50 anos em 5: como o Brasil está regredindo décadas na luta antimanicomial

Por Rafael Revadam e Tainá Scartezini

Políticas atuais de saúde mental focam em leitos hospitalares e internação compulsória

A luta antimanicomial no Brasil se desenvolveu a partir da década de 1970. Mais do que questionar as internações compulsórias e as formas de se diagnosticar pacientes de saúde mental, o movimento buscava a reflexão sobre o que é a loucura e a incessante procura por uma sociedade aparentemente normal. Entender doenças como depressão, transtorno bipolar, além dos vícios em drogas e álcool, é enxergar indivíduos por trás de suas condutas. Mas as conquistas de décadas, concretizadas em 2001 com uma lei federal que garantiu proteção e direitos a pessoas portadoras de transtornos mentais, estão sob ameaça. Desde 2015, durante o governo Dilma, posicionamentos conservadores na psiquiatria vêm ganhando espaço e recursos, numa defesa do isolamento como tratamento e da religião como cura.

“O primeiro questionamento que devemos ter é: o que realmente é compreendido por política antimanicomial? Porque vai além do fato de pessoas em sofrimento psíquico não serem tratadas em manicômios”, afirma Emanuelle Camelo, coordenadora da comissão de saúde do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Norte (CRP-RN). “A forma de tratamento pode ser manicomial e ser abordada em um local muito fora dessa estrutura física ou arquitetônica. O manicômio está no nosso fazer, nas nossas práticas e na nossa compreensão do cuidado com esse sujeito. Quando você o submete a ser tratado privado do contato social, dos seus vínculos sociais, de sua família ou amigos e o isola, é o tratamento no modelo manicomial. E quando submete esse sujeito à exploração da internação, tendo o hospital como o centro da rede e não como o último recurso para casos bem específicos, é um retrocesso também”.

Pesquisador em saúde mental e atenção psicossocial da Fundação Oswaldo Cruz, Fernando Freitas explica que a mudança da mentalidade sobre o isolamento como forma principal de tratamento se concretizou somente em 2001, com a sanção da Lei Federal 10.219. “Representou um grande avanço para a época. Em primeiro lugar, deixou explícito que a assistência hospitalocêntrica, centrada num hospital psiquiátrico, não deve ser o que oriente o sistema de assistência. Também é um avanço que a internação não pode ser compulsória, e quando ela é feita [de modo compulsório], tem que ser comunicada. Retirar a liberdade de uma pessoa por um tempo determinado passa a ser um abuso, uma violência, e só pode ser autorizada pela Justiça”, avalia Freitas.

Apesar de seguir em vigor, essa legislação vem sofrendo fortes pressões. “No momento em que existe uma tendência muito conservadora, a psiquiatria entra como uma forte aliada desse conservadorismo. Porque justifica-se cientificamente que a questão sexual passa a ser de novo um transtorno sexual, como foi no passado. Rebeliões sociais também são chamadas de transtornos, depressão [é chamada] de psicose, e por aí vai”, diz Freitas. “Nós já tivemos um momento de jogar o máximo possível de pessoas fora da ordem dentro de hospitais psiquiátricos, a gente já passou por isso. Já teve um período, por exemplo, na época da ditadura, em que a psiquiatria era usada para presos políticos. São notórios os nomes, desde Raul Seixas a Paulo Coelho, que não eram nem subversivos, da luta armada, mas [o problema] era a música. E depois isso parou, graças às lutas sociais houve uma mudança. Mas agora isso volta com muita intensidade.”

A embalagem do retrocesso: as “comunidades terapêuticas”
Presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental, a Abrasme, e fundador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz, Paulo Amarante detalha como as decisões políticas realizadas nos últimos cinco anos traçaram o cenário de regressão da luta antimanicomial. “O Ministério da Saúde, já no governo Dilma, começou a ter retrocessos. Primeiro com o credenciamento das comunidades terapêuticas, que na verdade não são nem comunitárias, nem terapêuticas. São instituições religiosas, asilares, manicomiais, centradas não só numa visão arcaica do transtorno mental, da doença mental, mas numa visão moralista e religiosa, ligada à ideia de pecado, de culpa, tanto da loucura quanto do uso de drogas.”

Com a regulamentação das comunidades terapêuticas em 2015, o governo Temer (2016 – 2018) seguiu nas medidas de regressão das políticas de saúde mental, entre elas a diminuição de recursos direcionados aos Centros de Atenção Psicossocial, os CAPs, o aumento de financiamento das comunidades terapêuticas e de manicômios psiquiátricos tradicionais e a redução dos espaços de participação social, onde movimentos pela luta antimanicomial atuavam.

A entrada do governo Bolsonaro, em 2019, expandiu as políticas iniciadas com Michel Temer, já que parte da equipe envolvida com o Ministério da Saúde e com as políticas de saúde mental hoje é a mesma da gestão anterior. Amarante relata que os cortes orçamentários se intensificaram e os investimentos em comunidades terapêuticas também. Em paralelo, a abstinência como tratamento se tornou mais frequente. “Agora, o tratamento de drogas é abstinência total, e abstinência total implica, muitas vezes, na internação compulsória. Internação compulsória implica em violência, instituições fechadas, instituições em que a pessoa internada quer sair e outro tem que impedir. Isso leva a muitas situações de violência física, constrangimento físico, moral, sexual, e uma série de outras coisas.”

