Toxicologia forense

Por Emanuela Carla da Silva Luiz, Rebeca Cavalcante Santos, Ricardo Leal Cunha e Rony Anderson Rezende Costa 

A toxicologia forense é uma ciência multidisciplinar que busca compreender o papel de substâncias químicas em casos suspeitos, como mortes, acidentes ou intoxicações. Sua atuação vai além da simples detecção de drogas, venenos ou medicamentos: ela interpreta os achados laboratoriais para esclarecer como e em que circunstância essas substâncias influenciaram um evento.

Por meio da análise de amostras biológicas – como sangue, urina, cabelo ou tecidos – a toxicologia forense fornece respostas técnicas a questões cruciais: a vítima foi envenenada? Havia uso de drogas ou álcool no momento do acidente? A dose de um medicamento foi terapêutica ou letal?

As conclusões obtidas a partir dessas análises são fundamentais para embasar investigações policiais, produzir laudos periciais confiáveis e orientar decisões judiciais. Dessa forma, é uma ponte entre ciência e justiça, contribuindo para a busca dos fatos em processos legais e promovendo maior segurança e confiabilidade nas decisões que impactam diretamente a vida das pessoas.

Toxicologia forense: quando a ciência ajuda a esclarecer crimes

Embora seja frequentemente retratada em séries policiais e filmes de suspense, a toxicologia forense está longe de ser ficção. Em casos reais, ela é determinante para o andamento de investigações, fornecendo provas técnicas que podem condenar ou inocentar. Imagine a complexidade de apurar uma morte súbita, um acidente com possível envolvimento de drogas ou uma denúncia de envenenamento. Muito do que está por trás desses casos seguiria sem explicação.

E, mesmo que você não perceba, é provável que já tenha tido contato indireto com essa área. Um exemplo é o exame toxicológico de larga janela de detecção. Realizado em amostras queratinizadas (cabelo, pelos ou unhas), esse exame consegue identificar o uso de substâncias ao longo de semanas ou até meses, sendo amplamente utilizado em contextos civis, trabalhistas e até judiciais. Motoristas das categorias C, D e E que desejem obter ou renovar a carteira de habilitação precisam se submeter ao teste. O exame também é obrigatório na admissão de motoristas profissionais contratados sob o regime CLT.  Enquanto o sangue indica o que está presente no corpo no momento da coleta, o cabelo funciona como um verdadeiro “histórico químico” do indivíduo.

Outro exemplo menos conhecido, mas igualmente importante, é a atuação na investigação de doping no esporte, o uso de substâncias ou métodos proibidos com a finalidade de melhorar o desempenho de atletas, a exemplo dos anabolizantes, hormônios ou certos medicamentos. Os exames antidoping são realizados em laboratórios credenciados pela Agência Mundial Antidoping (Wada) e utilizam técnicas avançadas, como cromatografia e espectrometria de massas, semelhantes às empregadas na toxicologia forense no âmbito criminal. Embora o contexto seja diferente, a lógica é a mesma: identificar, com precisão, substâncias químicas no organismo e garantir que critérios legais próprios do esporte sejam cumpridos.

Esses exemplos mostram como a toxicologia está presente em várias áreas da sociedade, desde investigações criminais até o controle do uso de substâncias no esporte, contribuindo para esclarecer fatos e a tomada de decisões com base em evidências.

Como o exame toxicológico pode ser feito?

Podemos utilizar como exemplo hipotético uma suspeita de overdose que será investigada através da análise de amostra de sangue da vítima. As técnicas empregadas nesse caso serão descritas a seguir:

Imunoensaio

É o primeiro passo, usado como triagem rápida. Ele detecta a presença de classes de substâncias (cocaína e metabólitos, opioides ou anfetaminas, por exemplo), mas não identifica exatamente qual droga está presente na amostra nem sua concentração. Funciona como um “alerta”: se der positivo, a amostra segue para análise confirmatória com o uso de uma técnica mais precisa.

Cromatografia

Separa os diversos componentes de uma amostra biológica complexa. No sangue, há muitas substâncias presentes (açúcares, proteínas, aminoácidos, lipídios, medicamentos, metabólitos, drogas etc.) e a cromatografia é utilizada para separá-las, de forma a serem identificadas individualmente na etapa seguinte da análise.

