Linguística histórica reconstrói línguas indígenas ancestrais

Por Beatriz Ortiz

Imagem: Xavantes, falantes da família linguística Jê, participam da cerimônia Wai’á na aldeia Namunkurá, em Barra do Garças (MT), 2015. Foto: Curso de especialização em Culturas e Histórias dos Povos Indígenas (MEC/UFU).

As mais de 30 línguas que compõem a família linguística do tupi-guarani, faladas por sociedades indígenas distribuídas em várias partes do Brasil, Paraguai, Argentina e outros países da América do Sul, nasceram de uma língua-mãe falada pelos povos originários há milhares de anos. O mesmo aconteceu com as línguas derivadas da família linguística do Jê Meridional, pertencente ao tronco Macro-Jê, hoje faladas por diversos povos indígenas, como Xavantes e Kayapó, principalmente nas regiões centro-oeste e sudeste do Brasil.

A existência da língua-mãe de um grupo de línguas é estudada pela linguística histórica, que visa à reconstrução de línguas originárias, ou protolínguas, como Prototupi-Guarani (PTG) e Proto-Macro-Jê (PMJ). A reconstrução de uma protolíngua é realizada por meio do método comparativo, que identifica correspondências regulares entre sons, formas e significados de línguas diferentes, levando ao reconhecimento de elementos cognatos e mostrando os processos evolutivos de cada língua a partir da sua origem.

Fernando Orphão de Carvalho, professor do setor de linguística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que o raciocínio da linguística histórica é análogo ao estudo da evolução. “Vamos comparar, por exemplo, o braço do ser humano, a asa do morcego e a barbatana da baleia. Apesar das diferenças óbvias entre esses órgãos, eles são homólogos evolutivamente, ou seja, vêm de algo que no passado era a mesma estrutura, mas que sofreu adaptações nas diferentes espécies. Na linguística, os elementos cognatos passam pelo mesmo processo: apesar das diferenças entre os elementos, eles remontam a uma única forma no passado, que era um elemento da língua-mãe”.

Duas hipóteses de derivação da família linguística do tupi-guarani. Imagem: Periódico Línguas Indígenas Americanas da Universidade Estadual de Campinas (Liames/Unicamp).

Como não há registro escrito das protolínguas, a reconstrução delas começa com a fonologia e a fonética e, depois, considera outros aspectos da língua, como a morfologia e a sintaxe. “A fonologia, que estuda os sistemas de fonemas, auxilia identificar correspondências regulares entre línguas; e a fonética, que se dedica aos sons produzidos pela fala humana, explica as razões fisiológicas pelas quais ocorrem diferenças de sons em línguas diferentes. Elas são necessárias para entender quais mudanças evolutivas são prováveis nas línguas e confirmar que os elementos comparados são cognatos”, detalha Carvalho.

Caminhos da ciência

Um dos primeiros estudos sobre protolínguas se deu com a reconstrução do Protoindo-Europeu (PIE), o antecessor comum de mais de 400 línguas da família indo-europeia, como português, espanhol, inglês, francês, alemão, grego, hindi e russo. A reconstrução do PIE gerou efervescência nos séculos 18 e 19, com contribuições de cientistas como Wilhelm von Humboldt, Rasmus Rask e Jacob Grimm, mas, no século 20, houve uma virada de objetivo na linguística, cuja questão central passou a ser a linguística sincrônica, ou seja, o estudo das línguas em seu estado atual.

“Apesar disso, a linguística histórica ainda é um campo de estudo, e a reconstrução do que foi possível do PIE representou uma espécie de laboratório para que mais tarde se pudesse fazer o mesmo com outras famílias linguísticas, como o PTG”, explica Márcio Renato Guimarães,  professor de linguística da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e autor da Página Indo-Europeia. Ele também explicita que, ainda hoje, existem diversos desafios na reconstrução do PIE, como a falta de documentação: “Não há possibilidade de encontrar material escrito em período tão remoto [entre 4500 a.C. e 2500 a.C], então o grande desafio é reconstruir as lacunas”.

Comparada ao PIE, vastamente estudado pelos linguistas ao longo dos séculos, a reconstrução de protolínguas indígenas, como o PTG e o PMJ, enfrenta mais dificuldades. No Brasil, destacam-se, principalmente, os trabalhos do linguista Aryon Dall’Igna Rodrigues, pioneiro nos estudos das línguas indígenas da América do Sul, e de instituições como o Museu Nacional e o Museu Paraense Emílio Goeldi. Ainda assim, a falta de materiais de referência e de pesquisadores especializados no ramo é um empecilho para o avanço dos estudos, como relata Andrey Nikulin, linguista e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

“Os linguistas históricos nem sempre têm dados e materiais de consulta suficientes sobre as línguas indígenas e os que existem são feitos quase exclusivamente por linguistas não-indígenas, o que acarreta em descrições, publicadas em dicionários, teses e dissertações, que contêm erros. No caso do PMJ, especificamente, sofre-se com a baixa quantidade e, de vez em quando, com a baixa qualidade das obras de consulta”, expressa Nikulin. Na busca por suprir essa demanda, ele trabalha, atualmente, com a formação de professores indígenas no Núcleo Takynahakỹ de Formação Superior Indígena da UFG.

Já no caso do PTG, Carvalho destaca que, embora haja fartos materiais sobre o tupi-guarani em comparação com outras famílias linguísticas da América do Sul, o principal obstáculo é a escassa documentação das línguas sincrônicas, que baseiam os estudos da linguística histórica. “É urgente fazer mais trabalho de campo com as línguas que estão vivas e, em sua maioria, ameaçadas, por serem minoritárias, estarem perdendo falantes e viverem uma situação de desconhecimento em função do português”, pontua.

Abordagem interdisciplinar

 Ao buscar desvendar o passado, a linguística histórica se correlaciona com outras áreas do conhecimento, como antropologia, arqueologia e genética. Carvalho, que é vinculado ao grupo de pesquisa Palavras, Ossos, Genes e Ferramentas: Rastreamento de Trajetórias Linguísticas, Culturais e Biológicas do Passado Humano da Universidade de Tübingen, na Alemanha, explica que cada área contribui com experimentos e metodologias próprias, trazendo evidências materiais, culturais e biológicas e complementando-se em uma visão interdisciplinar do passado.

Mapa etno-histórico com localização original dos povos Jê meridionais, em estudo sobre reconstrução do Proto-Jê Meridional. Imagem: Marcelo Jolkesky.

“A arqueologia estuda evidências materiais, como restos de assentamentos humanos e construções do passado; a genética, evidências biológicas, como características das populações e árvores genealógicas dos povos; e a linguística, a reconstrução das línguas ancestrais e as relações de contato entre as línguas”, explica o pesquisador. “A linguística dá evidências sobre as relações de aproximação e afastamento e os contatos culturais, comerciais e econômicos entre sociedades diferentes, considerando, também, a temporalidade de migrações e outros eventos históricos”.

Capaz de fornecer evidências que se convertem em teorias consolidadas para a compreensão do passado, a abordagem interdisciplinar demanda avanços na linguística histórica, especialmente na reconstrução de protolínguas indígenas oriundas da América do Sul, para mais indicações sobre o passado dos povos originários. Nesse sentido, há muito trabalho a ser feito. Afinal, como coloca Carvalho, “embora a América do Sul seja um dos maiores repositórios de diversidade linguística do planeta, ela também é uma das menos conhecidas linguisticamente em todo o mundo”.

Beatriz Ortiz é graduada em jornalismo (UFU) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)