Neide Rigo: Hortas comunitárias fazem o papel de verdadeiras guardiãs de saberes e culturas

Por Letícia Guimarães dos Santos

Neide Rigo é nutricionista e atua na área de consultoria gastronômica e curadoria de eventos. Autora do livro Mesa farta no semiárido – receitas com produtos da agricultura familiar, é também colunista do caderno Paladar, do jornal O Estado de S. Paulo e escreve no blog Come-se. Nessa entrevista, aborda a inserção de plantas alimentícias não-convencionais (PANCs) na alimentação.

Você aborda muito as plantas alimentícias não-convencionais (PANCs). O que são elas?

A sigla passou a ser usada depois do lançamento do livro de Valdely Kinupp, Plantas alimentícias não convencionais (PANCs) no Brasil, de 2014.

Trata-se, basicamente, de tudo o que há para comer, em toda a biodiversidade, mas que não é facilmente encontrado. Algumas PANCs só são encontradas nascendo espontaneamente no mato, no quintal. E abrange tudo: ervas, frutas, grãos. Não é um mundo à parte, não se trata de uma classificação botânica, então tudo o que é “convencional” está no não-convencional também. É uma classificação não estática, pois há muitas que ainda precisam ser descobertas.

Há também partes de alimentos que são consideradas PANCs, como a folhagem da cenoura, por exemplo. Por que comer só a raiz se a folha é comestível também? O mesmo acontece com a beterraba, couve-flor. Há também estágios de uma planta ou fruta que são considerados não-convencionais, como, por exemplo, o mamão verde, que é considerado uma PANC.

Como começou sua relação com esse tipo de planta?

Na verdade, eu sempre me interessei por tudo que é de comer, desde a infância. Gosto de saber o que é de comer e o que não é. Foi meio natural.

Qual a importância das PANCs? Quando pesquisamos sobre o assunto, ouvimos falar sobre segurança alimentar e até soberania alimentar. Pode comentar a respeito?

Quanto mais as pessoas conhecerem o que tem para comer, mais livres elas são da indústria alimentícia, de imposições, do que tem no mercado. Há liberdade para fazer escolhas. Você tem mais ingredientes à sua disposição para escolher. Geralmente, essas plantas, que não são cultivadas comercialmente, são mais rústicas, exigem menos água, menos defensivos. Você tem a possibilidade de ter uma alimentação melhor. E, escolhendo plantas que não estão no mercado, você consegue diversificar a alimentação também. De um modo geral, esse tipo de alimentação não tem nada de glamouroso, mas é para todos, já que pode ser encontrada facilmente.

Acaba sendo um paradoxo o Brasil ser um país com uma biodiversidade tão rica e tão pouco conhecida e aproveitada pela população?

Sim, na verdade temos uma biodiversidade enorme e não aproveitada, mas não é culpa das pessoas. Há um desconhecimento geral, e nenhum interesse da indústria alimentícia em mostrar o que se tem para comer, a não ser o produto que está no supermercado. A indústria está interessada em vender, ter lucro. Informar as pessoas, ensiná-las a serem independentes, não vai dar lucro para a empresa. De um modo geral, as empresas fazem lobby junto ao poder público, os interesses se alimentam, então as pessoas têm que correr por conta própria, aprender umas com as outras. Com as redes sociais, as coisas ficaram mais fáceis nesse sentido. Mas poderia haver maior divulgação nas escolas, por exemplo.

Como você vê a questão de educar as pessoas para essa cultura de consumo das PANCs?

Sofremos de analfabetismo botânico, de um modo geral. Não aprendemos na escola, então há dificuldade de reconhecer, saber que planta é venenosa, qual não é. Penso que tudo o que eu sei, tenho a obrigação de dividir. Não sei se isso se chama ativismo, mas me sinto na obrigação de mostrar a quem não sabe. Nenhum conhecimento tem valor se fica só com você. Quanto mais a gente divide, mais a gente sabe também. Comecei tudo com o blog, há mais de 10 anos, e o Instagram é algo mais recente. Quando comecei, as PANCs nem se chamavam assim.

Você usa o seu perfil no Instagram para fazer este tipo de informação chegar até as pessoas. Você promove isso também de outras maneiras? E como fazer as plantas propriamente ditas chegarem às pessoas?

Não dá para ficar esperando, é preciso correr atrás. As pessoas falam “nossa, mas eu não acho no mercado”, então é preciso conhecer, pois isso possibilita que um dia, estando de frente com aquela planta, saiba qual é. E também gerar curiosidade para procurar quem tenha, como pequenos produtores, por exemplo. Muitas dessas plantas nascem como ervas daninhas nas produções, então eles poderiam, no meio da alface, que gasta tanta água, colher bredo, caruru, que não gastam nada de água e estão ali, de graça, e podem vender. O consumidor pode gerar demanda, procurar. Não existe só uma forma de comprar, no supermercado ou na feira. Você pode também ir à feira de produtores, em viagens para outras regiões, por exemplo. É preciso ficar de olho.

Nas redes sociais você mostra que cuida da horta do seu bairro, na Lapa, em São Paulo. Você acha que essa questão das PANCs, essa troca de saberes, também é um resgate desse valor de viver em comunidade, manter uma horta comunitária, trocar mudas e sementes?

Em São Paulo existe um movimento grande agora de hortas urbanas, e uma das características em comum delas é o uso de PANCs. Sempre estamos em contato para trocar mudas, sementes, resgatando espécies esquecidas, pouco valorizadas. É um espaço de resistência, e essas hortas comunitárias fazem o papel de verdadeiras guardiãs desses saberes, dessas culturas. São lugares com um grande potencial para as PANCs, porque muitas vezes não há irrigação, são hortas de chuva, com ora-pro-nóbis, taioba e vários chás, também não convencionais.

Existem PANCs em todos os biomas?

Sim, e no mundo todo. Algumas mais conhecidas, outras não. Em muitas regiões, o que para uns é PANC, para aquela população não é, porque já estão acostumados a usar. Em Minas Gerais, principalmente nas áreas mais rurais, usam bastante coração de banana, taioba, urtiga.

É preciso fortalecer a comunicação entre pesquisadores, chefes de cozinha, investimento em centros de pesquisa, para que haja uma popularização das PANCs? 

Sim, é sempre bom que haja esse tipo de comunicação. Já existe, mas ainda é pouco. Há alguns festivais, por exemplo, onde biólogos e chefes falam sobre o assunto, mas é preciso investir mais nisso. O movimento de cientistas pesquisando sobre PANCs está crescendo. Recebo muita gente fazendo trabalhos de conclusão de curso, mestrado, doutorado. É algo que, aos poucos, tem crescido.

Em sua opinião, há ainda preconceito em relação ao consumo das PANCs?

Sim, ainda tem gente que acha que comer matinho, ou uma fruta diferente, não dá. Mas também não estamos propondo que a alimentação seja inteira substituída por PANCs. É para complementar e aumentar a biodiversidade, já que é quase impossível trocar toda a alimentação por essas plantas.

Como estimular o plantio de todos os grupos de PANC pode ajudar no meio ambiente?

Sabemos que biodiversidade é sempre melhor do que uma monocultura. Quanto mais espécies houver num lugar, melhor para a fauna e flora. Há a questão também de como essas plantas costumam nascer sozinhas e não precisam de muitos cuidados, elas não exigem o uso de defensivos químicos.

  • Crédito imagem: Silvia Lopes