Espectrometria de massas

É uma técnica com grande capacidade de identificação e quantificação de substâncias químicas de diversas naturezas. A espectrometria de massas é realizada após a etapa de separação pela cromatografia e tem a capacidade de “pesar” as moléculas e comparar os dados obtidos com um banco de dados de substâncias conhecidas. Como cada molécula possui um determinado peso, essa medida é utilizada para identificá-la – é sua “impressão digital” química.

Após essas etapas, o laboratório elabora um laudo completo, informando quais substâncias foram encontradas, as respectivas concentrações e a interpretação toxicológica, que poderá indicar se os níveis encontrados são compatíveis com uma possível intoxicação ou overdose. Esse laudo pode ser usado para fins clínicos (como no atendimento de emergência), médico-legais (em casos de morte ou crime) ou judiciais (como prova técnica em processos).

Onde são realizados os exames?

Os exames toxicológicos costumam ser complexos e de alto custo, o que demanda investimentos em laboratórios especializados, tanto em instituições públicas quanto privadas — como ocorre, por exemplo, com aqueles realizados em amostras de cabelo e os relacionados às investigações no âmbito criminal.

No Brasil, praticamente todos os estados contam com laboratórios vinculados às polícias científicas, estruturados para realizar análises toxicológicas em diferentes tipos de amostras, como as coletadas em cadáveres, vítimas de violência sexual ou motoristas envolvidos em acidentes de trânsito. Graças ao avanço das técnicas analíticas, atualmente é possível detectar substâncias mesmo em quantidades extremamente reduzidas, o que torna os exames mais sensíveis e eficazes na produção de provas técnicas confiáveis.

A toxicologia forense como campo de pesquisa

No Laboratório de Toxicologia Analítica da Unicamp (LTA) são desenvolvidas pesquisas relacionadas às análises toxicológicas de emergência e forense. No âmbito da emergência, o laboratório realiza análises de pacientes atendidos pelo Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox – Campinas) .

Outro objetivo importante do LTA é o estudo de novas substâncias psicoativas (NSP), especialmente aquelas ainda não identificadas pelos métodos tradicionais, utilizados pelos laboratórios criminais do país. Essas drogas – em sua maioria sintéticas, muito potentes e de rápida disseminação – representam um desafio crescente para a saúde pública e a justiça, resultando em milhares de vítimas fatais, anualmente, em todo o mundo.

Entre os projetos em andamento no laboratório, destacam-se: aqueles voltados para

– O desenvolvimento de metodologias para análises de NSP em amostras biológicas de interesse forense;
– Criação de uma base de dados nacional sobre informações toxicológicas criminais elaboradas por laboratórios oficiais de perícia;
– Mapeamento das substâncias psicoativas associadas a ocorrências de mortes no trânsito na região de Campinas.

O LTA também atua no desenvolvimento de métodos analíticos inovadores — como a miniaturização de técnicas de preparo de amostras – utilizando volumes muito pequenos de amostras biológicas, o que reduz custos, tempo e impactos ambientais.

Relevância social

A toxicologia forense tem papel estratégico não apenas no apoio às investigações criminais, mas também como ferramenta de saúde pública. Os dados gerados no LTA auxiliam na identificação de padrões de uso de substâncias psicoativas pela população, na detecção de intoxicações acidentais e até em casos de envenenamento em larga escala. Além disso, contribuem para evitar erros judiciais e garantir respostas técnicas e confiáveis em momentos de incerteza, como em casos de mortes suspeitas ou acidentes graves.

Para que tudo isso seja possível, o trabalho em rede é indispensável. O LTA da Unicamp, por exemplo, atua em parceria com Institutos de Criminalística e Institutos Médicos Legais, que fazem a coleta das amostras e realizam as perícias. Também colabora com as polícias civis dos estados e a Polícia Federal, responsáveis por solicitar análises que orientam investigações, além de atender às demandas do Ministério Público e do Poder Judiciário, que utilizam os laudos toxicológicos como prova técnica em processos. Essas articulações garantem que a ciência não fique restrita aos laboratórios, mas chegue, de forma concreta à sociedade, seja na forma de justiça, prevenção ou políticas públicas eficazes.

Emanuela Carla da Silva Luiz é mestranda em farmacologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Rebeca Cavalcante Santos é graduanda em química e aluna de iniciação científica no Laboratório de Toxicologia Analítica da Unicamp.
Ricardo Leal Cunha é perito criminal da Polícia Científica de Sergipe e pesquisador de pós-doutorado do Laboratório de Toxicologia Analítica da Unicamp.
Rony Anderson Rezende Costa é perito oficial do Instituto de Polícia Científica da Paraíba e doutorando em farmacologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.