Os desafios para um modelo realmente sustentável e inovador de desenvolvimento da Amazônia  

Por Helder Queiroz e Mercedes Bustamante

O ano de 2020 certamente vai ficar marcado na memória das atuais gerações, e seus impactos também serão sentidos na vida das que virão. Não apenas por conta da pandemia que assola o planeta, mas também pela forma pela qual ela explicitou as iniquidades. No Brasil, as imensas desigualdades regionais são exibidas na Amazônia pelos seus baixos índices de desenvolvimento humano, resultado de seu abandono e da ausência do Estado.

A trajetória econômica da Amazônia é uma sucessão de ciclos extrativos que, no período da ditadura militar, foram substituídos por um modelo centralizador de industrialização, baseado em isenções fiscais e importação de insumos industriais de alta tecnologia. O extrativismo, entretanto, seguiu como um dos importantes eixos da economia da Amazônia, variando seu peso de 4 a 26% do PIB nos seus estados. Tanto os ciclos extrativos do passado quanto o modelo industrialista vigente possuem algumas características em comum. Não geram um desenvolvimento inclusivo e concentram riqueza.

As populações excluídas adotam como alternativas a atividade do comércio de bens extrativos, e o próprio extrativismo, ainda que principalmente para fins de subsistência nas milhares de pequenas comunidades rurais do interior da Amazônia, que não conseguem acesso aos mercados regionais e nacional. Quando as forças de globalização dos mercados se intensificaram, este isolamento se acirrou, e a exclusão ficou mais evidente.  No entanto, a preocupação mundial com o meio ambiente e com a conservação da biodiversidade uniu as agendas de ambientalistas, comunidades tradicionais amazônicas e, em alguns momentos, até mesmo alguns governos. A convergência das agendas buscou bons níveis de conservação, sem que os moradores locais fossem alijados do processo. Em muitos desses momentos eles foram protagonistas da conservação, garantindo que os recursos naturais continuassem sendo extraídos com menos impactos, em quantidades adequadas, mantendo graus toleráveis de alteração dos ambientes, e conquistando ligação mais direta com mercados remotos e uma remuneração mais justa pelos produtos.

Neste período, o conhecimento tradicional daquelas populações foi mais valorizado pelos formuladores de políticas públicas. Como resultado de milênios de experiência acumulada, os detentores desse conhecimento sabiam como manejar mais adequadamente a floresta e seus componentes. Algumas de suas práticas tradicionais são consolidadas sobre eficazes critérios de sustentabilidade, mesmo quando altos volumes de extração são aplicados, atendendo a uma intensa demanda.

A partir da última década do século XX, o manejo sustentável de recursos naturais realizado com base no conhecimento tradicional passou a representar uma opção concreta de organização das antigas economias extrativas, e um modelo alternativo para a promoção do desenvolvimento regional. Um modo mais inclusivo, que formaliza a atividade de grande parte da mão de obra, promove o acesso a diferentes mercados compradores, possibilita remuneração mais justa, e fortalece economias locais, muitas vezes ainda baseadas em antigos arranjos extrativos.

A expansão desta forma alternativa de organização da atividade extrativa nas últimas décadas reafirmou o papel crucial das populações tradicionais e comunidades locais, e do conhecimento a elas associado, numa nova e promissora economia centrada na sociobiodiversidade. A crescente importância da bioprospecção somou-se a essa tendência, por meio da busca de princípios ativos da biodiversidade com aplicação em setores como a farmacêutica, a cosmética, a nutricêutica. As formas mais tradicionais de extrativismo, agora em modo reorganizado, passaram a ser vistas como essenciais também para a garantia da segurança alimentar e da qualidade de vida para uma enorme proporção da população rural amazônica. Entretanto, após essa expansão, os modelos alternativos de desenvolvimento local baseados na floresta e no conhecimento tradicional enfrentam agora seu maior desafio. Em movimento perturbador, vemos a inversão da direção das políticas públicas. O desmonte das políticas ambientais e um forte desprezo pelas populações tradicionais e comunidades locais criaram condições para o recrudescimento do desmatamento e das queimadas. E a sua negação explícita tornou-se uma política de governo. Vemos a recriação do Conselho da Amazônia, e a incorporação de velhas fórmulas de desenvolvimento regional ao discurso do governo federal.

Em alternativa às formas predatórias de uso do solo na Amazônia, a bioeconomia vem sendo citada com frequência. No entanto, é preciso considerar perspectivas históricas e os diferentes contextos sociais e ambientais. O conceito emergente de bioeconomia ainda vem sendo construído. Encontramos, nos diferentes órgãos oficiais e também em diferentes organismos internacionais, definições um tanto distintas de bioeconomia. Enquanto alguns a percebem como todo o conjunto amplo de atividades econômicas e sistemas produtivos baseados em recursos biológicos renováveis, outros a veem como uma economia baseada em recursos da sociobiodiversidade e do extrativismo. Há ainda definições que enfatizam o aspecto biotecnológico, os insumos químicos e as fontes alternativas de energia, sugerindo sua dissociação com os processos tradicionais de uso da biodiversidade e uma ligação a sistemas de produção de alta intensificação tecnológica. Ainda não há um consenso aparente, o que permite que diferentes noções se abriguem em propostas genéricas de “bioeconomia”. Apesar da diversidade de visões, podemos sempre entender a bioeconomia como uma forma de expressar o valor latente subjacente aos materiais e produtos biológicos, oferecendo oportunidades para um crescimento econômico sustentável. O alto potencial do Brasil para a bioeconomia já estava presente na Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para o período 2012-2015, como um dos principais objetivos elencados (“Desenvolver biotecnologias inovadoras que agreguem valor, promovam o uso sustentável da biodiversidade e integrem novas tecnologias).

