Perda de biodiversidade ameaça desenvolvimento científico e inovação, alertam especialistas

Daniel Pompeu

Arbusto do gênero Vellozia, estudado por cientistas do Centro de Pesquisa em Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas (GCCRC) para desenvolvimento de biotecnologia agrícola. Foto: GCCRC/Divulgação

De acordo com dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), 2020 foi o ano em que houve maior volume de queimadas no Pantanal desde o início da série histórica do órgão, em 1998. Estima-se que cerca de 30% do bioma tenha sido devastado, prejudicando diversas populações de animais e plantas. Com relação à Amazônia, houve no ano passado um aumento de 34% no desmatamento se comparado ao ano anterior.

A degradação ambiental acelera o processo de aquecimento global, resulta em perda de biodiversidade e pode até mesmo contribuir para o surgimento de novas doenças, como a Covid-19. Para a ciência, as perdas são imensuráveis.

No Centro de Pesquisa em Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas (GCCRC), parceria entre Embrapa, Unicamp e Fapesp, os pesquisadores estudam plantas da família Velloziaceae para o desenvolvimento de tecnologia que possa adaptar a agricultura a eventos de seca e calor, incluindo aqueles causados pelas mudanças climáticas. As Vellozias (popularmente conhecidas como canela-de-ema) são espécies que naturalmente resistem a estresses encontrados nos campos rupestres, que ocorrem em regiões de altitude, sobretudo em Minas Gerais, mas também na Bahia. Muitas dessas plantas são endêmicas, ou seja, só encontradas nesta ecorregião, que é cercada por três biomas: Caatinga, Cerrado e a Mata Atlântica. Apesar de representar menos de 1% do território brasileiro, os campos rupestres concentram cerca de 15% da flora nativa do país. Há alta incidência de radiação solar, períodos longos sem chuvas e solo pobre em nutrientes, como o fósforo. Tais características seriam, no geral, um empecilho para o desenvolvimento da vegetação, mas não para as Vellozias.

“Elas suportam perder quase toda a água das células, elas desmontam todo seu aparato fotossintético, as folhas se tornam secas e parecem estar mortas. Mas não é verdade. Depois da primeira chuva, retomam rapidamente suas atividades metabólicas, e as folhas que estavam secas voltam a ficar verdes, retomando a fotossíntese. Essas espécies são, por isso, chamadas de ressurgentes ou revivescentes”, explica Isabel Rodrigues Gerhardt, pesquisadora da Embrapa e do GCCRC. De acordo com Gerhardt, essas estratégias para lidar com a seca estão gravadas no código genético dessas plantas.

A Vellozia nivea é considerada uma espécie ressurgente. Durante a escassez hídrica suas folhas secam e após a primeira chuva a planta retoma suas atividades metabólicas, adquirindo a cor roxa antes de voltar a ficar verde. Foto: Divulgação/GCCRC

“Queremos ler o que está escrito nos genomas delas, identificar sequências de DNA, como genes associados a essa capacidade de lidar tão bem com múltiplos estresses ambientais, e usar essa informação genética para outras espécies”, diz a pesquisadora. O objetivo é mapear e transferir essa informação genética que permite a resistência das Vellozias para culturas agrícolas como milho, soja ou feijão. Afinal, no processo de mudanças climáticas todas precisarão se adaptar.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que reúne especialistas sobre o tema, estima que, até o fim do século 21, a média do clima global possa estar cerca de 2ºC mais quente do que em níveis pré-industriais. No Brasil, esse aumento pode resultar em seca e desertificação de determinadas regiões, além do aumento da incidência de eventos climáticos extremos.

Como um país que tem sua cadeia produtiva altamente dependente da agricultura e recursos naturais (incluindo a produção de alimentos, biocombustíveis e commodities para exportação), o Brasil será duramente afetado pelas mudanças climáticas. Para garantir a segurança alimentar e tentar reduzir as perdas de produtividade agrícola nas próximas décadas, os cientistas buscam o desenvolvimento de novas tecnologias que possibilitem a adaptação a esses efeitos.

No final de setembro do ano passado, um incêndio de grandes proporções na Serra do Cipó, que fica na região central de Minas Gerais, preocupou os pesquisadores do GCCRC. Parte da coleta de Vellozias feita pelos cientistas para estudo é realizada naquela região. Estimativas apontam que mais de 16 mil hectares de mata nativa foram queimados.

Bioeconomia na Amazônia

As queimadas testemunhadas no ano passado também aqueceram o antigo debate sobre a relação entre atividades econômicas, desenvolvimento regional e conservação ambiental. Há quem defenda que regiões como o Pantanal e a floresta Amazônica devam permanecer intocadas para que sejam preservadas. Mas algumas iniciativas promotoras da chamada bioeconomia propõem uma alternativa: o desenvolvimento socioeconômico dessas regiões, respeitando os limites ambientais e promovendo a sustentabilidade. Em uma das vertentes da bioeconomia, universidades, empresas e outras instituições buscam na biodiversidade local inspiração para o avanço de tecnologia e inovação, revertendo os ganhos gerados com o processo para o desenvolvimento regional.

O Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBioeconomia), criado pela Suframa, a Superintendência da Zona Franca de Manaus, visa à promoção dessa lógica na região amazônica. O programa faz a ponte entre empresas do Polo Industrial de Manaus (PIM) e iniciativas promotoras da bioeconomia. O apoio financeiro das empresas com relação a essas iniciativas é parte da contrapartida pelos incentivos fiscais recebidos do governo federal. “Vale a pena identificar quem já tem o conhecimento sobre a biodiversidade amazônica a auxiliar para que este conhecimento se converta em soluções que movimentem a economia local de forma sustentável”, defende Carlos Gabriel Koury, coordenador do PPBioeconomia e diretor técnico da Idesam, ONG que conduz o programa desde 2019.

De acordo com Koury, nos últimos dois anos, seis produtos ou tecnologias foram desenvolvidos no âmbito do PPBioeconomia, incluindo quatro cosméticos voltados para o mercado exterior baseados em bioativos amazônicos e uma plataforma de monitoramento climático e desenvolvimento de estratégias de combate a incêndios florestais. O PPBioconomia tem se reunido com empresários do PIM para estabelecer uma agenda de investimentos para os próximos anos. Como exemplo do potencial da inovação baseada na biodiversidade o coordenador cita a biomimética, ciência que estuda estratégias e soluções presentes na natureza. Há cerca de dez anos, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) desenvolveram um grampo de sutura para cicatrização a partir da observação do formato e funcionamento da mandíbula de uma formiga. O produto se tornou uma das patentes mais bem-sucedidas da instituição.

“Não é simples e não acontecerá em curto prazo, mas se o Brasil iniciar um apoio sistemático e continuado para a formalização e aumento do grau de instrumentalização das diversas cadeias produtivas de produtos amazônicos, incluindo óleos vegetais, resinas, madeira, fibras, pescado, e também na geração de soluções inspiradas na biodiversidade da Amazônia, teremos iniciado o ‘deciframento‘ da biblioteca de conhecimento chamada Amazônia e fazendo surgir assim uma nova economia de base nos ativos naturais da região”, defende Koury.

Para que essas possibilidades se concretizem, entretanto, é preciso que os biomas naturais e suas respectivas floras e faunas sejam preservados. Para o coordenador do PPBioeconomia, a relação é direta. “Menos floresta, menos biodiversidade, menos bioeconomia de base nos ativos da natureza”, finaliza.

Daniel Pompeu é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência (Fapesp).