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Resenhas
Matrix reloaded
Filme coloca em xeque visão determinista, confundindo humanos e máquinas, borrando fronteiras. Atrapalha a fixidez das identidades
Susana Dias
09/07/2007

Humanos e máquinas estão em guerra. Zion, considerada a cidade refúgio dos humanos “livres”, será atacada mais uma vez pelas máquinas. Toda a trilogia de Matrix (Matrix, Matrix reloaded e Matrix revolutions), e também a animação Animatrix, trazem à tona a tensão entre humanos e máquinas, o medo do descontrole, da dominação dos humanos pelas máquinas, da transformação dos humanos em meros bancos de dados. Mas a trigolia vai além da mera diabolização das máquinas, ou de mostrar cruzadas contra os malefícios das tecnologias, ou ainda de pregar o resgate dos valores transcendentais e ceder às desilusões da pós-modernidade. A trilogia coloca em xeque exatamente a oposição e a visão determinista do que seriam os humanos e as máquinas. Essa parece ser uma das maiores contribuições da série dirigida por Andy Wachowski e Larry Wachowski. Con-fundindo humanos e máquinas, borrando essas fronteiras, a série atrapalha a busca das essências e da fixidez das identidades. Propõe um duplo enlace, da máquina ao humano, do humano à máquina. Como os quatro filmes têm elementos que expressam essas tensões, além de serem extremamente imbrincados, ao resenhar Matrix Reloaded parece ser inevitável passear também pelos outros filmes.

Máquina? Humano? Quais são os limites? Em Matrix, a inquietante descoberta de que as máquinas obtêm sua energia de corpos humanos aprisionados em bolsas que, por sua vez, só vivem graças ao sistema de programas que os fazem ter uma vida comum de humanos. Em Matrix reloaded assistimos a uma cena de sexo com Neo e Trinity, não uma cena qualquer, porque a visão dos dois nus produz um estranhamento ao vermos plugues metálicos encravados nos corpos, que servem para conexão com a Matrix. Assim como estranhamos a esposa de Merovingian, ambos programas da Matrix, terem ações e sensações atribuídas aos humanos como: desejo, traição e vingança.

Em Matrix revolutions vemos avançar, para defender Zion do ataque das sentinelas um exército de homens-máquinas, homens dentro de robôs gigantes que aumentam seu tamanho e poder de ataque. As sentinelas, por sua vez, remetem a formas de seres vivos, com seus tentáculos e ataques em verdadeiros enxames, além de assumirem o formato de um rosto humano no final do filme para conversarem com Neo. Já no segundo episódio de Animatrix, que conta a história anterior ao surgimento da Matrix, incomoda vermos os robôs humanóides sendo explorados pelos humanos para a execução de trabalhos pesados, assim como inquieta assistir às reivindicações dos robôs por melhores condições de vida, ao exigirem, por meio de passeatas, participação na Organização das Nações Unidas (ONU). O que nos inquieta e incomoda nessas, e em outras tantas cenas desses filmes, são as estranhas humanidades das máquinas e as maquinações dos humanos que os irmãos Wachowski colocam nas telas do cinema.
 
As máquinas aparecem como extensões dos humanos em todas as épocas. Não apenas como um futuro possível, porque a maquinação sempre teria existido, porém de outras maneiras, com outras máquinas. Em Matrix reloaded, as conversas de Neo com o Conselheiro Hamann, o Oráculo (a mãe da Matrix) e o Arquiteto (o pai da Matrix) também convidam a pensar nessas questões. O Conselheiro leva Neo a conhecer o andar das máquinas de Zion. A assombrosa parafernália de maquinarias que constitui a cidade é o cenário da conversa. Zion é uma cidade-máquina. Diz o Conselheiro: “Quase ninguém desce até aqui, a não ser que haja um problema, claro. É assim. Ninguém quer saber como algo funciona, basta que funcione. Eu gosto daqui. Gosto de lembrar que esta cidade sobrevive graças a essas máquinas. Elas nos mantêm vivos enquanto outras estão vindo nos matar. Interessante, não? O poder de dar vida... e o poder de tirá-la. Temos esse mesmo poder. Quando estou aqui em baixo penso em todos que ainda estão conectados à Matrix e, ao ver estas máquinas, sou forçado a pensar que, de certo modo, nós estamos conectados a elas”. Embora Neo retruque que as máquinas de Zion não controlam os humanos e que poderiam ser desligadas, diferente da Matrix, o Conselheiro lembra que embora fosse possível desligá-las, os habitantes de Zion não viveriam sem suas luzes, calor e ar. A conclusão de Neo – “Precisamos delas e elas precisam de nós...” –  parece ser o fio que conduz a trama da trilogia.