Outra medida destacada é a Norma Técnica nº 11, publicada em janeiro de 2019 pelo Ministério da Saúde e que, em linhas gerais, favorece o surgimento e a expansão de hospitais psiquiátricos. “A política anterior era diminuir o pagamento de leitos para que os empresários investissem em CAPs. Agora, a política é pagar mais em leitos do que nos CAPs e pagar mais ao hospital que tiver maior quantidade de leitos, ou seja, for mais manicomial. E essas instituições são muito delicadas, porque lidam com pessoas consideradas perigosas, que não têm autonomia, são instituições autoritárias por natureza”, pondera Amarante.

A importância do convívio como tratamento
Gabriela Janine, servidora da prefeitura de São Paulo, conta que está há nove anos em tratamento psiquiátrico por causa de uma crise psicótica sofrida em 2011, mas apenas há seis meses foi diagnosticada com transtorno bipolar tipo I. Durante sua graduação na Universidade de São Paulo (USP), participou do Coletivo Neurodivergente Nise da Silveira (CoNeu), grupo de apoio criado por estudantes em 2016 para trocar experiências sobre questões de saúde mental. “Nas minhas [crises], eu sempre acho que estou ótima. Minhas crises psicóticas costumam ser acompanhadas por sintomas de mania, que é uma euforia, uma vontade de fazer tudo, uma plenitude mesmo. A última coisa que eu quero ouvir é que eu preciso ‘tomar cuidado, me cuidar mais, parar um pouco, ficar em casa’, e eu não suporto ouvir do psiquiatra que tenho que aumentar algum dos remédios quando estou em mania, porque na minha cabeça eu estou completamente sã. Assim, muitos pacientes que apresentam sintomas psicóticos não entendem a necessidade do tratamento por estarem completamente sem discernimento.”

Perguntada sobre a internação de pacientes, Gabriela pontua que sempre se deve levar em conta a visão do paciente, mas lembra que a decisão envolve várias pessoas que convivem com ele, como o médico, a família e os amigos. Embora não seja contra, quando o paciente não tem condições de decidir o que é melhor para ele e esta for a única saída, ela faz questão de destacar a importância das relações pessoais nos tratamentos. “Em 2011, quando eu tive minha primeira crise psicótica, fui tratada em casa por conta da decisão do meu psiquiatra e, acredito também, por causa da lei antimanicomial. Hoje penso que se eu tivesse sido internada teria sido bem pior para mim. Tenho sorte por ter uma família que se preocupa e tem consciência desses problemas. Minha mãe é formada em psicologia, então o apoio dela fez e faz muita diferença. Eu precisava da presença da minha família, algo que seria dificultado se eu fosse internada em um hospital. Acho que só se deve internar um paciente em situações em que ele oferece perigo comprovado a si e aos outros.”

Para o psiquiatra Paulo Amarante, o Ministério da Saúde hoje está estimulando uma política em que se entra na ideia de doença, e não de indivíduos. “Você não faz uma mudança de comportamento, se não tiver a adesão da pessoa. A pessoa que quer parar de fumar ou que quer diminuir o cigarro, que quer parar de tomar uma droga, ela quer mudar sua forma de ser. A ideia é você transformar o sujeito com ele, a partir dele, não que seja um remédio que o cara toma e ele fica alegre, sociável, feliz. Isso é uma fantasia”.

Amarante explica que com o custo em leitos psiquiátricos é possível cuidar de pessoas em contato com a sociedade, colocando-as em casas, num convívio saudável com médicos e demais pacientes. “Tem vários exemplos de pessoas que eram moradoras de manicômios e que moram hoje em cidades, você encontra com elas sem saber que foram internadas por longos anos. É uma mudança de história da vida das pessoas. Isso que é o movimento antimanicomial, é essa transformação de toda uma relação social que se tinha com a ideia de doença mental. A pessoa tinha um diagnóstico, então é perigosa, incapaz, irresponsável, vamos botá-la num manicômio, e aí o resto o próprio manicômio se encarregava de fazer. Uma pessoa internada numa instituição carcerária, por um, dois, dez, vinte anos, ela se torna um bicho praticamente, ela perde toda a sua potencialidade humana.”

O especialista conclui que a luta antimanicomial é, acima de tudo, uma luta democrática, e acredita que a sociedade precisa estar mais informada sobre seus valores e sobre as decisões governamentais vigentes. Citando o psiquiatra italiano Franco Basaglia, precursor de reformas importantes na visão da saúde mental, Amarante critica essa busca por normalidade: “A psiquiatria parte do princípio de que o transtorno mental, a doença mental, é um distúrbio da normalidade. Mas quem é normal? A normalidade é uma mera utopia, é um conceito autoritário, e acaba sendo normal quem está no poder, quem determina o que é o cidadão ideal”.

Rafael Revadam é jornalista formado pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul, pós-graduado em estudos brasileiros pela Fundação-Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Atualmente, cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Tainá Scartezini é mestranda em antropologia pela USP e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp. Mantém um podcast de divulgação científica de antropologia, o Selvagerias.