Sobre não se contentar com a superfície: Nise – o coração da loucura

Por Raquel Torres

“Eu não acredito em cura pela violência”. Esta é a resposta de Nise da Silveira (1905-1999) ao ser apresentada a métodos de tratamentos psiquiátricos como lobotomia e eletroconvulsoterapia (eletrochoques). A fala resume a visão de medicina e posição ética dessa médica pioneira, que revolucionou a psiquiatria no Brasil.

Nise – o coração da loucura, longa metragem produzido em 2016 com Glória Pires no papel principal, e direção de Roberto Berliner, retrata um momento específico da trajetória de Nise, o período em que saiu da prisão (onde permaneceu por 18 meses) e retomou o exercício da medicina no hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro, em 1944.

O modo como Nise entendia a medicina e a forma amorosa como acolhia os pacientes (ou “clientes”, como ela os chamava) entraram em conflito com os métodos psiquiátricos vigentes, agressivos. Assim, a coordenação do hospital a afastou da prática clínica, e a direcionou ao setor de terapia ocupacional, até então comandado por enfermeiros.

É nesse momento da sua carreira que a alagoana, que entrou com 15 anos na faculdade de medicina, na Bahia, dá início à sua revolução na psiquiatria brasileira e lança as bases para o fortalecimento da terapia ocupacional no país. Os pacientes agora não mais fariam serviços de limpeza de latrinas, costura e pequenos consertos, mas, aos poucos, passariam a trabalhar em um verdadeiro ateliê de artes plásticas, onde poderiam pintar e modelar.

A aposta de Nise se baseava nas artes plásticas como uma saída para que os internos elaborassem seus sentimentos, e se expressassem simbolicamente, retomando vínculos com a realidade.

Pela afinidade teórica, que se confirmava na prática dos trabalhos cotidianos, Nise se aproximou do pensamento de Carl Gustav Jung (1875-1961) e da psicologia analítica, entrando em contato e se correspondendo com o influente psiquiatra suíço. A aproximação entre eles possibilitou, mais tarde, a exposição das obras produzidas pelos clientes de Nise no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique, em 1957, evento cuja abertura foi feita por Jung, onde as obras foram apresentadas e interpretadas. A proximidade de Nise com a psicologia analítica permitiu a introdução e a divulgação desta teoria no país.

A despeito de sua “cisão” psíquica, os pacientes psicóticos produziam pinturas complexas e harmoniosas, segundo Mário Pedrosa que, como importante crítico de arte do período, apresentou os autores dessas obras – Raphael Domingues, Lúcio Noeman, Carlos Pertuis, Adelina Gomes, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Octávio Ignácio – como grandes artistas. “Inacreditável encontrar obras desse porte em um lugar como esse. E o que impressiona é como que eles conseguem transformar esse mundo interno em arte, sem nenhum conhecimento técnico”.

A prática da pintura, seus resultados e o constante estudo sob a luz da psicologia analítica, levaram Nise a compreender as psicoses por meio do que seus pacientes expressavam no ateliê. As pinturas possibilitavam a emergência de conteúdos do inconsciente, de modo que, além de o trabalho com artes plásticas ter um efeito terapêutico, era também um caminho para o “mundo interno” dos pacientes, sua elaboração e, com isso, sua recuperação psíquica.

Nas pinturas produzidas no ateliê, eram recorrentes figuras circulares, próximas de mandalas, formas que, segundo Jung, sinalizavam o potencial que essas imagens tinham de “reorganizar e curar” a psique.

Para Nise, a pintura era um modo de resgatar uma certa linguagem. “A esquizofrenia está associada à perda da linguagem lógica; mas hoje eu tenho certeza que eles estão se comunicando numa outra linguagem, uma língua esquecida por nós, que precisamos reaprender. Essas imagens são imagens do inconsciente”, diz.

A produção de Emygdio de Barros, cujo legado é de 3.300 obras, se destaca. Após 23 anos de internação, ele revelou um talento incomum e alto nível artístico, mesmo sem ter pintado antes. A produção artística intensa dos pacientes culminou na criação do Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, no Rio de Janeiro. A instituição, com mais de 350 mil obras, é um centro de estudo e prática, onde os frequentadores criam novas obras e compartilham experiências. O acervo continua a crescer, na medida em que novos artistas surgem e são reconhecidos no mundo das artes.

O filme relata o surgimento e o desenvolvimento da terapêutica proposta por Nise. Sua luta foi árdua, não apenas porque se opôs à visão predominante da psiquiatria da época, mas também porque, convém lembrar, era uma mulher médica entre tantos homens, o que certamente agravava seus obstáculos. Nise se formou em 1926, e era a única mulher de sua turma.

Como instrumento de trabalho, a médica recusou o “picador de gelo”, optando pelo “pincel”, o que denota a sensibilidade de uma médica à frente do seu tempo. Alguém que, corajosamente, questionava resultados supostamente científicos, acrescentando às práticas terapêuticas tanto as artes, quanto o afeto e o acolhimento, estes últimos entendidos como fatores fundamentais para a melhora individual.

Durante o Estado Novo, antes de iniciar seu trabalho em Engenho de Dentro, foi perseguida e presa sob a acusação de possuir determinados livros. Naquele tempo, aparentemente tão distante, as pessoas tachavam como comunista qualquer um que respeitasse os direitos humanos e lutasse por eles. Passados quase 80 anos, o sentimento do espectador é ambivalente; pois, se por um lado avançamos, por outro, alguns desafios e preconceitos da década de 1940 são (e estão) muito atuais. A busca pela garantia de dignidade e direitos iguais é constante, e, neste momento, de desmonte e perda de direitos, é urgente.

Nise é inspiradora no seu modo de ser, uma médica que não se limitava a tecnicidades. Em tempos difíceis, Nise nos inspira citando Artaud, “há dez mil modos de pertencer à vida e de lutar pela sua época”. Assim, ela nos ensina a enxergar a potência transformadora do cuidado e do afeto ao investir na “recuperação de homens considerados farrapos para uma vida socialmente útil e talvez mais rica que a vida anterior que eles levavam”, como ela mesma exprimiu.

Raquel Torres é formada em comunicação (USP), mestranda em divulgação científica e cultural e aluna do curso de especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.