No diálogo com o Oráculo, a exposição dos desafios que Neo enfrentará como o Escolhido para terminar com a guerra. “Você não é humana, certo? Se eu tivesse de adivinhar diria que você é um programa do mundo das máquinas. Mas, nesse caso, você pode ser parte do sistema. Outra forma de controle. Acho que a pergunta mais óbvia é: como posso confiar em você?”, pergunta ele, ao que responde o Oráculo: “Na mosca. É uma situação chata, sem dúvida. E o pior é que você não tem como saber se estou aqui para ajudá-lo. Portanto, a escolha é sua. Precisa resolver logo se vai aceitar o que vou dizer, ou rejeitar. Quer bala?... Estou interessada em uma coisa, Neo: o futuro, e acredite, sei que a única maneira de chegarmos lá é juntos”. A trilogia da Matrix coloca todos os seres-objetos do mundo como programas, também os mitos (vampiros, lobisomens, anjos, alienígenas, heróis) como programas, programas que invadem programas. Desta forma, a trilogia tem também o mérito de con-fundir as noções de real e irreal, criando situações que suspendem o sistema de julgamento, não sabemos se são reais ou não, porque são as duas coisas aos mesmo tempo, simultaneamente. Ao invés de diabolizar a velocidade de ação das máquinas, ou anunciar a produção de imagens que não remetem ao real, a trilogia questiona o que é o real, dando potência para uma noção de realidade fantasmática e anômala.

No encontro com o Arquiteto, Neo emerge a potência que têm os mitos, os fantasmas, as anomalias. À pergunta de Neo – “Por que estou aqui?” – responde o pai da Matrix: “Sua vida é resultado de uma equação irregular inerente à programação da Matrix. Você é a eventualidade da anomalia, que por mais que eu me esforce não consigo eliminar da restante harmonia de precisão matemática”. Neo, o Escolhido, o salvador, o herói (aliás a citação do Superman no filme é explícita), é uma anomalia sistêmica, que sempre retorna, como outros tantos mitos. Uma anomalia que sobrevive, persiste, e que impede racionalidade e precisão matemática do pensamento humano – atribuída geralmente às máquinas – dê conta de explicar o mundo, os humanos e as máquinas.

Em Matrix reloaded aparece ainda uma figura muito emblemática: o chaveiro. Para salvar Zion, ou poderíamos dizer, para salvar a noção de humano, Neo, Trinity e Morpheus precisam encontrar o Chaveiro. Abrir a porta certa. Mas qual porta escolher? A porta que abre para a insistente oposição entre humanos e máquinas, que coloca os humanos como engrenagens das máquinas, que as transforma em ameaças à humanidade, e que as considera responsáveis pela desumanização negativa do homem, não parece levar Neo e seus amigos ao final da guerra. No último filme da trilogia, Matrix revolutions, Neo abre a porta certa. A guerra entre humanos e máquinas termina. Não porque os humanos venceram, muito menos porque as máquinas ganharam. Neo retorna à Fonte, a cidade das máquinas, e propõe a elas lutar contra o inimigo comum aos humanos e às máquinas, um programa, “aparentemente livre”, que contamina a Matrix: Smith. E o que é esse inimigo comum? Quem é Smith? Smith adquire em Matrix reloaded o poder de transformar todos os seres da Matrix em Smiths, em clones de si mesmo. Smith é o mesmo, o fim da diferença. A trilogia da Matrix é um grande relato do aprendizado de Neo. De sua busca por fazer do silêncio humano, em meio às máquinas, um ruído ensurdecedor. Um silêncio que arruíne a busca das essências de homens e máquinas e faça emergir outras maquinações, mais amorosas, mais guerreiras.