Por Graciele Almeida de Oliveira e Bruno Moraes
Estudos relacionados ao controle da dor e da hipertensão mostram que de 30% a 40% dos pacientes tratados com efeito placebo apresentam melhora, o que indicaria algum papel da sugestão e da mente sobre a fisiologia. Mas a medicina baseada na ciência não tem substitutos, e não há previsibilidade em relação à eficácia do efeito placebo para cada pessoa.
A medicina busca, em fármacos e tratamentos, resultados que tenham eficácia maior que a do chamado “grupo placebo”. Ainda assim a ocorrência de melhoras de diversos quadros clínicos apenas pelo efeito placebo é intrigante. Adicionalmente, grupos de pesquisa que se debruçam sobre a questão do quanto o otimismo ou a fé de pacientes em algum tipo de proteção sobrenatural influencia seus prognósticos sugerem que crenças mantidas pela mente podem afetar, de forma positiva, a saúde geral de uma pessoa.
Na maior parte das culturas humanas tradicionais, estados de saúde ou de doença do corpo estão intimamente ligados a questões sobrenaturais. Curas espirituais, consultas a ancestrais a respeito de enfermidades e da morte, pajelanças, orações, amuletos, cânticos e mentalizações estiveram — e ainda estão — no centro de crenças sobre o tratamento de inúmeras doenças, não apenas da mente. Essas crenças existem há milênios e estão presentes nas origens da medicina ocidental na Mesopotâmia, Egito e na Grécia.
O papiro de Edwin Smith, nome dado em referência ao seu descobridor, é considerado um dos mais antigos textos relacionados à medicina. O papiro foi datado por volta de 1600 a.C. e contém uma parte com instruções cirúrgicas e feitiços mágicos. Alexander Brawanski, professor de neurocirurgia da University Hospital Regensburg, discute a relação entre a medicina e a magia presente no papiro de Edwin Smith em seu artigo “On the myth of the Edwin Smith papyrus: is it magic or science?”. Nele, contextualiza a obra no Egito antigo, em que a magia e o sobrenatural faziam parte da sociedade da época e eram usados para explicar os fenômenos ainda desconhecidos relacionados à medicina da época.
Mesmo o “pai da medicina”, Hipócrates (470 A.C – 377 a.C), trabalhava com a noção de que deuses e espíritos estariam envolvidos na causa e na cura de enfermidades. Se no passado acreditava-se que as doenças eram originadas da vontade dos deuses, demônios, magia e influência dos astros, com o passar do tempo a ciência vem desvendando suas origens e trazendo grandes avanços nos processos de cura.
Evidências recentes de pesquisas na área de saúde pública têm sugerido uma relação mais íntima entre a vida espiritual de pacientes, o avanço de seus prognósticos e seu bem-estar geral no processo de conviver e superar seus quadros de doença. Por trás dessas pesquisas, métodos derivados do mesmo racionalismo científico são aplicados para entender o que acontece no organismo das pessoas durante essa interação entre o metabolismo cerebral, as crenças em relação a uma doença e o avanço da doença em si.
Mas será que a fé e a religiosidade são fatores essenciais para uma boa saúde? Natália Pasternak, bióloga, pesquisadora colaboradora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de São Paulo (USP) e diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), discorda: “Fé não necessariamente promove o bem-estar. Por fé suponhamos que a pessoa acredita em alguma coisa sobrenatural. Isso não quer dizer que só por ter fé ela vai se sentir melhor ou mais otimista, pelo contrário, algumas pessoas religiosas podem se sentir extremamente pessimistas, especialmente quando estão doentes temendo o pós-vida. O contrário também é válido, ou seja, existem vários ateus extremamente positivos em relação à vida sem ter fé nenhuma.”.
Ana Paula Rodrigues Cavalcanti, professora do curso de ciência das religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), estuda a interface entre religião, religiosidade, espiritualidade e saúde. Em uma das suas pesquisas ela estudou a relação entre o controle da pressão arterial e a religiosidade. Nos pacientes, a religiosidade apresentou um papel importante no controle da hipertensão.
