação por serem estrangeiros. Quais são as formas mais eficientes de tratar desse problema?

É bastante provável que a discriminação seja um fato fortemente percebido pelos refugiados em nosso país (mas não só nele). Os refugiados que chegam ao Brasil são principalmente da América do Sul, África, Oriente Médio e Ásia, ou seja, com perfis nacionais e étnicos muito diferentes dos imigrantes que historicamente recebemos até a década de 1960, predominantemente europeus, brancos. A imigração subsidiada foi, no Brasil, um projeto não só para constituição de mercado de trabalho e de povoamento do território, mas também “civilizacional”, de formação de uma população nacional crescentemente distante do nosso passado escravista e da nossa realidade de mestiçagem. Nesse quadro, parece natural que os imigrantes e refugiados fora do perfil europeísta incomodem a sociedade brasileira e relembrem a sua história de escravidão e de extermínio de povos indígenas.

É difícil falar em “eficiência” quando se trata em combater o racismo, seja contra refugiados, seja contra grupos sociais da própria nação. A educação, as políticas de saúde e acolhimento, bem como o enfrentamento das formas mais evidentes de racismo devem ser parte da solução, embora as modalidades da ação antirracista estejam sempre sujeitas a questionamento e ao necessário debate.

Quais são as possíveis formas de acolhimento que um país cada vez mais desestruturado em termos de políticas públicas como o Brasil pode oferecer para uma crescente população de solicitantes de refúgio?

Penso que a dita “desestruturação de políticas públicas” não é um fato histórico indiscutível nem irreversível. Temos, por exemplo, um sistema de saúde e educacional comparativamente vantajoso para grande parte dos que buscam viver no Brasil, como imigrantes, ou como como refugiados. Cabe assinalar que o Brasil é um país com reduzido contingente de estrangeiros em seu território nacional. Segundo os dados disponíveis, eles não chegam a 1% da população brasileira e boa parte é remanescente dos movimentos de imigração anteriores à década de 1960.

Sobre o que o Brasil pode oferecer a solicitantes de refúgio, cabe assinalar que, embora o país tenha aderido às principais convenções internacionais e organizações de proteção a refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, só a partir de 1997 tivemos uma Lei de Refúgio e um Comitê Nacional de Refugiados (Conare) para analisar e deliberar sobre as solicitações aqui apresentadas. Desde então, foram reconhecidos como refugiados um pouco mais de dez mil solicitantes no Brasil, número que segue crescendo com casos ainda não apreciados pelo Conare e com a recente chegada massiva de deslocados venezuelanos principalmente a partir da década de 2010.

Com a pandemia do coronavírus, como esses fluxos migratórios podem ser afetados? Existem cuidados específicos para refugiados?

Os fluxos migratórios estão sendo profundamente afetados em todo o mundo. Os governos intensificaram ainda mais os controles sobre as fronteiras, inclusive fechando-as quase completamente à travessia. Há outros controles exercidos mais rigidamente sobre os pontos nodais de intensa mobilidade populacional, como portos, aeroportos, redes de infraestrutura rodoviária e ferroviária.

Historicamente, as grandes catástrofes humanitárias, como guerras, perseguições étnicas, enchentes e epidemias, estiveram sempre ligadas aos deslocamentos de população: encontrando-se ameaçada a vida de indivíduos, famílias e comunidades, a fuga costuma ser uma das respostas praticadas. Assim, eventos como as pandemias, desde a chamada “peste negra” da Europa no século XIV, passando pela dita “gripe espanhola” logo após a Primeira Guerra Mundial e pela presente pandemia do coronavírus, foram e são sempre representados por imagens destacando imensos movimentos populacionais dos que tentam escapar da doença ou da perseguição a ela associada.

Além disso, o imigrante, o refugiado, são frequentemente representados como o próprio responsável pela disseminação da enfermidade, através do seu movimento e dos seus contatos. Nesse sentido, a pandemia pode ser apresentada, pelos estabelecidos, como um mal “externo” à ordem social, cujo combate deveria se dar através da rejeição, expulsão ou isolamento dos seus supostos responsáveis.  

Qual é um panorama futuro viável frente à crise do covid-19 e de migração?

Episódios anteriores de enfrentamento das epidemias e pandemias recaíram fortemente sobre a repressão às vítimas das doenças, bem como sobre tentativas de isolamento daqueles que poderiam ser seus vetores ou portadores. Foram frequentes a expulsão, confinamento e mesmo assassinato em massa de leprosos, “empestados”, nômades e outros “estranhos”, os “estrangeiros”, alvos fáceis para a estigmatização. Não é improvável que comportamentos similares sejam adotados por ocasião da pandemia atual.

Diferentemente do que ocorreu em períodos históricos anteriores, no entanto, o mundo é hoje intensamente conectado, as viagens se dão de forma muito mais rápida e frequente. Além disso, existem as atividades dos que trabalham a terra, produzem alimentos e exercem serviços como os de reparação ou ligados à circulação que não podem ser feitas à distância e implicam em intensa mobilidade de objetos e seres humanos.  As sociedades deverão encontrar maneiras de lidar com as mobilidades e seu controle. Nesse sentido, continuaremos a ser migrantes, a fazer uso das potencialidades da migração e a criar uma possibilidade de humanidade onde o movimento seja elemento de construção.

Nota: A entrevista original, mais extensa, foi reduzida para se ajustar ao padrão usualmente publicado pela revista