Hoje, conceitos mais vagos de bioeconomia parecem ganhar tração no discurso do governo federal, servindo talvez como anteparo às críticas à sua gestão ambiental temerária e leniente com tantos crimes ambientais. No entanto, a crer na aparente convergência de discurso de fortes setores da economia brasileira em prol da sustentabilidade, é fundamental avaliarmos quais são as políticas e ações necessárias para estruturar uma verdadeira bioeconomia, uma economia realmente baseada na sociobiodiverdade e voltada para os interesses das populações e comunidades locais. A necessidade de tal avaliação não se restringe à Amazônia, mas inclui todos os biomas terrestres e aquáticos do país.

O Brasil detém enorme capital natural e a maior biodiversidade do planeta. A construção de um novo modelo de desenvolvimento com base na associação das diferentes formas de conhecimento e tecnologias inovadoras só será viável se a ênfase na bioeconomia estiver ancorada na conservação, no respeito às populações tradicionais, e na redução do desmatamento e da degradação dos ambientais naturais. Uma economia com base na sustentabilidade não pode prosperar onde persiste a exploração predatória ilegal e os ataques aos direitos fundamentais das populações que dependem diretamente dos ecossistemas.

É urgente reavaliar o ambiente regulatório, que ainda apresenta substanciais gargalos, e articular a ação das diferentes agências. Tal processo exige uma participação ampla, transparente e equitativa de todos os atores (governos, empresas, instituições de pesquisa e populações tradicionais).

Uma verdadeira bioeconomia depende também de ações estruturantes que ampliem, consolidem e conservem o conhecimento científico sobre a biodiversidade brasileira para entender os padrões de sua distribuição geográfica e acompanhar suas mudanças ao longo do tempo. Avaliar quais interesses serão atendidos por uma estratégia de desenvolvimento com base na bioeconomia é também uma providência urgente. Em vez de promover uma bioeconomia “socialmente cega”, é preciso reconhecer e valorizar as abordagens bioculturais dos povos tradicionais e comunidades locais que, ao longo de tantos anos, desenvolveram um profundo conhecimento sobre o meio ambiente e a biodiversidade em seus territórios. É destas populações que devem brotar os protagonistas de suas próprias bioeconomias, os empreendedores e os principais beneficiários.

Historicamente, a maioria dos modelos de desenvolvimento exógenos que foram adotados até hoje afetaram negativamente a Amazônia, seus povos tradicionais e suas comunidades locais. Muitas dessas políticas de desenvolvimento contribuíram para a expropriação de territórios indígenas e para a exploração indiscriminada dos recursos naturais, os fatores que levaram ao agravamento das condições de vida desses grupos que vemos hoje, algo ainda mais evidente durante a pandemia. Geralmente as violações de direitos individuais e coletivos ocorrem em processos de desenvolvimento impostos de cima para baixo, não naqueles compartilhados e implementados com as comunidades envolvidas.

Com base nessa perspectiva histórica, a proposta de uma bioeconomia para a Amazônia não deve restringir o papel dos povos tradicionais e comunidades locais ao mero fornecimento do conhecimento que possuem sobre recursos biológicos, e à atuação como coletores de matérias-primas de baixo valor agregado, operando apenas na base das cadeias de valor – verdadeiros proletários da floresta. Convenções internacionais, programas emergentes de certificação para biocomércio e muitas outras jurisdições exigem agora que os povos tradicionais e comunidades locais estejam envolvidos na tomada de decisões e na repartição equânime de benefícios do uso de recursos biológicos. Tais benefícios não podem ser reduzidos apenas a seu aspecto econômico, mas devem incluir benefícios políticos, culturais, sociais e ambientais. Esta é a verdadeira bioeconomia, cuja adoção postulamos.

É necessário usar de maneira sábia as oportunidades que surgirão na retomada pós-pandemia, e construir uma verdadeira bioeconomia como rota para o desenvolvimento sustentável e para a conservação. Esta deve ser uma alternativa à economia tradicional, e não apenas uma repetição do modelo excludente e impositivo, que importa tecnologias para o uso dos recursos naturais da região. Sem isso, ela será apenas o canto das mitológicas sereias – sedutor, mas que só conduz ao desastre.

Helder Queiroz é doutor em environmental and evolutionary biology pela University of St Andrews (Escócia) e pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Mercedes Bustamante é doutora em geobotânica pela Universitat Trier e professora da Universidade de Brasília.