Então, o que levaria à melhora nesses pacientes que se apegaram à fé durante o tratamento? Uma das mais prováveis respostas pode estar no efeito placebo. Natália, que recentemente escreveu um artigo sobre isso, explica que “a fé pode gerar um efeito placebo no paciente, todo baseado em condicionamento. Se a pessoa está condicionada a acreditar que, se ela reza, ela vai melhorar, isso gera um efeito placebo. É a mesma coisa que ela tomar uma pílula de açúcar, como na homeopatia. Se ela está condicionada a acreditar que isso vai fazer passar a dor, isso vai passar a dor até certo nível.”.
O efeito placebo também foi levado em conta nos estudos realizados pelo grupo de estudos de Draulio Araújo, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Draulio vem estudando os efeitos neurais associados à ayahuasca. “A ayahuasca é um composto originário dos índios da América do Sul que a utiliza como parte de processos de cura. Em 1930, os centros urbanos menores do norte do Brasil, como no Acre, passaram a ter mais contato com o composto. Foi quando foi fundada a Igreja do Santo Daime, que passou a usá-la em seus rituais. Outras religiões que usam a ayahuasca em seus rituais foram fundadas mais tarde”, explica o pesquisador.
Para avaliar o efeito antidepressivo da ayahuasca em quadros de depressão severa, Draulio e sua equipe realizaram um ensaio aberto, recrutando pacientes que não estavam respondendo ao tratamento medicamentoso convencional para a depressão e os submeteram a uma única dose de ayahuasca, avaliando em escala clínica seu impacto agudo e subagudo na depressão.
O grupo de pesquisa de Draulio teve também uma preocupação com o impacto da religiosidade em sua pesquisa: “Começamos um estudo clínico dentro de um hospital. Nossa proposta era desvincular o processo religioso, que acreditamos ter um impacto no terapêutico, provavelmente ligado ao efeito placebo”.
“Todo tratamento médico tem um efeito placebo associado. Nós somos condicionados a sermos medicados, tratados, passar por intervenções. Cada vez que somos submetidos a esse tipo de tratamento somos submetidos ao efeito placebo.”, aponta Natália, do IQC.
Draulio explica que, em estudos clínicos, aproximadamente 40% de pacientes que estão em um grupo que fez uso de uma substância placebo vão melhorar. Para estudos relacionados à depressão resistente ao tratamento, complementa: “Boa parte desses pacientes tem um quadro de depressão muito longo e vem convivendo com a doença por 10, 15, 20 anos, testando diferentes medicamentos sem sucesso. De repente, esse paciente se encontra em um ambiente com uma equipe de profissionais supercompetentes, todos com o objetivo de criar uma solução para o problema dele. Ele chega com a perspectiva de que ‘dessa vez vai dar certo’.”.
No estudo da equipe de Draulio, embora o efeito placebo esteja presente e seja elevado, o efeito antidepressivo da ayahuasca foi superior e se manteve com o tempo, enquanto no grupo placebo foi diminuindo.
“São poucas as pessoas que têm a possibilidade de observar o efeito placebo. Eu tive a chance de ver pessoas que chegaram ao laboratório que praticamente não andavam, pessoas que tinham um quadro de depressão havia 25 anos e que em uma sessão com placebo saíram do hospital sem sintomas. É o efeito mais lindo que eu já vi como cientista, o mais impressionante.”, conta Draulio.
Carlos Orsi, jornalista e diretor no IQC, é mais cético: “O efeito é real e fisiológico, mas não se justifica por si só. Edzard Ernest, professor emérito da University of Exeter, no Reino Unido, apresentou três razões pelas quais terapias baseadas em efeito placebo são deletérias: ele é inconsistente, ou seja, as pessoas não têm a mesma suscetibilidade ao efeito placebo; ele é limitado, funciona com analgesia de curto prazo e não na cura para todas as patologias, como o câncer; induz pessoas a acreditar em práticas não confirmadas pela ciência e dessa forma é antiético”.
Tratamentos alternativos e o Sistema Único de Saúde
Ana Paula, da UFPB, explica os resultados encontrados em um dos seus estudos: “Nós mostramos e argumentamos que o recurso da religiosidade era uma estratégia importante que deveria ser considerada na hora de se estabelecer políticas, ou mesmo na forma como o profissional da área médica vai lidar com o paciente. Isso tudo no contexto da saúde pública.”.
Desde 2006, está implantada no Brasil a Política Nacional de Práticas Integrativas Complementares no SUS que atualmente conta com uma grade de 29 práticas (PICs). Dessas, apenas duas, a homeopatia e a acupuntura, são reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em nota de 13 de março de 2018, o CFM afirmou que a inserção de dez modalidades de PICs não apresentam comprovação científica. Ainda de acordo com o conselho, prescrição e uso de procedimentos sem comprovação científica são proibidos aos médicos brasileiros.
“Se pegássemos todo o investimento feito na implementação das PICs no SUS e investíssemos no aumento do tempo de consulta e na capacitação dos profissionais teríamos uma melhora no atendimento e na saúde pública. As PICs não apresentam nada de concreto cientificamente”, afirma Natalia. “Elas endossam práticas que não são eficazes, não funcionam e podem levar a população a se desviar da medicina de verdade. A longo prazo podem trazer prejuízos.”.
Orsi chama atenção para o uso da bandeira da humanização da relação médico-paciente como pretexto para implementação das PICs. E ressalta que é possível fazer humanização sem recorrer a essa infiltração das chamadas práticas complementares. O jornalista lembra que artigos publicados recentemente mostram que a adesão a terapias alternativas diminui a expectativa de vida do paciente em tratamento de câncer. Um exemplo é o estudo publicado no Journal of the National Cancer Institute, que mostrou que o uso de práticas alternativas no câncer leva à diminuição da sobrevida dos pacientes na comparação com os que optam pelo tratamento convencional.
Trabalhando nas fronteiras
Pesquisadores vêm apontando a importância da dimensão das crenças para a saúde, o que abre espaço para novas perspectivas na ciência. A pesquisa pode levar a uma compreensão mais ampla sobre o funcionamento do cérebro, representando ganhos substanciais na qualidade de vida de pacientes.
“Eu comecei a me interessar pelo controle emocional de sintomas físicos. Ou seja, como aquilo que te ajuda a mudar um padrão emocional vai mudar, consequentemente, um padrão de resposta física. Junto a uma colega da UFPB, especialista em psiconeuroimunologia, fiz leituras a respeito e começaram a ficar mais claras as bases biológicas e psicobiológicas dessa dinâmica de emoções e estado mental levando a um padrão biológico em outras partes do corpo.”, conta Ana Paula. Com base em seus estudos, a professora formou um novo olhar para o fenômeno da saúde. Hoje, está convencida de que estratégias de saúde que visem entender um quadro clínico e dar o suporte e tratamento a pacientes devem partir de pontos de vista interdisciplinares.
“A área da antropologia médica está interessada em entender o que as pessoas procuram [para cuidar de sua saúde]. Porque tem uma dimensão de crença, de cultura, que é algo que não é possível produzir artificialmente em laboratório para conseguir estudar. O que se faz é ir a campo e estudar o que acontece [em termos de crença e percepção dos envolvidos, sejam pacientes ou figuras religiosas]. Esses relatos costumam ser mais descritivos. A parte exploratória, e a de se tentar fazer ligações com conhecimentos na área médica ainda está por ser levada adiante no Brasil.”, ressalta a pesquisadora.
Em consonância com essa abertura de portas, a Organização Mundial de Saúde publicou, em 1998, as diretrizes específicas para a abordagem das crenças, religiões e espiritualidade das pessoas para a elaboração do questionário a respeito de qualidade de vida.
Ana Paula não vê a religião como única fonte para o bem-estar e afirma: “Para a área da saúde é muito cara a ideia de que você não precisa ser devoto de uma religião ou ter práticas religiosas para que apareçam consequências na saúde física e mental. Há inclusive estudiosos que apontam que o movimento ambientalista e a relação [de seus membros] com a natureza representaria uma forma de vivência espiritual, com uma crença no bom resultado para a saúde do empenho das pessoas em preservar, recuperar e proteger outras vidas.”